O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


domingo, 13 de dezembro de 2009

"[...] a verdade / Que morreu D. Sebastião"



(quadro atribuído a Cristóvão de Morais)

Publico aqui a continuidade de um texto anterior, de comentário ao poema inicial da Mensagem de Pessoa: "O dos Castelos".

O Quinto Império

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz –
Ter por vida a sepultura.

Eras por eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,
Europa – os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?

O poema “Quinto Império” permite aprofundar a interpretação do poema anterior. Começando pelas duas últimas estrofes, elas anunciam claramente um desenlace do sentido da passagem do tempo terreno e histórico como uma transição da “noite” para o “dia”, da treva para a luz, do negativo para o positivo (“atro” significa negro, tenebroso, lúgubre, aziago), ou melhor, como um pleno desentranhamento do “dia claro” que na funesta e “erma noite” já se enraíza e brota. Este processo é também uma passagem dos “quatro / tempos” de um estado onírico para um despertar, esse mesmo “dia claro” que acontecerá no “teatro” da “terra”. Os quatro tempos ou quatro sonhos passageiros e fugazes do “ser que sonhou” (um Deus sonhador ou o próprio homem?) são claramente os quatro impérios, os quatro momentos-figuras histórico-civilizacionais, que se destinam a ser superados pelo Quinto Império, na versão pessoana da interpretação pelo profeta Daniel do sonho de Nabucodonosor (Daniel, 2, 31-45) que se converteu num recorrente mito teológico-histórico-político ocidental, entre nós exaustivamente interpretado pelo Padre António Vieira. Esses quatro impérios, que configuram para Pessoa a génese histórico-cultural do último deles, a Europa, são pois estados oníricos, conotados com um regime obscuro de consciência, em que o “dia claro” não emergiu ainda plenamente da “erma noite” em que se enraíza e secretamente desponta. São por natureza fugazes e inconsistentes, tendo o destino de tudo o que é temporal: a evanescência e a dissolução, desaparecer sem deixar traços.

O que fica afinal, após os quatro tempos da noite e do sonho, senão o “dia claro” que já neles secretamente se desenvolvia? E o que é esse “dia claro” senão o Quinto Império, que desde Daniel é visionado e profetizado como universal e perene?. Mas o que é o Quinto Império para Fernando Pessoa? Veremos que tem vários sentidos, claramente apontados nos vários textos em prosa que lhe dedicou. Neste poema, contudo, sem contradizer esses outros sentidos e constituindo porventura a chave maior para a sua compreensão, o Quinto Império é sugerido como a “verdade / Que morreu D. Sebastião”. Importa pois saber o que seja esta “verdade”, que, apesar de não ser definida, não deixa de ser por sua vez sugerida como o tema das três primeiras estrofes do poema. Que existam as condições para se compreender do que se trata é aliás o que fica pressuposto na exortação e desafio final a que surja quem venha “viver” essa “verdade / Que morreu D. Sebastião”.

O poema começa por lamentar dois aspectos da comum condição humana. “Triste” é “quem vive em casa”, fechado na sua reclusão doméstica e “contente” com essa forma exígua de exercício das possibilidades humanas, sem que algo mais, “sonho” ou “golpe d' asa” (cf. Mário de Sá-Carneiro), o leve a transcender essa condição domesticada, tornando até mais viva a experiência disso que se abandona (“mais rubra a brasa da lareira a abandonar”), subtil indicação de que só vivemos plenamente aquilo de que nos libertamos. Triste é também “quem é feliz”, contente agora com a mera duração da vida a que adere vegetativamente, inconsciente de tomar por vida a própria morte, o estar já sepulto nessa mesma e extrema limitação das possibilidades humanas. Esta falsa felicidade, extremamente condicionada e vulnerável, resulta de nada haver no indivíduo que internamente o leve além da “lição da raiz”, que se pode interpretar como o (falso) saber comum dispensado pela família, pela escola e pelo meio social aos humanos, ou, mais fundo, como esse inquestionado e irreflectido enraizamento vegetal na mera duração da vida biológica, sancionado pelas convenções dominantes na família, na escola e na sociedade.

Após a lamentação das duas primeiras estrofes, onde, em termos terapêuticos, se faz o diagnóstico e a etiologia do estado mórbido em que se encontra o homem comum, a terceira estrofe indica o remédio, a via a seguir para que tal estado se supere, o que deixa implícita a possibilidade da saúde. Essa via passa por assumir o descontentamento, o inconformismo com a situação imediatamente vivida, como exercício de humanidade. É isso que permite que se cumpra o apelo final: domar “as forças cegas” pela “visão” que há na alma, porventura a mesma visão espiritual a que alude o título Mensagem: Mens ag(itat) (mol)em, a visão de que o pensamento/a inteligência/a mente impele/põe em movimento a massa(matéria)/multidão, o animado e o inanimado. A via a seguir para ressuscitar uma humanidade sepultada na vida vegetativa e convencional consiste, primeiro, em despertar o seu descontentamento com esse modo despotenciado e alienado de existência e, a seguir, inverter a situação, fazendo com que não sejam as forças inconscientes, ou tornadas inconscientes, dos instintos e pulsões de sobrevivência infra-humana, bem como dos hábitos mentais colectivos (familiares, escolares, sociais) que os reproduzem, a dominar a “alma”, a consciência, mas antes esta a subjugá-los, consciencializando-os, libertando-se deles e eventualmente orientando a energia neles investida para fins superiores. Isso é possível, note-se, “pela visão que a alma tem”, como se nisso se aludisse a algo, o poder da consciência, desde já presente na alma, ou seja, na vida interna do homem, porventura apenas inoperante na medida em que esteja encoberto pelos automatismos da “vida” vegetativa e convencional.

Todavia, a estrofe carece ainda de ser lida em função do que nela se acrescenta e da sua função de charneira que, no centro da composição, estabelece a ligação entre as estrofes anteriores e posteriores. No seu início refere-se o fluxo contínuo das “eras” que umas às outras se sucedem e destituem, desvanecendo-se na mesma passagem voraz do tempo. A impermanência das “eras”, enquanto períodos temporais, é claramente, na estrofe seguinte, a dos “quatro / Tempos do ser que sonhou”, destinados a passar cedendo o lugar ao “dia claro” que desde o início nessa mesma fugacidade temporal se enraíza, germina e cresce, até que surja plenamente no “teatro” da “terra”. Estes quatro “tempos” ou “eras” oníricas, em que se troca o real por uma ficção inconsciente de o ser, e que são os quatro impérios – Grécia, Roma, Cristandade, Europa – destinados a desvanecer-se e ser superados pelo Quinto, são pois os marcos da história do mundo em que predominam as “forças cegas” que tornam a vida vegetativa, convencional e defunta e que devem ser domadas “pela visão que a alma tem”. Esta manifesta-se assim idêntica ao “dia claro”, ao despertar dos quatro tempos do sonho, ao implícito Quinto Império e à enigmática “verdade / Que morreu D. Sebastião”. Resta saber o que é esta verdade, que fica desde já suposta como algo que transcende a impermanência universal que rege o tempo cósmico e a história político-civilizacional dos homens. É legítimo entretanto supor que ela também se relaciona com essa visão ampla que se diz na palavra Europa e que, pelo seu rosto-Portugal, fita/deseja esfíngica e fatalmente a sua morte e transcensão na alteridade do Ocidente/Oceano, esse “futuro do passado” (cf. o poema inicial da Mensagem) que já vimos ser irredutível a qualquer determinação temporal e histórico-geográfica. A “verdade / Que morreu D. Sebastião”, o Quinto Império, está demasiado comprometido com o despertar da ficção onírica e com a transcensão do movimento histórico para poder ser objectivado em qualquer coordenada espácio-temporal. Não o entender é ficar tristemente refém do tempo de ilusão que é o dos quatro impérios, o tempo da vida sepulta na funesta “noite” da consciência dominada pelas “forças cegas” que regem a visão comum, apegada ao seu enraizamento no irreal.

(texto em formulação e a continuar)

21 comentários:

João de Castro Nunes disse...

Todos querem ser donos... do Quinto Império! JCN

Estudo Geral disse...

Sabe-se que é ao contrário.

João de Castro Nunes disse...

Olhe que não; olhe que não!... JCN

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz –
Ter por vida a sepultura.

Sonhadora

João de Castro Nunes disse...

Será... o seu caso?!... JCN

João de Castro Nunes disse...

Acerca do Quinto Império
com capital em Lisboa
há mil e uma versões
para além da de Pessoa
que não passam de ilusões
para não tomar a sério.

JCN

João de Castro Nunes disse...

Camões, que tudo conhece,
não falou do Quinto Império,
o que, a meu ver, me parece
ser a chave do mistério:

talvez seja brincadeira
do Padre António Vieira!

JCN

Anaedera disse...

Quinto império existe desde que o Homem o pense e o faça. Desde Lisboa a Calcutá, em qq lugar do mundo, sem nação ou cultura.
Transcendendo qq história, cultura ou regra humanas.
Ao Homem pertence e ao Homem lhe será dado, desde que o sonhe e alcance.
Basta que aprenda a ser criança, de novo!

João de Castro Nunes disse...

Como é que se aprende a ser criança... não o sendo?!... Qual será a regra de ouro... que nos conduz a esse estado... ultrapassado?!... Criancices... gratas de ouvir, quando a infância já vai longe! Como colecciono versões de Quinto Império, vou juntar mais esta... à colecção. Talvez o Manoel de Oliveira se inspire nele para um novo filme. Vou-lhe fazer essa sugestão: O Quinto Império das Crianças! Alinho... nessa. JCN

João de Castro Nunes disse...

Será que, a nível mundial, vamos ter uma guerra de Quintos Impérios... infantis?!... JCN

Anónimo disse...

O humor de JCN é impagável!
Insuperável!
Rio quase sempre.

Quem pode não rir desta frase:

"Será que, a nível mundial, vamos ter uma guerra de Quintos Impérios... infantis?!... JCN"

Não creio que seja fácil! A qualquer medíocre competir nesta área, também.

Com mais piada só esta, da minha "graciosa" lavra:

"Eu acho que JCN é uma criação minha!"

Um sorriso de empatia JCN!

João de Castro Nunes disse...

Tão graciosamente afirmada, quem não se honraria com tal maternidade?!... Sempre "fagulhas de ouro"! E mãos cheias de esmeraldas! JCN

Anónimo disse...

... Tudo preciosidades para o Quinto Império ... espiritual, JCN!

A guerra dos "infantes imperiais" é uma coisa que me põe a pensar...
que morreu D. Sebastião!?... mas não morreu a ideia dele. Receber não é ser dono. É agradecer e retribuir...

As ideias não morrem, renascem e reactualizam-se... como os sonetos.
As ideias são como os sonetos (quando não se encravam as máquinas... e não se "en (pan) ca" a vida)

Tanto a tristeza como a alegria são "molas", ânimo e coragem de agir: a cada um segundo o seu Amor, dizia Camões, e segundo o seu entendimento... terá dito Pessoa...

O que em nome de uma vontade superior a si mesmo, tiver força para sonhar... será nele que mora o Quinto Império. Posto que não é deste mundo, o que a si se supera, abdicando da sua pessoa, transcendendo-se, ganhando-se asas!
Esse é o que regressará!

"Será que o futuro nos reserva... um conflito mundial de Sebastiões com asas?" (Aqui, surge o momento de auto-irinia necessária!)

Já para aqui estou a falar há algum tempo... vou-me retirar e repousar.

João de Castro Nunes disse...

Sabia, "saudadesdofuturo", que na preciosa armadura milanesa do meu "irmão-de.leite", o "temor da maura lança", a "bem nascida esperança", estava representada a "Fénix renascida"?!... Dá, efectivamente que pensar! Sabe também que eu guardo uma das três penas caídas do elmo do "Encoberto" na batalha que lhe deu a imortalidade... comigo ao lado?... Coisas do arco-da-velha, que estou sempre a recordar. Olhe que D. Sebastião não "morreu"! Ele é que "morreu a verdade", ou seja, morreu por ela. Tanto se morre como se vive a verdade. Pessoa, com as suas originalidades, tornou o verbo transitivo. Uma das suas geniais liberdades poéticas, sem pedir vénia à Academia das Ciências... que seguramente não lha dava. Terei razão?... JCN

João de Castro Nunes disse...

ELEGIA

Ai! Dom Sebastião, que lhe fizeram,
que lhe fizeram, que ainda não voltou?...

Nos areais de Alcácer o deixaram,
lá o deixaram, nunca mais o viram...
sete espadas o peito lhe vararam
e trê4s penas do elmo lhe caíram!

A1! Dom Sebastião, que lhe fizeram
que lhe fizeram que ainda não tornou?...

Corpo de Rei, por mais que se buscara
não se encontrou:
de todas as empresas que sonhara
só o seu Sonho não se malogrou!

Ai! Dom Sebastião,
que lhe passara,
que lhe passara, que não mais voltou?...

JOÃO DE CASTRO NUNES

Anónimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

Foi a Verdade que o matou, a D. Sebastião! Há pois que viver a Verdade que há nesse "erguer da asa".

Ter por vida a "morte", ser sepulto em vida é ser "feliz" por não saber ser "triste"... por não saber morrer(se) pela Verdade.
Para que seja vivida por todos, terá que morrer.
"Quem vem viver a verdade"

Pessoa visiona o Quinto Império como o "sonho" de quem ousa viver a "morte da verdade",e nessa vivência, nascer, fazer despertar, tornar claro, por oposição à "erma noite"... Esse "claro dia" será o nascimento do mito...

O Quinto Império é sempre um para além do tempo e do espaço. É insituado, instaura-se e visiona-se como um para além do real e do possível... e por isso ele, o mito levantado em Quinto Império, o mesmo a um outro nível, D. Sebastião, o mito que "é um nada que é tudo."

Não é a "Ilha Afortunada" e a "Máquina do Tempo" é o avesso dela... O outro lado do Ser português que se terá morrido para a busca de uma "Nova Índia" dessa da alma, não a assente na geografia do mundo, mas a que se suspende, sem gravidade, no espaço insituado, na dimensão indimensionada de uma "geografia da alma" e do Espírito de novos e ousados voos!

Quem vem viver a verdade/ Que morreu D. Sebastião?

Não morreu, certamente, a Verdade que o "viveu",a D. Sebastião,tão só nasceu desse "morrer", o mito que nos vive ou morre, como queiramos que ele nos seja.

P.S. Já percebi porque sou poeta e não sou filósofa... E também já percebi por que razão JCN prefere o soneto. (risos)

Não se quer meter em Quintos!... Prefere as Ilhas... Afortunadas, JCN!

João de Castro Nunes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
João de Castro Nunes disse...

Prefiro tudo quanto seja belo e gracioso... como as suas rendilhadas palavras! Pode crer. JCN

João de Castro Nunes disse...

O MEU PREITO

Pbre menino cheio de mazelas,
filho de Infante ainda adolescente,
criado pela Avó, como Regente,
que o induziu a sobrepor-se a elas!

Quis que ele fosse um Rei como sonhou,
um grande cavaleiro, um grão cruzado,
continuador das górias do passado,
esteio da nação... que o "desejou".

Sem defraudá-la... e superando a custo
os seus achaques, que escondeu do Povo
que nele via o seu herói... (tão novo!),

veio a morrer de pé, armas na mão,
lutando contra as forças do Islão:
permitam que eu me curve ante o seu busto!

JOÃO DE CASTRO NUNES

João de Castro Nunes disse...

Corrijo o termo "górias" por "glórias". JCN