O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O INV(F)ERNO DO MEU DESCONTENTAMENTO


chove comó (contração de preposição "com" com artigo definido "o") caraças
chove comó caraças

a meteorologia transformou-me em Ilha
num mar de água
num tufão de vento
num glaciar de frio

fogo - apetece pensar

as paredes do casebre grelam
transpiram
exsudam
têm febre

podia plantar nelas
todos os legumes que lá fora
na horta
morrem de asfixia
estiolam de aborrecimento

do lado
de onde devia nascer o Sol
-e à hora em que-
rebenta um relâmpago maluco
seguido de um trovão rouco
lento
prolongado como um comboio de mercadorias

espreito pela vigia do quarto
em busca de um vislumbre de bom tempo
e não consigo mais do que escutar
o rosnar da ribeira
como Doberman raivoso
no limiar da corrente

Ribeira é menos caudaloso do que Rio
mas mais do que Ribeiro
- como certas, muitas, fêmeas de insetos
e mulheres não poucas
de bairros suburbanos

muitas mulheres
são mais corpulentas que os maridos

conheci uma - ao Chafariz das Bravas-
casada com um ajudante de mecãnico
dizem que lhe dava porrada
sempre que ia às compras
e se perdia nos copos pelas tabernas

dizem - nunca vi

na minha Terra não havia Ribeiras
nem Rios
só Ribeiros e Regatos
pequenos
graciosos
cantarolantes como aprendiz de coro
de regresso a casa

pequenos graciosos
mesmo assim geradores de mitos
:
em Invernos destes
cresciam neles
pequenos seres filiformes como cobras
que nos diziam nascerem
de cabelos

isso eu sei - eu vi

é neste cenário de
irritação meteorológica
que vamos despedir-nos de 2009
e bater palmas
muitas palmas ao prometido auspicioso
sucessor 2010

uma taça de champanhe
subir numa cadeira ao som
da primeira das doze badaladas
semicerrar os olhos
e dar início à deglutição
das tradicionais doze passas
de bom Ano

cada badalada uma passa
cada passa um desejo

eu - perdulário incorrigível
desde que me conheço-
nunca acertei o passo com as passas

Não sei se alguma vez na vida
terei acertado passa
com desejo

talvez por isso
o andar por aqui à toa
entregue ao destino
como o bando de pintassilgos
que acabo de espreitar na rua

e não seja isso pior
do que acreditar
que a sexta passa que engulo
me vai trazer a Sorte Grande
na próxima extração
da Lotaria

14 comentários:

Anónimo disse...

Ainda que sempre esperando que o "milagre" acontece ao ritual inventado de um humano olhar sobre a deidade das coisas que acontecem mesmo.
E não é que saiu a lotaria ao Platero!
Vamos pois celebrar: a chuva, a mulhaer que batia no marido; a "fanhosice" que me afectou as cordas vocais...
Brindemos pois à chuva e... ao "caraças"... do tempo... Senhor Abade!
O Inverno rosna de um lado, azula do outro e o ano... nada pode trazer-nos que não esteja já em nós... como as viagens que fazemos...
Viva o "grelado" nas paredes... como o assinala o "Pessoas" a lembras a casa da infância com os olhos falsamente gulosos de quem acredita que se é outro no estilo e na expressão.
Inventemos a vida! Inventemos a cena de um teatro absurdo...
Brindemos à ansiada Paz... entre todos... com todos... ao olhar fraternal, sim! ue nos tem esquecidos...
Não há ribeiras mais tormentosas que as da alma! Vivam as ribeiras tormentosas!
E chove, Platero, não porque há ribeiras que são "cães" expelindo águas... ou fontes de cristal onde bebemos, nívea a perfumada taça do mais puro sabor que nos fazemos ao mundo e do mundo.
Não ser dele... e... ainda assim...o que faz mover os astros e as estrelas nos guie... É o que desejo. É também O pelo qual levanto a minha taça!
Brindo a Isso! Por Isso!

Anónimo disse...

Como sempre que escrevo em caudal... sai vendaval!
Não corrijo. Desculpem!

platero disse...

só é bom
o que se faz em caudal
mesmo que um curto

etecetra e tal

beijo renovado

Anónimo disse...

Meu bom, Platero!
Meu Amigo!

João de Castro Nunes disse...

Que invernosas torrentes de humorística graça... transtagana! JCN

baal disse...

este é um poema de um homem justo e corajoso.
bom ano, platero.

baal disse...

o meu comentário foi o único acertado (assertivo), saudades ainda não brindámos e já estás com os copos?
vou fumar um cohiba.
noticia:(do povo)
em cuba todos sabem que fidel morreu e o povo tem sempre razâo, ou não?

João de Castro Nunes disse...

Felizmente que ainda há disso, como agulha em palheiro! JCN

João de Castro Nunes disse...

Refiro-me, evidentemente, ao autor do poema, não à múmia do Fidel! Comentários... cruzados. JCN

Anónimo disse...

É bem verdade baal, não bebi, não fumo cohibas... nem fumo... e já a coisa assim vai... baal.
Ora bolas! Valha-nos a luta. E à luta! Com as taças, não!Com as taças brindamos, mas tem que ser devagar para não se partirem. Isto não são copos de vinho, que é dia de festa!

São... não digo "povo entaçado" porque acho que é mais "anestesiado", antes do efeito...

Não há dúvida! O teu comentário foi tão assertivo que até levava chancela de punho revolucionário.
Pois claro que é à luta, baal!

Fidel é humano. Humanismo é uma nação, foi minha pátria de infância.
Um brinde à humanidade que há em nós e também ao divno que nessa mesma humanidade se concentra...

Um Ano cheio de muitas lutas ganhas!

Tendo sempre como objectivo a superação do mesmo homem, elevado em tudo!
Um abraço, baal!

Isabel Santiago disse...

Declaradamente belo, declaradamente desarmante, declaradamente puro. Assim é o Platero! Bom ano 2010!

platero disse...

Obrigado, Isabel

(Queluz?)

teu comentário obrigou-me a reler poema
e a gostar também

Bom 2010 -com passas a compasso

Isabel Santiago disse...

Nunca acertei com as passas, também. Prefiro pinhões e deles tenho a memória feliz de caminhar entre os pinheiros do meu avô paterno, com o meu pai a mostrar-me um corvo, e dos recolher das pinhas caídas e de me oferecer pequenas pérolas para eu fazer um colar. O sorriso dessa entrega acompanhar-me-á até ao fim dos tempos. Um sorriso de mel. O meu pai sempre foi mais doce a sorrir-me do que a falar.
Sim, PLatero, estará a fazer um ano quando o conheci em Queluz, no palácio...onde foi homenageado. Justissimamente.Um sorriso aberto a todas as homenagens aos que são bons e puros e desarmantes.

platero disse...

Beijinho, Isabel

Julgo que andas mais pelos Jardins da
Nossa Saudades. Que é Sublime.
Um grau superior da escrita
Estão bem as duas desfrutando um espaço etéreo comum

Bom 2010

Ocorre-me agora, e vou concretizar,
o envio de votos de Bom 2010 para nossos amigos do Grupo Coral de Queluz:

"Um 2010 com tudo do melhor para VOZ"

ou seria melhor VOZes?