sexta-feira, 13 de junho de 2008
Carta a Fernando Pessoa
Fernando,
Não nasci pelo Ar, como tu, mas pelo Fogo,
o teu sopro atiça-me as chamas; a mínima presença tua me arrepia.
Não te venho fazer perguntas, de ti me falam claramente, de forma que não te será estranha, os teus versos e pensamentos, mesmo se os não alcanço ou percorro como eles a ti. Tu existes muito acima do que escreves, embora não possa dizer quem me és no que foste e serás, neste mundo e em tantos outros que são igualmente irresistíveis e insondáveis, e quem sabe a partir de que ponto inexistentes.
Venho dizer-te como te conheci - conheci-te muito antes de saber quem eras, tinha 12 anos. Tenho ainda as cópias de poemas teus que o meu professor de português compilou. Tinha 12 anos, meu deus, não me lembro de ter sentido nada, aliás, só me lembro de ter sentido alguma coisa quando me senti sozinha, que foi finalmente uma assunção, ou melhor, um despertar. Mais adiante, aos 18 anos, um grande acontecimento! ao folhear e ler poemas teus num livro oferecido: entro na Tabacaria (para comprar tabaco?)
“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
Estas quatro primeiras linhas marcam o milagre da tua aparição (acontecem-me muitos milagres assim, pessoas que me aparecem). Recordo que senti uma intensa irmandade com a tua alma, espanto e abalo profundos. Estes versos e os seguintes, todos, trouxeram-me emoções em cadências mutáveis, e torrenciais pela força, de anseio e aperto, de grito e mudez, de paz e loucura, de fazer e desfazer, a ouvir-te, tão rude e sensível, glorioso e desesperado, e tão simples. A janela, a casa e a rua, tu a veres, a imaginares, e a ferires, tu a seres triste, real e distante, sem camisa, e eu também, para um culminar e imortal abandono num universo reconstruído sem ideal nem esperança.
Tenho percorrido a Tabacaria à medida do viver e encontrado coisas e dimensões novas e reencontros. Aqueles quatro versos são uma transcendência. Junto-lhes lágrimas, mais e mais, também novas e reencontradas, versos elas próprias, por tudo. São lágrimas de amor, também por ti, meu supremíssimo. Sim. Sim…
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23 comentários:
resgatemos o nosso mais íntimo ser, mergulhemos no mais fundo de nós... sem mais fugas.
Pessoa tem ainda para nos revelar... mas precisamos de abrir portas que se mantêm fechadas em nós... Pessoa não nos fala apenas de modo poético, Pessoa fala-se a si mesmo - fala de nós, escutemo-nos em cada palavra sua-nossa; integremos a sua-nossa Mensagem inteira, a parte que nos falta...
afundemo-nos nele... vejamos a Luz-a...
"Ver é talvez sonhar, mas se lhe chamamos ver em vez de lhe chamarmos sonhar, é que distinguimos sonhar de ver.
Durmo quando sonho o que não há; vou despertar quando sonho o que pode haver."
Obrigado, Luiza, pela simpatia. Quem diria que alguém que quase só soube pensar e quase nada viver teria tanto impacto sobre as almas !?... Sejam pois felizes com a minha literatura, já que não fui capaz de o ser com a vida !...
e não terá sido a sua vida mais real do que outras que andam por aí fora?...
(ou tão real)
Bom dia, Luiza,
Nascido pelo Ar, em Junho, 13,mas distribuindo por cada um dos heterónimos os outos elementos que compõem o universo. O Nada que Pessoa foi, paradoxalmente se tornou toda uma literatura. À «sombra do seu chapéu» ainda vive muita da intelectualidade portuguesa. O seu riso irónico ainda paira sobre nós. Quem ama Pessoa sabe quanto esse amor não esmorece com o aprofundamento da sua «poética».
A meu encontro com Pessoa foi também na meninice. Já o comentei no meu blogue...As luzes, uma menina de cinco anos, um teatro escuro, e o esquecimento nas palavras ditas:«Ó Mar salgado».
Mais tarde, no liceu a ingénua imitação dos seus versos que a memória decorou na íntegra e que voltei a esquecer. Na Universidade, o vazio da pouca importância que lhe era dada no programa foi largamente compensada por conversas cada vez mais ínteriorizadas sobre a sua obra. Já mulher, a escolha da tese impõs-se naturalmente. Seria Pessoa, sem dúvida. Esquecida a ideia inicial de Bernardim Ribeiro...«Menina e Moça me levaram d casa de meus pais...».
Ainda me surpreendo com a intensidade de alguns dos seus versos. Leio-o com prazer, penso compreendê-lo. Sonho-o também. Foram tantas as cartas que lhe escrevi no meu pensamento que, agora, ao ler a sua, me comovo.«Não sou nada./Nunca serei nada.Que mansardas do mundo não abrirão janelas para o «desassossego» dasas ruas de Lisboa, onde o poeta se abriga em vãos de escada, para fugir à tempestade e a si mesmo!...
Obrigada por me lembrar de tudo isto. Com a simplicidade de quem confessa um amor antigo.
Um abraço a ver o mar a esta luz de Lisboa, com sardinhas e quadras à solta.
Não falo de real ou irreal, mas de ser ou não feliz... Creio que o não fui muito. "Fumei a vida", como escrevi em 16-7-1934, perto do seu fim. Poderia também dizer que a bebi.
Gozem a minha literatura, mas resguardem-se dela e sobretudo não me sigam o exemplo. Deste limbo onde estou bem os vejo, tanto jovens a deprimirem-se com o meu "Livro do Desassossego"... Para que escrevi tudo aquilo ? Temo que a fama se me converta num inferno...
O "seu" livro não deprime, os jovens é que o lêem deprimidos. Quem o souber ler, revivê-lo inteiro nos seus sentimentos poderá acordar de vez para a vida. De pouco importa a tristeza que o acompanhou, importa que a aproveitou e deu ao mundo um tesouro inigualável. Saibamo-lo agora fazê-lo brilhar!
A felicidade do reencontro que provoca em nós ao lê-lo transcende uma breve vida feliz.
A felicidade espera-nos na eternidade. Até lá meu irmão gémeo da alma.
Tanta gente dependente do Pessoa ! Não percebem que, sobretudo no caso de autores como ele, a melhor homenagem que se lhe pode prestar é superá-lo e esquecê-lo !...
Cara Anita, nunca confundas um limbo com a eternidade !
De acordo. Pessoa-lmente, não estou só dependente, sinto-me interdependente da sua escrita, sinto-a em mim, sinto-me nela, se sou dependente de mim? Sou-me.
Limbo, eternidade... reconheço o um incerto sentimento "meu" eterno no que Pessoa me é. Onde ele esteve, está... é-me indiferente.
BonDia,
Para mim, Fernando Pessoa não é a literatura, mas o poeta que extrapola o dimensionável da alma no que escreve, como escreve, e no que pensa. Encontrei-o na escrita mas não está na paisagem das letras, ele próprio se despe delas, aliás.
Se é indiferente a ti, não o é a mim. Pelos vistos não me amas assim tanto... Apenas amas a minha literatura... Ou nem sequer isso... Apenas o sentimento que tens dela... No fundo apenas a ti amas, segundo me parece.
Exacto. Amar é amar o próprio amor. Porque nada há para lá dele -só nós a partir dele.
(mesmo nós, apenas existimos através dEle)
Antes me houvesse despido realmente de mim, em vez de apenas o imaginar... Não teria sido tão triste. Saibam vocês despir-se de mim.
ou despirmo-nos do que não somos...
Fernando,
Despirmo-nos da tua indisposição é o segredo para entrar na tua obra, e amar-te para além dela.(vês aqui alguém mal disposto ou deprimido a falar de ti?)
É por demais conhecida a frase que ilustrou, umas décadas atrás, o frenesim com que se corria a resgatar e a «regatear» cada letra manuscrita do tão falado espólio. A frase era: «tanto Pessoa já enjoa!». Não é disso que falo. Como a Luiza e tantos outros,encontrei em Pessoa a dimensão da alma transcendida de poeta, que era a sua. Não podemos, contudo, ignorar o pensamento poético e filosófico que a escrita denuncia. O sonho de um Império da alma, um sentimento patriótico e lúcido e um conhecimento profundo da arte que praticava.Não podemos, Luiza, desligar a escrita da sua intervenção directa no panorama literário do seu tempo, de que era conhecedor.Também aprecio essa sua dimensão de crítica e teoria literárias.
Claro que, como foi também aqui dito,também queremos despir-nos de Pessoa, como de nós próprios. O culto da personalidade que ele tanto dizia desprezar e de que tentou despir-se, não deve estar na base do seu actual e sobrevivente endeusamento. Mitos. Também os alimentou. É deles que a poesia se serve, mas eles são «O Nada que é Tudo».
Um dos grandes, aqui lembrado, não deve confundir-se com «idolatria» e muito menos como «dependência». A alma é singular, e cada um tem o «Apolo» e/ou a «Atena» que lhe é dado.
Lembrar Pessoa e lembrar Portugal, amá-los,em nada belisca a nossa independência de alma.
P.S. Somos e seremos sempre, também os nossos mortos. Enquanto povo e alma individual.
Um abraço
Escuta bem, Pessoa,
que desta vez não minto:
por medo do amor
te agarraste ao absinto.
Não foi absinto,
que tal não deu a Musa:
Foi antes bagaço,
muita pedra e pouca tusa.
BonDia Saudades,
Abraço-te de azul do Mar e deste Sol da Manhã que me alegra e rosa.
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