O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 31 de agosto de 2010

"A noção de Poema"

se me perguntassem o que é poesia
julgo que teria muita dificuldade em responder

para mim é uma coisa muito vasta

hoje
manhã de calor intenso
na Esplanada do Arcada
uma respeitável senhora dizia
em voz audível à distância
:
mal entro em casa
a primeira coisa que faço
é ACENDER a ventoinha

ACENDER a ventoinha não me soa a bronca
a ignorância
sabe-me tão bem
como um ternurento verso
de CESÁRIO

Da actividade

Um zoólogo que, em África, observou de perto os gorilas, espanta-se com a uniformidade da vida que levam e com a sua ociosidade. Horas e horas sem fazerem nada... Desconhecerão eles o tédio?
Esta pergunta é típica de um homem, de um macaco ocupado. Em vez de fugirem da monotonia, os animais procuram-na, e o que mais receiam é vê-la terminar. Pois ela só termina para ser substituída pelo medo, causa de todo o tipo de azáfama.
A inacção é divina. E, porém, foi contra ela que o homem se insurgiu. Apenas ele, na natureza que lhe é própria, se revela incapaz de suportar a monotonia, apenas ele quer a todo o custo que alguma coisa aconteça, seja ela qual for. Nisso, mostra-se indigno do seu antepassado: a necessidade de movimento é característica do gorila desencaminhado.

E. M. Cioran

O que penso

A noite longa;
O rumor da água
Diz o que penso.

- Gochiku

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

matinário

EXPLICAÇÃO DO BLOG


blog é uma coisa que existe

e ao mesmo tempo não existe


mas que hoje

quase toda a gente tem


como nos anos 20

os homens bigode

e as mulheres chapéu


ou melhor

:

vice-versa


blog é uma coisa

para a gente escrever


como um caderno

-só que sem linhas

nem folhas

nem capa

portanto sem papel


um caderno sem papel


não tem princípio

nem tem fim


escrevemos nele como se escrevêssemos no ar


quando apagamos aquilo que escrevemos

as palavras ficam a pairar

como nuvens ou raios de sol

-consoante a natureza das ideias

contidas nas palavras

que acabámos de apagar


a ciência garante

que a poluição deste exercício

é muito superior ao CO2

da combustão

de todos os motores do mundo


não admira

:

ainda ontem

um conhecido advogado

escrevia no seu Blog

:

a minha constituinte é incapaz

de pegar um euro

que não seja legalmente seu


apagar - enviar para o éter

semelhante afirmação

é produzir

mais metano ou dióxido de carbono

do que uma manada de vacas a pastar

ou uma velha bomba russa

a bombar água

de uma mina de carvão


o Blog é um caderno

sem princípio nem fim - já o sabemos -

que não se compra

nas livrarias

nem nas capelistas de esquina


não tem linhas

nem folhas

-parece que de borla, repetimos-

uma dádiva dos céus

como agora os figos

ou para o mês que vem as uvas


nada mais errado

:

este caderno

sem a capa com um círculo azul

em que navega

uma caravela dos descobrimentos portugueses

este caderno - dizia -

tem um preço


nem baixo

por sinal


pago ao longo dos dias

das semanas

dos meses

dos anos

escreva-se ou não

no que deviam ser as linhas

-que não tem


só duas ou três livrarias

em cada país

vendem esta espécie de cadernos


em Portugal

uma das principais

vendeu agora uma das lojas no Brasil

quase pelo valor

da dívida externa do país


é isto um Blog

e eu tenho um

bem como agora sete gatos

e um mercêdes benz

do tempo ainda

da Alemanha dividia


tenho um Blog e escrevo nele

como se lápis e papel

fossem reais

e eu escrevesse ali

o melhor e o pior

da minha vida


sábado, 28 de agosto de 2010

Cada nascimento é a tentativa vã de caber no mundo. Morrer é a prova de que não conseguimos.

Estou aqui
Como podia estar acolá dentro de um vaso
Numa de experimentar ser flor
Que come e bebe do que lhe dão

Podia estar na Jamaica a apanhar calor
Ou no fundo de um poço possante
A criar laços de amizade com o silêncio

Podia estar em qualquer parte do mundo
A contar anedotas num palco
Estar viciado em literatura moderna
E comer páginas inteiras para fingir que morro

Podia dizer que sou outra coisa
Para além daquilo que sou e teimo
Pedir a direcção do mar a uma gaivota
Que veio à cidade comer uns aperitivos

Podia ir mais abaixo que o fundo de mim
Verificar se por lá existe alguma porta aberta
Por onde o vento arrasta os mendigos,
Os frutos e as manhãs nucleares

Cantar o amor à janela de uma janela qualquer
Ou medir distâncias entre o passado e o futuro
Com um morto em pé
Ou fundar o amor a par da revolução que aí vem

Podia engolir a bússola que me há-de dizer
Para que lado fica os poetas mortos
que nas mulheres fazem alegrias
Onde é que se sonha com uma perna às costas
Quem anda por aí a dizer que a verdade pariu pela boca

Podia evitar sal na comida e assim evitar poemas salgados
Cair ao chão, partir-me em quatro
E aprender como se inicia uma nova vida
Sem dar baixa nas finanças

Procurar um céu dentro do céu
Ver Deus a costurar asas aos Homens
Com o fio de uma extensa lágrima

Podia morrer de vez em quando
Para assustar o sonho e a vida
Cantar como se fosse o primeiro
A quem a morte o beijou

Podia ir à casa do Herberto H.
E falar-lhe das minhas plantações de poemas
Mas sei que o Herberto H. tem a sua plantação de poemas
Mais bem cuidada do que a minha
E está louco, mas a rir,
Porque os homens acham que a plantação faz-se na terra

Espero um dia colher bons poemas à boca de sino
E chamar os amigos cá a casa para um almoço
Dar um verso a cada um
E no final chamar o cão-poeta para fazer um bailado

Podia ser marinheiro, ideia a percorrer o mar,
Azul terra, verde céu, menino branco no colo de mãe-preta,
Podia ser grande como o Herberto H.
Ou como o Daniel
Que antes de ser livro fora árvore andante

E eu podia ser o nem tão pouco mais ou menos
Ou aquela luz que a noite roubou
Sim podia, mas a verdade é que eu estou aqui
E daqui vejo tudo a crescer
Os poemas também
Isto é,
Desde que o sol não seja em demasia
E as minhas mãos não façam tremer a paisagem

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Passagem de Raimon Panikkar, colaborador e membro da Comissão de Honra da revista "Cultura ENTRE Culturas"



http://www.corriere.it/cultura/10_agosto_27/panikkar-sacerdote-filosofo_fdbddf64-b1b3-11df-a044-00144f02aabe.shtml

Raimon Pannikar partiu ontem deste mundo. Recebo uma notícia que já aguardava. Estive para me encontrar com ele em 14 de Janeiro deste ano, para o entrevistar para o primeiro número da revista "Cultura ENTRE Culturas", que dirijo. O encontro foi cancelado uns dias antes, devido ao seu extremo cansaço. Ainda enviou um texto, que publiquei no referido número e que deve ter sido uma das últimas, senão a última, das suas intervenções públicas, pois logo a seguir recebi uma circular para os amigos dizendo que se retirava de todas as aparições públicas directas e indirectas e pedindo que nos mantivéssemos em contacto pela oração, na fase final da sua vida. Foi o grande mentor de um verdadeiro diálogo intercultural e inter-religioso, ainda muito longe de acontecer, e deixou uma obra enorme, verdadeira ponte entre Oriente e Ocidente, lamentavelmente muito desconhecida ainda. Admiro-o imenso e tive a honra de prefaciar o seu livro "O diálogo indispensável. Paz entre as religiões" (Zéfiro, 2007), entre nós praticamente ignorado. Que repouse na Paz e na Luz, transcendentes a todas as religiões e vias!

Imitação ao jeito de Platero



paciente: Sôtor, ultimamente tenho sentido umas grandes dores de cabeça...
De dia ando tonto, de noite não consigo dormir...
Será que me pode ajudar?
médico: Ah! Não é nada que não se resolva!!
Vai começar a tomar Platótelesum, de manhã e à noite.
Vai ver que se sentirá melhor!

poesia não será forma superior de abrir caminhos?

(para PAULO BORGES)

poema quase brincadeira meu
publicado em "Mais Évora",
de um tal Manoelinho,
que à semelhança de "Serpente"
há muito se abriu aos meus poéticos arroubos

:
COMPREENDER EINSTEIN

se massa e energia são equivalentes

e= mc2

por que não fazer bombas atómicas
a partir de pães de Kilo?

(assinava, como habitual, PLATERO)

MLeonor, que à semelhança de Manoelinho,
não sei quem seja
comentava deste modo
- com um poema que
para mim
ganha dimensão verdadeiramente universal

:

COMPREENDER PLATERO


se massa e energia são equivalentes

e= mc2

por que não fazer pães de Kilo
a partir de bombas atómicas ?

assinava MLeonor


quinta-feira, 26 de agosto de 2010

A morte da "Filosofia Portuguesa" (texto de Miguel Real sobre "Uma Visão Armilar do Mundo", publicado no JL de 25 de Agosto)



O movimento da “Filosofia Portuguesa” nasceu em 1943, em torno da publicação do livro de Álvaro Ribeiro, O Problema da Filosofia Portuguesa, reivindicando o legado espiritual de Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoais, Leonardo Coimbra e Fernando Pessoa. Neste movimento cultural ganhou raízes um dos mais importantes grupos de pensadores portugueses do século XX – José Marinho, António Quadros, Afonso Botelho, Orlando Vitorino, Pinharanda Gomes, António Braz Teixeira… -, que revolucionaram o pensamento filosófico português. Com a recente publicação de Uma Visão Armilar do Mundo, de Paulo Borges, autor cujos primeiros livros operavam o cruzamento entre as teses da “Filosofia Portuguesa” e a filosofia de Agostinho da Silva, pode dar-se por terminado este movimento. As teses fundamentais da “Filosofia Portuguesa” sublinhavam o sentido nacional de um espiritualismo profético firmado na língua portuguesa, um providencialismo vanguardista firmado na cultura portuguesa, um serviço missionário prosélito e messiânico de regeneração de Portugal contra o positivismo, o materialismo e o cientismo europeus. O Império aí estava para garantir e recordar aos cépticos o papel de Portugal no mundo como rosto avançado da espiritualidade cristã. Porventura os mais fortes documentos históricos sintetizadores das teses do grupo serão os números 1 e 2 da revista 57. Movimento de Cultura Portuguesa (dir. António Quadros), o primeiro com o “Manifesto de 57” e o segundo com o “Manifesto sobre a Pátria”, bem como o texto O Espírito da Cultura Portuguesa (1967), de A. Quadros. Assim, em finais da década de 1950, princípios da de 60, o núcleo filosófico das teses aristotélico-cristãs alvarinas, apresentado em 1943, ganhara uma dimensão política patriótica e imperial.

Paulo Borges, sintetizando o núcleo central das teses da “Filosofia Portuguesa” a partir de cinco estudos relativos ao Quinto Império (Camões, Vieira, Pascoaes, Pessoa e Agostinho da Silva) e da transformação dos dez mitemas da cultura portuguesa de A. Quadros em “instâncias [ontológicas] de realização de si”, do “nosso ser e consciência mais universais e profundos” (p. 206), propõe uma verdadeira desnacionalização da “Filosofia Portuguesa” [“o conceito de identidade nacional é, pois, tal como o de identidade pessoal (…) uma mera abstracção que em última análise apenas funciona na lógica da ignorância dualista que predomina na mente humana”, pp. 230-231), integrando-a na lógica de um “patriotismo transpatriótico” (p. 232), universalista, superador de Portugal e da lusofonia numa comunidade ecuménica, global, de toda a humanidade.


Para Paulo Borges (cf. Manifesto “Refundar Portugal”, pp. 235 – 243), as “pátrias” fazem parte, hoje, do “círculo vicioso e infernal” (p. 232) que impede a existência de uma “cultura da paz, da compreensão e da fraternidade à escala planetária, que hoje se sabe não poder visar apenas o bem da espécie humana, mas também a preservação da natureza, da biodiversidade e do direito à vida e ao bem-estar de todas as formas de vida animal, como condição da própria sobrevivência da espécie humana e da qualidade e dignidade ética da sua vida” (p. 236). Dito de outro modo, o nacionalismo, sobretudo o nacionalismo filosófico, é encarado hoje como um prolongamento serôdio (senão uma excrescência) do século XX. De certo modo, o novel conceito de “razão atlântica”, de A. Braz Teixeira, já apontava neste caminho, mantendo, no entanto, um vínculo ontológico forte à língua e à cultura portuguesas. Neste sentido, a uma época de globalização corresponde um pensamento globalizado, no qual, ainda que com sólido respeito pelas filosofias passadas, como o faz Paulo Borges, a busca de novas raízes e novos horizontes de transcendência superam o arreigamento aos clássicos conceitos históricos gerados em torno da rivalidade entre pátrias e nações.

Neste sentido, Uma Visão Armilar do Mundo estatui os cinco grandes autores portugueses acima citados, não como estritos pensadores da identidade nacional, como limitados “pensadores portugueses”, mas, enquanto portugueses, autores que visariam, de um modo universal, as quatro características manifestadas simbolicamente na “esfera armilar”: “perfeição, plenitude, totalidade e infinidade” (p. 10). Como se vê, não se trata de “nacionalizar” Camões, Vieira, Pascoaes, Pessoa e Agostinho da Silva, mas, ao contrário, de os universalizar como símbolos passados de um mundo novo português e lusófono, num “ímpeto de ser tudo de todas as maneiras e nisso sacrificar, esquecer e perder a própria identidade, transfigurando-a divina e cosmicamente” (p. 11). Ou seja, para que Portugal ressuscite sob formas superiores, Paulo Borges defende a morte do Portugal do século XX (o Portugal monárquico, republicano, estadonovista, socialista, social-democrata), integrando-se no grande futuro global do mundo, regido por outras e muito diferentes regras, que os antigos designaram por Quinto Império.

Importantíssimo chamar a atenção do leitor que, com este livro, Paulo Borges, sem abandonar a tematização sobre a vocação universal da cultura portuguesa, “despatriotiza” e “desnacionaliza” vincadamente o seu pensamento, marca permanente da sua filosofia desde Do Finistérreo Pensar (2001), sublinhando as características mais fundamente filosóficas (isto é, universais, ontológicas, metafísicas) e minimizando as mais explicitamente circunstanciais ou “nacionais”, ou, melhor, espiritualiza (o primado da consciência) de um modo “armilar” o que restava pertinente ou exclusivo da cultura portuguesa. Face a um pensamento assim tão pujantemente planetário, as teses da “Filosofia Portuguesa”, fundadas num aristotelismo cristão (Alv. Ribeiro), num esoterismo português (A. Telmo) ou numa “patriosofia” (A. Quadros), com uma particular apetência para o repensamento do Deus cristão (Amorim Viana, Cunha Seixas, Sampaio Bruno, Pascoaes), constituem-se como figuras tutelares, avoengos de retrato figurado nas galerias da história passada. Paz à sua alma (a “Filosofia Portuguesa”), que a vida lhe foi farta e, com discípulos como Joaquim Domingues, Paulo Borges, Renato Epifânio, Rui Lopo, António Cândido Franco e Rodrigo Sobral Cunha, a terra não lhe será pesada.

Uma Visão Armilar do Mundo. A Vocação Universal de Portugal em Luís
de Camões, Padre António Vieira, Teixeira
de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva
,
Lisboa, Editora Verbo, 2010, 243 pp., 18 euros.

"tudo corre"

«Enquanto houver madeiros estendidos sobre a água, enquanto houver pontezinhas e parapeitos vencendo o rio, na verdade não se dá crédito aos que pretendem que "tudo corre".
«Até os próprios imbecis o contestam. "O quê? - dizem os imbecis - tudo corre? Contudo, os madeiros e os parapeitos mantêm-se firmes por cima do rio."
«Tudo o que está por cima do rio é sólido, todos os valores das coisas, as pontes, as noções, o bem e o mal, tudo isso se mantém.
«Chega o rude Inverno, o domador de rio, e os mais maliciosos aprendem a desconfiar; e na verdade apenas os imbecis são então capazes de dizer: "Não será verdade que tudo está - imóvel?"
«No fundo tudo permanece imóvel; eis um verdadeiro ensinamento do Inverno, uma boa coisa para os tempos de esterilidade, um consolo para os hibernantes e para os sedentários.
«"No fundo tudo permanece imóvel"; mas é contra este facto que prega o vento do degelo.
«O degelo, touro que nada tem de boi de trabalho, touro furioso e destruidor, que quebra o gelo com cornadas. Ora o gelo, por sua vez - quebra as pontes.
«Ó meus irmãos, não é verdade que agora tudo corre? Não caíram à água todos os parapeitos, todas as pontes? Quem poderia ainda agarrar-se ao "bem" e ao "mal"?
«"Ó infelicidade! Ó felicidade! Eis o vento do degelo!" Ide pregar esta verdade por todas as ruas, ó meus irmãos.»

F. Nietzsche, Assim Falava Zaratustra, tradução de Alfredo Margarido, Guimarães, 2007, pp.269-270

sem título

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

saudade

Saudade dos teus poemas
da melodia que agora se escapa
diz-me que o mundo é mundo
agora que escalaste a montanha
diz-me que o mundo
ainda é mundo agora que partes
Antes,
faz-me acreditar que fui tua
neste segundo que inventei eterno

O que é Portugal? - II

II

Para quem esteja habituado a pensar Portugal como uma id-entidade, seja qual for a determinação fundamental que lhe der – espiritual, material, histórica, cultural, política, sócio-económica, etc. - , a análise anterior parece haver conduzido a uma dissolução de Portugal, a uma anulação da sua existência, que aparenta contradizer o mais elementar senso comum e a evidência de que há efectivamente alguma coisa de diferenciado, singular e concreto nisso que se concebe e designa como Portugal.

Se analisarmos bem, veremos que assim não é e antes pelo contrário. A demonstração da não constituição de Portugal como id-entidade, em si e por si, fora da sua conceptualização e id-entificação mental e emocional, que é uma identificação do construtor com isso mesmo que constrói, a demonstração de que, nesse sentido, nunca houve Portugal como uma entidade separada dos sujeitos em devir que o constroem e se constroem pelo pensamento, pela palavra e pela acção, não pode obviamente ser uma destruição ou anulação do quer que seja, pelo simples facto de não se poder destruir algo que nunca existiu, não existe e jamais pode vir a existir. O despertar de um sonho ou o dissipar de uma miragem não destroem nada de realmente existente e, na verdade, nem sequer destroem uma ilusão: apenas deixam de a alimentar, apenas designam o fim da construção, inconsciente, de uma falsa percepção do real, apenas assinalam o cessar de uma ficção da consciência pelo seu reconhecimento como tal. Do mesmo modo, o despertar do sonho ou da miragem de um Portugal substancial, existente em si e por si, dotado de uma id-entidade autárquica e imutável, um Portugal-ser e essência, não destrói nada, porque nada disso há para destruir. Analisado e revelado na sua natureza autêntica, Portugal não passa do ser ao não-ser, revelando-se antes a impertinência dos conceitos de ser e não-ser para pensar a natureza profunda das coisas, sejam nações ou indivíduos.

O que se revela então como a natureza autêntica disso que designamos, pensamos e vivemos como Portugal e que antes concebíamos de forma identitária? Precisamente a mesma natureza de tudo o mais: um devir, um fluxo, um processo, uma metamorfose. O que não quer dizer que, na trama global do devir do mundo e da consciência, esse devir, fluxo, processo e metamorfose a que chamamos Portugal não assuma, a cada instante e ao longo de períodos mais ou menos contínuos, certas diferenciações e singularizações específicas, sempre em mutação e inseparáveis daquilo de que se destacam e das consciências que as apreendem e vivenciam. Essas diferenciações e singularizações momentâneas, elas mesmas sempre em gestação e metamorfose, não podem, por isso, jamais pensar-se como diferenças e singularidades definidas, definitivas e constitutivas, enquanto propriedades intrínsecas ou modos expressivos de uma alma, espírito ou ser nacional, no sentido da id-entidade substancial e essencial cujo equívoco denunciamos. É aliás livres de todas as categorias e (pre)conceitos identitários que podemos aceder mais intimamente à experiência dessa diferenciação e singularização, diríamos energética, do processo que designamos como Portugal, patente na paisagem, nos animais, nos rostos, nos afectos, nas falas, nos odores, nos sabores, nas tradições, inovações e aspirações, em tudo isso que, livre de o isolarmos como nacional, nos entreabre um Portugal mais profundo, um outro Portugal, trama de cintilações em devir do jogo do mundo. É quando não pensamos identitariamente que se respiram as atmosferas e se revelam as tonalidades mais íntimas e profundas, complexas e múltiplas, sempre em mutação e interacção, dos povos, nações e culturas.

Que Portugal seja um devir, um fluxo, um processo e uma metamorfose é precisamente o que a história política mostra, uma mutação contínua, complexa e interdependente onde o fixismo utilitário demarca períodos cronológicos que na verdade não são senão recortes fotográficos de um mais fundo e complexo fluxo de eventos e vivências que escapam à comum apreensão e ao seu registo convencional (para não falar da história cultural, onde as múltiplas, distintas e simultâneas linhas de mutação são ainda mais evidentes): Fundação, Descobrimentos e Expansão, Domínio Filipino, Restauração, Império Brasileiro e Independência do Brasil, Guerras entre liberais e absolutistas, Regeneração, Implantação da República, Estado Novo, 25 de Abril e restauração da democracia na III República. Na verdade não se pode dizer que qualquer um destes momentos pertença a uma entidade Portugal que supostamente se manteria idêntica a si mesma ao longo da variação dos seus períodos históricos. Esse suposto Portugal, do qual incriticamente falamos, quando não reflectimos sobre o sentido do que pensamos e dizemos, não é com efeito senão uma ilusão de óptica, um filme, coproduzido pela percepção de todos os que conferem uma unidade substancial à sucessão vertiginosa de acontecimentos conexos mas diferenciados. Com efeito, a razão e a experiência não permitem considerar que o Portugal da Fundação, o Portugal dos Descobrimentos ou o Portugal pós-25 de Abril sejam idênticos, nem mostram qualquer entidade Portugal como condição transcendente ou transcendental desses três períodos, embora também não se possa dizer que difiram absolutamente, ao ponto de não haver nenhuma conexão entre si, o que é manifestamente falso. Somente essa conexão não parece obedecer a uma qualquer intencionalidade ou finalidade imanente ou transcendente intrínseca a uma entidade Portugal - interpretação que indevidamente antropomorfiza a vida das nações, à imagem e semelhança da vida psicológica dos sujeitos humanos - , nem se restringe a estes supostos acontecimentos e momentos da história de um Portugal unitário, complexificando-se antes na medida em que se estende, em cada um deles, a diferentes e inumeráveis acontecimentos e momentos da história de vários outros povos, nações e culturas. Que, na Fundação, são diferentes povos e reinos ibéricos, cristãos e muçulmanos, nos Descobrimentos são múltiplos povos, nações e culturas mundiais e, no pós-25 de Abril, são os povos e nações de língua portuguesa, a comunidade das nações europeias e todos os povos e nações com quem mantemos relações mais próximas.

Na história do processo Portugal avulta aliás, pela dimensão mundial assumida a partir dos Descobrimentos, e como temos destacado, na linha dos principais pensadores e poetas deste devir, um entretecimento armilar com os processos de muitos povos, nações e culturas planetários [1]. Um dos aspectos mais salientes que parece diferenciar e singularizar assim o processo Portugal é uma íntima interpenetração com a história do planeta. Ou seja, diferencia-o e singulariza-o o que simultaneamente mais o indistingue da trama em devir do jogo do mundo.

[1] Cf. Paulo Borges, Uma Visão Armilar do Mundo. A vocação universal de Portugal em Luís de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, Lisboa, Verbo, 2010.

Ser

Quer saia da boca de um merceeiro ou de um filósofo, a palavra ser, tão rica, tão tentadora, tão carregada de significado na aparência, não quer afinal dizer coisa nenhuma. É inacreditável que um espírito sensato possa recorrer a ela seja em que ocasião for.

E. M. Cioran

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O que é Portugal ? (início do texto a sair no próximo número da Nova Águia)

I

A melhor resposta a uma pergunta é a interrogação sobre o seu sentido. O que imediatamente nos desorbita dos hábitos e mecanismos cultural e socialmente dominantes. O que imediatamente nos leva a pensar para lá dos conceitos que são a moeda corrente das transacções mentais humanas.

Perguntar “o que é” pressupõe que o objecto em questão seja, no sentido de algo definido, um ser, um ente, uma id-entidade, pré-condicionando assim a resposta, que, seja qual for, sempre se moverá no círculo restrito da id-entificação. É este, porventura, o condicionante maior das línguas de matriz indo-europeia, particularmente activo no logos grego que, desenvolvido na ágora, o espaço público da polis, cedo enfeudou a filosofia ocidental a um projecto político-científico de redução do real a um conjunto de entidades e identidades definidas e determinadas, possibilitando o seu conhecimento conceptual, a sua ordenação mental e política e a comunicação ao serviço da vontade de poder presente em ambos. Com efeito, aquilo que passa por ser realidade, aquilo que passa por ser, resulta de uma instauração linguística e histórico-cultural de significados, sentidos e valores, ou seja, de um mundo ordenado e estável, sobreposto ao devir universal, onde o conhecimento e a acção humanos e antropocêntricos sejam possíveis, mas cuja convencionalidade se esquece nos hábitos de representação e prática que configura, como uma ficção que, pela sua repetida narração e encenação, passasse a considerar-se como a própria e única verdade. Foi este projecto que predominou na cultura mundial, padronizando o actual regime comum de consciência segundo o paradigma do logos ocidental.

Aplicada a Portugal, bem como a qualquer nação ou colectividade, a pergunta “o que é” avulta em problematicidade. Com efeito, se é difícil aplicar a categoria de ser – no sentido substancial, de algo que exista em si e por si, dotado de uma id-entidade própria – aos seres que como tal convencionalmente se designam – coisas, homens, animais - , uma vez que neles apenas verificamos processos, fluxos e metamorfoses contínuos e interdependentes, entre si e das mentes que os percepcionam, mais falacioso será pretender encontrar um ser e uma id-entidade em Portugal, realidade com-posta que a razão e a experiência não mostram dotada de uma existência em si e por si, que não esteja constitutivamente sujeita à mesma metamorfose e interdependência de todos os elementos que nela se agregam: a natureza compreendida no seu território, terra, flora e fauna, a acção e a organização social, económica, política e jurídica, a história, a cultura material e espiritual, a língua e, sobretudo, os factores do conceito de que tudo isto é Portugal, ou seja, todos os que assim o pensam e constroem, portugueses e estrangeiros, habitantes ou não do seu território. Na verdade, é apenas nas e pelas representações e acções dos homens, nacionais e estrangeiros, habitantes de Portugal ou não, que surge o conceito de que há Portugal, de que a agregação dos diferentes elementos referidos constitui uma id-entidade una, substancial e autárquica, existente em si, por si e para si. Todavia, analisado com desassombro, enquanto produto histórico-cultural complexo, constituída por múltiplos elementos tão cambiantes quantas as vidas e as mentes humanas deles indissociáveis, é manifesta a impertinência de se pressupor em Portugal um ser e uma id-entidade no sentido substancial. Uma coprodução histórico-cultural e linguística, que por definição está sempre in-definida e em curso, jamais pode, em rigor, constituir um ser e uma id-entidade fixos e imutáveis, jamais pode id-enti-ficar-se.

Analisar e pensar a fundo a realidade que se designa como Portugal leva-nos assim a vê-lo antes como um devir, um fluxo, um processo e uma metamorfose, interdependente dos devires, fluxos, processos e metamorfoses que são as vidas e as mentes de todos os que, sendo ou não portugueses e habitando ou não o seu território, o pensam e com ele interagem como tal. Livre da abstracção e ficção identitária, surge assim um Portugal simultaneamente mais real, concreto e indeterminado, que extravasa das fronteiras territoriais e administrativas, históricas, linguísticas e culturais, bem como da fronteira conceptual que separa Portugal e mundo, numa osmose com a história do planeta e com o processo em aberto da consciência e da realidade.

O mesmo acontece, naturalmente, com os demais povos, nações e culturas, tal como com todos os seres e coisas. Todos devêm em todos. Todas devêm em todas. A natureza profunda do real é a de uma dinâmica e metamórfica interpenetração universal.

sábado, 21 de agosto de 2010

Nota biográfica de António Telmo (1927-2010)

António Telmo Carvalho Vitorino nasceu no dia 2 de Maio de 1927, em Almeida. Entre os dois e os seis anos, viveu em Angola com a família. Quando esta regressa a Portugal, fixou-se em Alter-do-Chão e, mais tarde, em Arruda-dos-Vinhos. António Telmo viverá por lá até aos seus dezasseis. Antes de ir estudar para a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ainda morará em Sesimbra. Na sua infância e juventude, foi um autodidacta. Estudava em casa e fazia os exames em Lisboa.
Aos vinte e três anos, entra para o grupo da Filosofia Portuguesa, depois de ter conhecido José Marinho (1904-1975) e Álvaro Ribeiro (1905-1981).

A convite de Agostinho da Silva (1906-1994) e de Eudoro de Sousa (1911-1987), foi professor de Literatura Portuguesa, durante três anos, na recém-formada Universidade de Brasília. De lá foi para Granada e, só depois, é que voltou a Portugal. Foi director da Biblioteca de Sesimbra e posteriormente radicou-se em Estremoz como professor de Português. Faleceu hoje, ao princípio da manhã, no Hospital de Évora.

Deixa uma extensa obra:

- Arte Poética, Lisboa, Guimarães, 1963.
- Gramática secreta da língua portuguesa, Lisboa, Guimarães, 1981.
- Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, Lisboa, Guimarães, 1982.
- O Bateleur, Lisboa, Átrio, 1992.
- Filosofia e Kabbalah, Lisboa, Guimarães., 1989.
- História Secreta de Portugal, Lisboa, Vega, 1977.
- Horóscopo de Portugal, Lisboa, Guimarães, 1997.
- Contos, Lisboa, Aríon, 1999.
- O Mistério de Portugal na História e n’ Os Lusíadas, Lisboa, Ésquilo, 2004.
- Viagem a Granada, Lisboa, Fundação Lusíada, 2005.
- Contos Secretos, Chaves, Tartaruga, 2007.
- Congeminações de um neopitagórico, Vale de Lázaro, Al-Barzakh, 2006/ Lisboa, Zéfiro, 2009.
- A Verdade do Amor, seguido de Adoração: cânticos de amor, de Leonardo Coimbra, Lisboa, Zéfiro, 2008.
- Luís de Camões, Estremoz, Al-Barzakh, 2010.
- A Aventura Maçónica, Lisboa, Zéfiro, 2010.
- O Portugal de António Telmo, Lisboa, Guimarães, 2010.

O seu funeral realiza-se amanhã, 22 de Agosto, em Estremoz, pela 9 horas.

Fonte: Nova Águia

"A identidade religiosa de Luís de Camões" - texto de António Telmo que publicamos em sua homenagem, no dia em que partiu deste mundo

Publicamos o início do texto de António Telmo que saiu primeiro nos Cadernos de Filosofia Extravagante e que sairá integralmente no nº2 da Cultura Entre Culturas:

"René Guénon nunca fala dos portugueses, mas, como muitos outros textos seus, este, que recolhi do seu famoso livro O Rei do Mundo, está intimamente ligado connosco. No âmbito do que me propus tratar neste primeiro caderno de filosofia livre, abre caminhos insuspeitados no sentido de determinar a verdadeira identidade de Luís de Camões.

É assim como se segue:

“Na Idade Média havia uma expressão, na qual os dois aspectos medulares da autoridade (régia e sacerdotal) se encontravam reunidos de uma maneira digna de nota. Nessa época falava-se muitas vezes de uma região misteriosa a que se chamava “o Reino do Preste João”. Era no tempo em que o que se poderia designar como a “cobertura exterior” do Centro Supremo era formado numa boa parte pelos Nestorianos (ou o que se convencionou chamar assim com razão ou sem ela) e os Sabeus. E eram estes, precisamente, que davam a si mesmos o nome de “Mendayyeh de Yahia, isto é, “discípulos de João”.”

Em nota ao que vem dizendo, o ilustre francês informa que “se encontraram na Ásia Central e particularmente na região do Turquestão, cruzes nestorianas que, como forma, são exactamente semelhantes às cruzes da cavalaria”

Mais adiante, esclarece o que deixou atrás: “Para que ninguém se admire da expressão “cobertura exterior” que viemos de empregar, deve ter-se em atenção, efectivamente, que a iniciação cavaleiresca era essencialmente uma iniciação de Kshatriyas (Guerreiros), o que explica, entre outras coisas, o papel preponderante que aí representa o simbolismo do amor.”

Começa já a desenhar-se a figura guerreira do poeta de Amor Luís de Camões. Esta relação com o texto não terá nada de surpreendente quando nos lembrarmos que os nestorianos na Ásia eram os cristãos de São Tomé, de São Tomé a quem o poeta dedicou nada menos do que doze estrofes d’Os Lusíadas.

Estas doze estrofes que aparecem como que engastadas no curso do Canto X todo ele em grande parte tratando de geografia, narram a vida, os milagres e a morte do apóstolo na Índia. Ainda mais estranho é o modo como Camões faz a exaltação do Santo ao referi-lo como “o núncio de Cristo “verdadeiro”. Não sabemos, dada a índole da sintaxe portuguesa, se o adjectivo se refere a núncio ou a Cristo. Se a núncio, então distingue-o como verdadeiro entre os outros; se a Cristo, então deve supor-se a existência de falsos Cristos. O último verso das doze estrofes é como uma luz que ilumina todo o relato: “Mas deixemos esta matéria perigosa.”

Perigosa porquê? Por dizer que Tomé era o núncio de Cristo verdadeiro? Por dizer também que são seus os lusitanos?

Temos de perscrutar mais fundo"

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Nasce a revista que eu sonhei

Nunca fui muito ligada a lançamentos, nem a casamentos, sequer a enterros. Gosto da festa sem protagonista, até hoje! Aqui estou eu, dando a mão a palmatória e sofrendo porque hoje há um lançamento e eu não vou poder assistir.

Hoje nasce oficialmente a revista que eu sempre sonhei poder ler um dia. Hoje nasce a revista que qualquer um de nós espera para ler. Folhear devagar, soletrando cada palavra porque em cada uma, há um paladar de enorme prazer. E se o texto é bom a beleza se espalha em cada página. Hoje na Bienal do Livro de São Paulo - Anhembi - estande da Imprensa Oficial, pelas sete da noite está nascendo a revista que partilha literatura.

Quem vive em São Paulo que corra e sorria porque hoje nasce a Revista Pessoa. Quem vive longe acesse o site www.revistapessoa.com e folheie online a revista no seu formato electrónico.

Hoje é um dia daqueles! Eu que detestava lançamentos lamento não poder brindar com um longo abraço a minha querida amiga Mirna Queiroz, responsável por este fabuloso projecto.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Inventa o amanhã e será sempre dia
Inventa a noite e será sempre agora
Inventa quem és e serás sempre nada
Inventa até não mais inventar
E nada terás inventado.
Dá-me vinho antes do amanhecer
Com o cálice a transbordar
Banha-me nele até que embriagada
eu seja o vinho que agora bebes

Dá-me o vinho que tenho sede
de ti

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

pequeno poema de à beira-Mar

tanto Verão meu irmão
e tanta areia
e tanto sol
e tanto mar

tanta gente em risco
de se afogar
meu irmão
e tanta oferta
de salvação

tanta gente meu irmão
-tu sabes como é -
a nos estender a mão

a nos estender a mão
meu irmão

para nos tirar
o PÉ

A louca e o Editor

A louca, internada, no lado de dentro grita ao estranho que tem na carcaça escrito EDITOR:
- Oh, tu que estás do lado de fora, editas-me?
Com um sorriso sem qualquer ironia responde o editor:
- E queres editar o quê? Poemas, Contos, Romance, Novela...?
A louca fica sem cor, conta e reconta mentalmente muitas vezes antes de responder:
- Poesia...
- Ah, poesia é muito difícil de editar...
- Então contos, também tenho muitos,
- Os contos sofrem do mesmo mal que os poemas,
- Se só me resta o romance, tenho um quase feito...
- Desculpa-me , mas tenho pressa. Não está na hora do teu recolher?
A louca, internada no lado de dentro, sorri.
- O recolher é só as nove. Ainda são dez, PALERMA!

Aura-Mater

CANTO PRIMEIRO
Senhora das Portas
Arquetípica e Misteriosa 
A Vó, a Mãe e a Filha
Flor de Mandrágora, 
Som de Egrégora 
E grito de Górgona
Partenogênese Sagrada 
Efígie, Esfinge, 
Serpente Esfumaçada
Filósofa Nascida
Semente enterrada
Mater, de onde venho?
Pater, para onde vou?
Em busca de respostas
A velha varria o Tempo
A mulher dançava a Ave
A criança buscava o Círculo
Senhora das Janelas
Das escadas, das mazelas
Senhora de coração pulsante
Senhora dos Navegantes
Dos navios negreiros
Piratas e Veleiros
Senhora de todos os amores
De todos os colonizados 
E todos os colonizadores 
Senhora de todas as horas
Senhora de todas as artes 
Senhora de todas as glórias

-cidades-

"...a cidade deve assegurar,
nos planos espiritual e material,
a liberdade individual e o benefício da acção colectiva."

Carta de Atenas, 1933

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Verão em Oriola - há 25 anos


A CASA AMARELA

há uma casa amarela
e nela uma janela

e à janela da casa
um velho rosto- argila

à janela do rosto
uma poalha rala
restos do fino pó
do rodapé da Vila

e a casa e o rosto
são uma coisa bela
chapa de fogo vaga
sob um azul viril

e tudo aqui é calmo
e tudo aqui é belo
neste quadro amarelo
que faz sede e respira

escrever um poema é um acto de serenidade;
é como criar uma cidade, com os seus altos edifícios,
dentro de um simples pão

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Hoje acordei com a certeza de que me falta tempo.
quero viajar pelo mundo
viver/conviver com o sorriso
e o choro daqueles que habitam outras paragens.

Não vou poder abraçar as mulheres - girafa,
nem as meninas que vestem a burca
mal o sangue lhes escapa.

Não vou conseguir aprender
com as gueixas a arte de ouvir,
nem com as índias a de parir
e sorrir.

Queria viajar e sentir
em todos um abraço
que resulta do que cada um somos
enquanto vida.

Queria aprender a dançar
e a rezar sem conceitos e preconceitos.

Hoje acordei com a falta que tenho
de não poder jogar-me nos braços
do homem que dança o tango.

Hoje dei conta da falta,
e da vontade que tenho em voltar,
do tempo que uma vezes é longo
e agora tão curto.

Quero abraçar o mundo e para isso terei sempre tempo.

Petição pela abolição das touradas e de todos os espectáculos com touros

Considerando que:

a) a ciência reconhece inquestionavelmente a maioria dos animais, incluindo cavalos e touros, como seres sencientes, capazes de sentir dor e prazer, físicos e psicológicos, bem como sentimentos de medo, angústia, stress e ansiedade;

b) as touradas gozam em Portugal de um injustificado regime de excepção legal, pois o ponto 2 do Artigo 3.º da Lei n.º 92/95 de “Protecção aos animais”, que diz que “As touradas são autorizadas nos termos regulamentados”, contradiz frontalmente o ponto 1 do Artigo 1.º da mesma lei, que declara que “São proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal”, o que é manifestamente o caso das touradas;

c) a maioria da população portuguesa é contra a tauromaquia, conforme mostra um estudo realizado em 2007 pelo Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE;

d) as touradas ofendem a fé e o sentimento maioritariamente cristãos e católicos do povo português, pois a Bíblia apresenta os animais como criaturas de Deus (Génesis, 1, 24) e o Catecismo Católico declara ser “contrário à dignidade humana fazer com que os animais sofram ou morram desnecessariamente”, doutrina recentemente recordada pelos Papas João Paulo II e Bento XVI;

e) o artigo 9.º da Constituição da República Portuguesa consagra como tarefa fundamental do Estado “promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo”, o que se contradiz pela permissão das touradas, que ofendem o sentimento maioritário da população e contribuem para a degradação moral de quem obtém prazer estético e psicológico com o sofrimento dos animais;

f) as touradas são uma das expressões de uma cultura da insensibilidade e da violência que degrada quem a pratica e promove, o que ofende o Artigo 1.º dos “Princípios fundamentais” da Constituição da República Portuguesa, que proclama Portugal como “uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana”;

g) vários estudos e especialistas concordam que a prática e a aceitação da violência contra os animais predispõe para a prática e a aceitação da violência contra os homens;

h) o progressivo abandono de tradições retrógradas, contrárias a um sentido humanista de cultura como aquilo que contribui para nos tornar melhores seres humanos, é o que caracteriza a evolução mental e civilizacional das sociedades e melhor corresponde à sensibilidade contemporânea;

i) a existência de touradas no século XXI constitui um embaraço para Portugal perante a comunidade internacional, configurando a imagem de um país com pessoas e práticas bárbaras;

j) a abolição das touradas é compatível com a manutenção da sua coreografia, sem a utilização de animais, num espectáculo em que se preserve a estética tradicional e que possa converter-se na atracção turística que as touradas não são e nunca foram, pela repulsa que geram nos cidadãos estrangeiros (a evolução dos costumes ditou o mesmo em muitas culturas, convertendo antigas práticas marciais, com mortes e derramamento de sangue, em artes lúdicas, como no caso do kendo japonês e da capoeira afro-brasileira, entre muitos outros exemplos);

l) a abolição das touradas vem na linha humanista da abolição da pena de morte, em que Portugal foi pioneiro, e promoverá a imagem de Portugal em todo o mundo, sendo um contributo decisivo para o país mais ético que todos desejamos, esse “país mais livre, mais justo e mais fraterno” consagrado no “Preâmbulo” da Constituição da República Portuguesa;

Vimos por este meio solicitar que se aprove legislação no sentido de abolir completamente as touradas e todos os espectáculos com touros, sob qualquer forma, em todo o território nacional, convertendo-se as actuais praças de touros em museus e casas de cultura onde se preserve informação sobre uma prática ultrapassada e onde se promovam actividades humanitárias e de introdução dos jovens e do público em geral a um maior conhecimento e sensibilidade para com a natureza e os seres vivos, criando postos de trabalho onde se podem inserir muitas das pessoas agora dedicadas às actividades tauromáquicas.

www.peticaopublica.com/PeticaoVer.aspx?pi=010BASTA

Compaixão sem sabedoria? Egocompaixão?

Chamam ao Cristianismo a religião da compaixão. A compaixão está em contradição com as emoções tónicas, que elevam a energia do sentimento vital; a compaixão tem acção depressiva. Quando alguém se compadece, perde a força. Pela compaixão aumenta-se e multiplica-se o desperdício de energia que o sofrimento, por si próprio, já traz à vida. O próprio sentimento torna-se, pela compaixão, infeccioso; em determinadas circunstâncias, pode chegar-se a um desperdício global de vida e de energia vital, que se encontra numa relação absurda com o quantum da causa (o caso da morte do Nazareno). [...] Ousou-se mesmo chamar virtude à compaixão (em qualquer moral nobre, surge como fraqueza); foi-se mais longe, fez-se dela a virtude, o solo e a origem de todas as virtudes - só que, e é necessário não o esquecer, a partir do ponto de vista de uma filosofia que era niilista, que inscrevia como divisa no seu escudo a negação da vida.

Friedrich Nietzsche, O Anticristo, Edições 70, p.19

sábado, 14 de agosto de 2010

Quando te leio
aprendo um poema
quando dizes adeus
esqueço de mim

amanhã, se vieres
aprenderei outro,
outro e outro
enquanto existir
amanhã.


hoje, o caracol enrola-se
na parede do meu quarto
enquanto escreves
um novo poema.

para o RODRIGO

acabo de
:
comprar
ver
exibir aos amigos
Jornal I

suplemento INDEX
-capa tua -

meus amigos subestimam
como se fosse
um poema meu

um mau
poema meu

Traz-me

a música que habita em ti

beija-me até que ela seja eu

ensina-me, amor a melodia

que desaprendi antes de ti

às seis da manhã

o galo canta

o beija-flor acode feliz

e eu ainda estou a dormir

amanhã, antes do sol nascer

eu ainda sou criança

fala-me dos dias

quando despertas

e o verde é igual ao azul

mas antes,amor

cobre meu corpo

com a melodia do teu.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Sacralização da Mulher

Ao procurarmos todavia possíveis fontes desta notável sacralização da mulher e do amor a ela, numa obra que se destaca pela narrativa do aprendizado de Cristo no Oriente bramânico e budista, não podemos todavia esquecer aquela tradição que, seja hindu ou budista, tem como uma das características principais o reconhecimento e a veneração da divindade ou sacralidade da mulher, assumindo ainda plenamente a vocação da sexualidade para a abertura religiosa e espiritual da consciência. Referimo-nos à tradiçao tântrica que, embora com diferenças no hinduísmo e no budismo, faz da mulher e do simbolismo feminino feminino do absoluto, objecto de uma devoção particular. Se no primeiro existem rituais preliminares à união sexual em que a consorte é venerada como uma deusa, no segundo, a par disso, o décimo-quarto interdito tântrico, nas escolas budistas tibetanas da Nova Tradução, é o de "Desprezar as mulheres", que, pelo contrário, devem ser consideradas como manifestações da "sabedoria" e como "dakinis" (entidades femininas subtis). Toda a forma de misoginia é assim uma falta grave. Há nas palavras de Issa, a nosso ver, uma nítida atmosfera tântrica, sendo bastante plausível, a verificar-se uma veracidade histórica do manuscrito descoberto por Notovich, que este Cristo desconhecido haja sido iniciado nas fontes espirituais daquela que é poventura a sabedoria mais profunda de todas as regiões por si visitadas - se bem que os primeiros textos tântricos propriamente ditos sejam posteriores, é de supor que tradição oral os precedeu -, ou que a narrativa acerca da sua viagem ao Oriente haja sido objecto de uma parcial releitura tântrica.

Paulo Borges, Prefácio O Cristo Desconhecido, in Nicolas Notovich, A Vida Desconhecida de Jesus Cristo, Lisboa, Mundos Paralelos, 2005, pp.29-30

terça-feira, 10 de agosto de 2010

«Por isso vos digo: depois de Deus, os vossos melhores pensamentos deverão ser para as mulheres e as esposas, sendo a mulher para vós o templo divino, onde mais facilmente obtereis a perfeita felicidade.»

A Vida de Santo Issa
O Melhor dos Filhos do Homem
XII 17

Rio São Francisco e seus afluentes

Senhor, fazei-me instrumento de vossa consciência.
Onde houver ódio, que eu leve a consciência do ódio;
Onde houver ofensa, que eu leve a consciência da ofensa;
Onde houver discórdia, que eu leve a consciência da discórdia;
Onde houver dúvida, que eu leve a consciência da dúvida;
Onde houver erro, que eu leve a consciência do erro;
Onde houver desespero, que eu leve a consciência do desespero;
Onde houver tristeza, que eu leve a consciência da tristeza;
Onde houver trevas, que eu leve a consciência das trevas;
Ó Mestre, fazei que eu procure mais
Entender a ação das forças em mim, que tentar controlá-las;
Compreender o que está dentro, para compreender o que está fora
Amar a mim mesmo para que possa ser amado
Pois, é livrando-nos da culpa que perdoamos a nós mesmos
É morrendo em vida que se vive a eternidade.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Novas datas do retiro "Descobrir o Buda em nós": 4-5 de Setembro/Inscrições até 26 de Agosto

Descobrir o Buda em nós, Retiro de introdução ao budismo e à meditação budista na
Casa Grande - Paços da Serra, 4-5 Setembro. Um retiro de verão junto à Serra da Estrela.

Todos possuímos um infinito potencial de liberdade, sabedoria e bondade, a que a tradição budista chama natureza de Buda. Esse potencial está encoberto pelos nossos conceitos, emoções negativas e padrões inconscientes de comportamento, que nos mantêm constantemente agitados e preocupados, mas pode ser descoberto mediante o acalmar da mente e a abertura do coração. É esse o objectivo deste retiro, que nos oferece um espaço de encontro connosco próprios e possibilita a experiência directa do que realmente somos, para além de qualquer pressuposto moral, filosófico ou religioso.

O retiro será facilitado por Paulo Borges.

Reservas até 26 de Agosto: Margarida Vasconcelos
Tlm: 934297935
Tel: 238496341
info@casagrande.com.pt
www.casagrande.com.pt

"Que tudo fundamentalmente mude!"

"Que tudo fundamentalmente mude! Que um novo mundo brote das raízes do humano. Que uma nova divindade reine sobre os homens, que um novo futuro se lhes abra!
Na oficina, nas casas, nas assembleias, nos templos, por todo o lado, que a metamorfose se cumpra!" - Hölderlin, "Hypérion".

E que esta nova divindade seja a consciência afectiva do Todo, a sabedoria amorosa que abrace fraternalmente todos os seres vivos!

MEOlogismo

aramistício

=

armistício preso por arames ( Coreia do Norte X Coreia do Sul)

domingo, 8 de agosto de 2010

MEOlogismos (vale um sorriso?)

almoscreve - quando almocreve pára para fazer contabilidade

almocrava - almocreve crava

almocrata - dirigente político almocreve

moçolmano - jovem muçulmano

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Blink

Esquecido no banco do vagão antigo,
um retrato imaginado através do visor da tua câmara,
havia-se escapado do portefólio.
Por uma fracção de segundo procuraste por ele
enquanto o revisor pacientemente aguardava
que lhe entregasses o passe.
É assim,
sem nada até aqui teres compreendido,
entregaste-lhe um bilhete,
pois é assim que os sonhos te aparecem…
ao veres a ideia surgir na face do pequeno talão,
estendes-lhe o braço, e acordas,
como é o hábito de todos os viajantes…
A tua memória é a fotografia…
e quando te esqueces de voltar às imagens
elas acabam por se arrumar em pilhas…
Uma sobre outra se implantam
Uma sobre outra te enformam.
Caprichoso artifício da câmara,
do oco de uma caixa preta
com uma larga correia de couro pendida,
és fruto de um dispositivo,
de um pequeno cubóide adornado por dois olhos
que através dele imaginam o que tanto anseias.
Crias-te na imagem.
Dois visores… - dirias…
um sobre o outro,
o outro sobre o lado…
como que abaulados para fora,
tal qual dois bombons de hortelã-pimenta,
como aqueles bombons de menta
que ingurgitas noite e dia.
Cursas rápido, sempre eterno,
e desembestas…
o acaso faz o resto – explicarias…
Mas… foi apenas um trémulo disparo,
um clicar meio bêbado
que te fez colocar
um quadrado virgem na célula crua
pronta a impressionar.
E eis que, mas…
é assim…
e impossível é saber-se mais que nada,
como agora meramente um símbolo,
um apenas, ou mais que um número a fixar,
mais um que retratasse esse instante
como se a memória começasse com a fotografia,
contigo,
que as fizeste notáveis,
ao chão e à paisagem,
ao céu sobre a terra,
ao mar sobre o chão,
à criança,
a ti,
a todo-o-mundo visto da plateia
a mais nada como ninguém…
Sorrias, choravas,
mas esqueceste-te de rodar a pequena peça
de alvo latão cromado, colado ao teu polegar…
É a plateia quem te observa
e não a fotografia que mais desejas.
O tempo, deve passar e passar…
Tanto no fim, como ao inicio,
todo ele é infante, dor aguda,
e isso acontece como quando tu a vês,
como quando tudo te é primeira vez.
Assistes a célula e isso faz de ti seu alguém.
É o mundo quem te cria e não a fotografia em que pensaste.
Às vezes, interrogas-te…
- talvez fosse utopia ou parte da história que eu sonhei,
e sonhei, e sonhei…
Mas, como em todas as histórias acontece,
mudas-te por fim,
subitamente de rumo,
cruzas-te por aquela rua repisada
e entras já atingido em um novo caminho
que julgas não muito estar desviado da tua própria casa,
onde hesitas,
mais-que-vacilas,
onde deixas de a reconhecer…
esqueces a cor das cortinas,
esqueces-te da forma das janelas,
esqueces-te de ti dentro do seu apartamento.
Ela, é a fotografia,
a que te abre a porta de casa
com um espelho de vidro na mão…
Havia um espelho, sim, um espelho…
e uma câmara coberta de pó colorido…
um imenso espelho decomposto em imagens,
um espelho incluso peça a peça
- e sorris…
Vês agora a janela que deixaste aberta,
vês-te por cima de uma rua deserta
onde antevês o que entanto aí se passeia…
teu inerme contorno que serpenteia,
a tremer, a tremer…
a forma do teu atelier
que rente está do chão…
no espelho sempre aberto
há essa imagem diferente
como um reflexo contínuo…
passado e presente…


Saíste para comprar tabaco
– é o que diz a fotografia

de novo na PISCINA

surpresa de hoje
:
pousou na minha mão

joaninha amarela
como gema de ovo
-com pintinhas castanhas

ao tentar contá-las
abriu as asas como um grilo
levantou voo
para lugar incerto sobre
a relva
ÀS VEZES confundo arte com conhaque

Arte é dor que vai doendo
Conhaque é conhaque
Que pensará o fósforo quando se acende?
Realmente é tudo uma questão de se lhe perguntar
Um velho acamado espera a sua justiça
As infâncias raramente se acham
Nada tem de negativo
É apenas uma questão
Que terei de colocar a um fumador de charutos
De preferência cubanos
Com Havana em espiral movimento
E o Fidel quase morto ainda aces

Ponho um lápis na orelha
E finjo-me poeta
Terei de rever as minhas análises
O sangue perfeito
O motor ainda dá
De amores não acusa nada
Na gaveta tenho inúmeros verbos
Se calhar mal conjugados
Arrisco?

Às vezes dou uma passa no cigarro e aperto os lábios
Tiro fotocópias à minha cabeça e falo com ela
Do duplicado escolho o mais feio
Fico então com a impressão que a escolha é de arte
Depois de ler Cruzeiro Seixas vejo que não
Que não há arte nenhuma nos cabelos que ficaram
 na lente da fotocopiadora
Os monstros são só para criar cenários
A pornografia é um estado de alma
E Galileu tinha muita alma com certeza

Os versos das meninas do bar sete são compostos por exageros
Empastam a tinta entre os dedos
Sujam seus caracóis e publicam mesmo assim
Depois do editor cometer o seu crime
Um ladrão ao dar-me um esticão no saco levou-me o braço
Por sorte nasceu outro braço no lugar do outro

Acha que isto é arte?
Estou farto de dizer
Arte é o desenho que faz as varizes
E conhaque é a mesa misturadora dos egos e super egos
Passe bem!

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

de manhã nas PISCINAS


esplendor sobre a relva
:
toalhas coloridas de meninos
flores amarelas de dente-de-leão
nascidas nem se sabe de onde

borboletas brancas
esvoaçando à procura de pólen

dente-de-leão devia ser tomada
por rainha
de resistência à roçadora de erva
:
entre dois cortes
esta Sisifo das flores
floresce

-nanogirassóis
amarelos e despenteados
pela pressa de afirmar-se

vindo do banho
um menino pega uma
sem a arrancar
e cheira-a

pergunto-lhe: cheira bem?

- sim - responde
:
cheira à cor do SOL

-espírito-



Com a sorte de viveres o presente
Esquece a incerteza e de peito aberto
Permite que a flor, em perfume desabroche,
Pois existe um oásis, no teu deserto.

Deixa que a tua função, o tempo exerça
e esse momento pleno e intenso, vive.
Não te cabe, o prelúdio desse drama,
Não antes da peça propriamente dita.

Quem te quer, já abriu o teu peito e to leu.
Plantou no chão do teu coração, a certeza.
Viçou-o pr'a sempre, mesmo que não seja.

Considera a possibilidade de amares e sonhares
Embriaga-te dos seus efeitos, enquanto dura.
E que a estrutura desse amor, seja a tua cura.

De Glóra Salles

terça-feira, 3 de agosto de 2010

evolução ou criação?

não sei por que carga de água o MEO
deu em presentear-me de forma automática com o tal canal

a qualquer hora que ligue
aí está ODISSEIA

desta vez para mostrar uma versão
da evolução do homem
- que há tantas quase quanto homens

contra uma única que assegura
que foi Deus quem o fez
no paraíso
após uma semana de trabalho a construir o Mundo

a seu (do homem) pedido
fez Deus um clone feminino
-para desassossego permanente do original
e ele e ela foram Adão e Eva

cuja estória todos aprendemos
na Instrução Primária

provado parece estar que não provimos
de um trabalho acabado
como uma bilha de barro

antes somos
uma artefacto ainda em construção
- um carrinho-de-mão
a que falte a roda
ou os varais

há muitos milhões de anos éramos macacos
e assim continuamos
mais uns do que outros

sem nunca esperar atingir a perfeição
porque seríamos então deuses
e não homens
e teria acabado a evolução