sexta-feira, 27 de junho de 2008
A Saudade
18. Repitamo-lo, para que o re-cordes e te re-cordes, ou seja, para que o tragas de novo e sempre ao teu coração e te tragas de novo e sempre ao coração da universal natureza-experiência primeira, descobrindo que ambos são um só. A saudade é disso que por natureza tudo é e para além do qual nada mais há, do jubiloso saber-experiência - infinitamente sensível, amoroso, compassivo e criativo - dessa ausência de dualidade, características e limites que em tudo se desvela e frui quando cessam todos os juízos, hábitos e pulsões conceptuais-emocionais que distorcem e condicionam a percepção imediata. A saudade é vínculo da memória-desejo ao não sei quê que em tudo insta como o seu imo glorioso e insuperável, velado e desertado pelas inconscientes e irreflectidas reificações do estado mundano das consciências, reproduzido ao longo de milénios por tradições e culturas da não libertação, populares, míticas, religiosas, filosóficas, artísticas e científicas. A saudade é o sentimento de coincidente incoincidência com o que “é” e com o que “és”, a dorida e insatisfeita experiência da ilusória particularização do espaço livre e infinito, da fictícia individualização do fundo sem fundo de tudo, do aparente mas falso condicionamento do incondicionado. A saudade é saudade de si, livre de si e de outro, de mesmidade e alteridade, de identidade e diferença. A saudade é saudade do instante, livre de tempo e eternidade, livre de passado, presente e futuro. A saudade é testemunho de pertencermos, mais do que ao que julgamos em nós e no mundo conhecer e ser-nos próprio, à bem-aventurada e inquietante estranheza que no fundo sem fundo de nós e de tudo é incêndio que lavra a consumir a impossível máscara da id-entidade. A saudade é o tudo a aspirar à plenitude do nada que é e esse nada a reabsorver o tudo que se manifesta, mostrando a universal reversibilidade do tempo, do mundo, do ser e dos seres, da consciência e da realidade. A saudade é de não caber em si de contente, a saudade é não caber em si de contente, por contraste com a melancólica tristeza ou a impotente nostalgia do ensimesmamento egocêntrico, que sustenta e solidifica a aparência do irreversível. A saudade é, simultaneamente, êx-tase e ên-stase: estar fora de si em si, estar em si fora de si. A saudade é já regresso à jubilosa intensidade, maravilha e eterna novidade da experiência primordial, por contraste com a despotenciação, o tédio, o aborrecimento, a rotina e o falso e efémero prazer da vida mundana e quotidiana. A saudade é a saúde a libertar-se da doença e da cura. A saudade é a saúde a libertar-se da saudade. A saudade é de não a haver e de jamais a ter havido. A saudade, em sua ponta extrema, é não ser e jamais ter sido.
19. A saudade assumida e consciente é a mais poderosa força libertadora que há no universo. Por ela revertemos e dissolvemos a ilusão da percepção condicionada, a ilusão de haver sujeito e objecto, no júbilo da sempre instante experiência primordial. Por ela cumprimos a suprema possibilidade do ex-istir na desconstrução do ser e do ser-aí solitários, mundanos e aparentes. Por ela nos evadimos da fuga e da pro-jecção auto-encarceradora na ficção do nascer, existir e morrer. Por ela despertamos da ilusão da felicidade poder ser algo possuído por alguém. Assim a cumprimos e à ilusão que a origina e nutre. Assim a matamos. Pois a saudade é de não haver e jamais ter havido saudade: o anseio da ilusão por se extinguir, o que mais célere cumpre quando se reconhece, recorda e dissipa como mera miragem e engano. A serpente a devorar-se pela cauda, não para eternamente renascer, mas para se consumir e libertar na plenitude da vacuidade que intimamente é.
20. A saudade inconsciente do que é e dessa inconsciência é a mais poderosa força escravizadora que há no universo. Por ela demandamos no ser, no mundo e nos mundos, na pro-jecção existencial e na espácio-temporal vida subjectiva, solitária e finita, nos seres, nas coisas e nos fenómenos aparentes, ou ainda numa eternidade e divindade deles separada, mas pensada em função dos desejos e temores do sujeito, ou seja, nas características e determinações conceptuais que encobrem a natureza autêntica de tudo, o júbilo e o bem que só esta comum natureza primeira e última pode oferecer. Assim centramos e prendemos a memória e o desejo não naquilo a que verdadeiramente inerem e os cumpre e anula, deles libertando, mas no sujeito e nesse presente sempre envenenado, mal vivido e alienado pela distensão da mente para o passado e o futuro, ou ainda para uma fictícia eternidade separada da iluminativa fruição do instante, reproduzindo a solidão, a saudade e a ilusão de que procedem. Assim mantemos a saudade refém da soledade. Assim mantemos a serpente a alimentar-se e renascer do próprio devorar-se no desejo de se pôr fim. O que mais pode libertar é também o que mais escraviza.
- Pré-publicação de um excerto de Da Saudade como Via de Libertação, Lisboa, Quidnovi, 2008 (no prelo) [extraído de "Da Natureza primordial, da Mundaneidade e da Saudade", I].
19. A saudade assumida e consciente é a mais poderosa força libertadora que há no universo. Por ela revertemos e dissolvemos a ilusão da percepção condicionada, a ilusão de haver sujeito e objecto, no júbilo da sempre instante experiência primordial. Por ela cumprimos a suprema possibilidade do ex-istir na desconstrução do ser e do ser-aí solitários, mundanos e aparentes. Por ela nos evadimos da fuga e da pro-jecção auto-encarceradora na ficção do nascer, existir e morrer. Por ela despertamos da ilusão da felicidade poder ser algo possuído por alguém. Assim a cumprimos e à ilusão que a origina e nutre. Assim a matamos. Pois a saudade é de não haver e jamais ter havido saudade: o anseio da ilusão por se extinguir, o que mais célere cumpre quando se reconhece, recorda e dissipa como mera miragem e engano. A serpente a devorar-se pela cauda, não para eternamente renascer, mas para se consumir e libertar na plenitude da vacuidade que intimamente é.
20. A saudade inconsciente do que é e dessa inconsciência é a mais poderosa força escravizadora que há no universo. Por ela demandamos no ser, no mundo e nos mundos, na pro-jecção existencial e na espácio-temporal vida subjectiva, solitária e finita, nos seres, nas coisas e nos fenómenos aparentes, ou ainda numa eternidade e divindade deles separada, mas pensada em função dos desejos e temores do sujeito, ou seja, nas características e determinações conceptuais que encobrem a natureza autêntica de tudo, o júbilo e o bem que só esta comum natureza primeira e última pode oferecer. Assim centramos e prendemos a memória e o desejo não naquilo a que verdadeiramente inerem e os cumpre e anula, deles libertando, mas no sujeito e nesse presente sempre envenenado, mal vivido e alienado pela distensão da mente para o passado e o futuro, ou ainda para uma fictícia eternidade separada da iluminativa fruição do instante, reproduzindo a solidão, a saudade e a ilusão de que procedem. Assim mantemos a saudade refém da soledade. Assim mantemos a serpente a alimentar-se e renascer do próprio devorar-se no desejo de se pôr fim. O que mais pode libertar é também o que mais escraviza.
- Pré-publicação de um excerto de Da Saudade como Via de Libertação, Lisboa, Quidnovi, 2008 (no prelo) [extraído de "Da Natureza primordial, da Mundaneidade e da Saudade", I].
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11 comentários:
a filosofia da saudade é êxtase. nada há a dizer sobre ela que seja mais do que memória e desejo.filosofar a partir dela é apenas extasiar-se.
A saudade é êxtase e memória-desejo dele. A filosofia da saudade é a busca de compreender e expressar isso, no plano conceptual e verbal. Há que não confundir os planos.
mas reparo que há êxtase no teu texto. como compreender e expressar isso senão sentindo-o no momento em que escreves? a saudade transporta-nos para fora do mundo.
Caro anónimo, se há êxtase no meu texto isso gratifica-me e decorre de que o êxtase perdura na filosofia e a filosofia é também saudade do êxtase... Mas ainda assim sinto que existem diferentes níveis de experiência: quando se fala da suspensão ou transcensão do mundo já se está de novo nele, mesmo quando há saudade já se perdeu a integridade de Isso de que há saudade.
Outra questão: o que se diz "êxtase" também pode ser visto e vivido como "ênstase". Se andamos fora de nós ou do que "é", a saudade é um regresso ao íntimo, ao imo Disso. Prefiro aliás viver a saudade como transcensão de haver dentro e fora, reintegração da sanidade / saúde não-dualista.
se não se tivesse perdido a integridade de Isso de que há saudade não haveria saudade. a saudade decorre da perda. a saudade é um regresso sem fim; não paramos; há sempre mais e mais. e se não há, queremos que haja, iremos além. penso que essa transcensão de haver dentro e fora já não é viver a saudade, mas algo diferente. será o não dualismo saudável? ou mais uma ilusão? mas saudade, saudade é ver o passado mesmo que se o não veja; o que se viveu e o que não viveu. ir para trás na cadeia do tempo e na corrente da vida, metamorfose.
O ser destrói a saudade. Que se não diga que a saudade é, pois se é, é além. Que é o além? Inominável, sob pena de o destruirmos. Ah ah ah! Destruí-lo? Como, se é além? Pulsão para o passado, para o futuro; fora, longe, mais longe que o longe. Mundo meramente possível?
Paulo,
A minúcia conceptual e frutífera com que nos iluminas a Saudade para com a mesma clareza nos esvaziares dela. É preciso muita presença para a vacuidade e muita presença para não aterrarmos numa emoção que nos arrasa em plena ascenção. Cuidado, poderás matar-nos a (de) Saudade.
Acima de tudo, felicito-te pela Paixão com que nos ofereces o cálice de que bebes, nessa tua amoRosa libertadora vocação.
Tem uma boa noite.
Em primeiro lugar, obrigada pelo convite para participar na Serpente Emplumada. Aceito fazer parte deste grupo e sinto qualquer coisa dentro... como que uma pontinha de riso, um formigueiro sem formigas... talvez de serpentes.
Obrigada.
Lembro-me de ter estudado Joaquim de Carvalho no 12º ano com os seus "Elementos Contitutivos da Consciência Saudosa"
E lembro-me que adorei.
Sou saudosista da cabeça aos pés, desde sempre e para sempre...
Alda Lopes*
Caríssimo!
Comentar não me é já preciso, depois de ler o que a Luiza escreveu...
Anseio por ler esse teu livro. Nós precisamos que a filosofia não se perca na verbosidade inconsequente. No portugalómio, no manicómio dos sãos de espírito, incapazes de endoidar, cada vez mais se cultua a filosofia do já feito, a compaixão impede-me de dar aqui como exemplo aquilo a que chamam filosofia analítica , até porque há coisas de que gosto em certos livros dessa ganância egótica de ter sempre uma palavra sobre tudo.
Acho que temos (melhor será dizer, no meu caso acho que tenho...) que esgotar a ilusão, que queimar os fósforos da inquietação. E, quem como eu, está a assistir às tuas aulas de há quase 20 anos atrás (talvez há mais, mas eu não consigo contar o tempo) e sempre a escutar coisas novas, não pode deixar de mergulhar na provação das tuas palavras actuais como aquilo de onde partíamos quando nos falavas, por exemplo, de Leonardo Coimbra e falo dele em especial porque ando absorto na sua Adoração. Esperávamos sempre aquele momento das tuas aulas em que o teu verbo se tornava algo sonolento e parecias falar mais para dentro, como a pedir às asas que se abrissem e era do fundo dessa catástrofe, depois de muito teres falado sobre aquilo que julgavas que era necessário para nós podermos seguir-te, que te largavas a voar, com um verbo rápido, cada vez mais elevado, mais subtil e derradeiro. Na altura, e estou sempre a repetir isto, consumias-te num fogo que eu não compreendia mas que me abrasava ao ponto de me levar a descobrir os nossos Arautos, os pensadores que nos inventam. E muito mais, caríssimo. Sempre me senti um espectador sem bilhete. Mas sentimo-nos mais imperiosamente em casa quando sabemos que a qualquer nomento podemos ir parar ao olho da rua.
:)
Caro Paulo, cara Luiza, caríssimos comentadores, acolho o carinho das vossas palavras e felicitações mas todos sabemos que o importante não somos nós e sim Isso que nos lavra, pela saudade e pela vida.
Agradeço a muito importante observação de que "o ser destrói a saudade". Com efeito, a saudade não é. No livro que sairá no início de Setembro, também procuro pensar a saudade como Potência primordial, potência das potências que os aparentes seres e consciências mais intimamente "são", enquanto livres indeterminações entre o "vácuo pleno" e a multiplicidade dos possíveis.
E esta saudade aspira, efectivamente, a matar e a matar-se, como bem nota a Luiza. Mas também pode aspirar a outras coisas: creio que cada um de nós é a prova disso...
Abraços
A Saudade é a Deusa
que canta de boca fechada
íntima do Abismo
ao centro do Nada
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