O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Fialho de Almeida, Os Gatos

(...) Ah! como eu tive inveja do saloio que parou o burro à porta de uma mercearia de Bitesga, para comprar as duas dúzias de broas da consoada; do pobre engraxador da esquina, indo à praça, com a mulher, de fato rico, apreçar um quarto de perú; da varina entrando na salsicharia, radiante, a comprar salsichas, ao fim de ter deposto a canastra à porta,, rude presepe onde o filho loiro chuchava o dedo, com o ventre de sapo para o ar! Todas essas índoles do povo, roídas de penúria, vergadas de trabalho, primitivas, mas fecundas e convergentes, por uma fatalidade ancestral, à reedição das alegrias periódicas do ano, se me afiguraram infinitamente superiores à minha friável índole de janota céptico, demolindo no ar sem plano certo, negando pelo simples prazer do paradoxo, incapaz de estabilidade num problema, constantemente à procura de novo, e em cada topo de colina voltando-se, desesperado de só ter achado gosto -- ao que era velho. Ó meu pobre coração amortalhado de tristeza! diz como te dói o isolamento a que uma inteligência estéril te votou. (...)
... dia de Natal, eu que conheço toda a gente, não tive ninguém que me dissesse "anda jantar". Vinguei-me saindo de casa, e engajando os primeiros va-nu-pieds eventuais. Dois pobres do asilo, os uniformes sem nódoas, pouco bêbados. Marchámos para o Augusto, e na sala comum, a uma de cujas mesas nos sentámos, houve reboliço por banda das meretrizes e irregulares que, mais alegres do que eu, ali tinham ido fazer o seu jantar, em partie fine. Não descrevo a comida, registando apenas o trabalho gasto em despersuadir os meus dois comensais de não meterem no bolso os restos de cada prato do festim.
À sobremesa, um deles, bêbado, como eu o fitava com uma piedade cristã de filho pródigo, confiou-me que estivera quatro anos em África, por um roubo, e o Conselheiro X o metera no asilo, havia sete meses. O outro, era um velhinho abaulado, olhos de doido irónico, que fugiam, falando pouco; mas todo o jantar o suspeitei de celerado; tanto os seus monossílabos humildes, e os seus contínuos escrúpulos de consciência, lhe davam um ar de homem de bem. À despedida, o mais velho chamou-me conde, e o mais novo, doutor, sem acertarem e lá foram cambaleando, a rogar pragas a quem lhes fizera o serviço de lhes notar no crânio a apoplexia. Pobres malandros! Deixai o meu egoísmo abusar da vossa fome. Sem vós, eu não poderia dizer, como toda a gente: "Jantei hoje o Natal com dois amigos velhos."

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