terça-feira, 31 de agosto de 2010
"A noção de Poema"
Da actividade
Esta pergunta é típica de um homem, de um macaco ocupado. Em vez de fugirem da monotonia, os animais procuram-na, e o que mais receiam é vê-la terminar. Pois ela só termina para ser substituída pelo medo, causa de todo o tipo de azáfama.
A inacção é divina. E, porém, foi contra ela que o homem se insurgiu. Apenas ele, na natureza que lhe é própria, se revela incapaz de suportar a monotonia, apenas ele quer a todo o custo que alguma coisa aconteça, seja ela qual for. Nisso, mostra-se indigno do seu antepassado: a necessidade de movimento é característica do gorila desencaminhado.
E. M. Cioran
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
matinário
EXPLICAÇÃO DO BLOG
blog é uma coisa que existe
e ao mesmo tempo não existe
mas que hoje
quase toda a gente tem
como nos anos 20
os homens bigode
e as mulheres chapéu
ou melhor
:
vice-versa
blog é uma coisa
para a gente escrever
como um caderno
-só que sem linhas
nem folhas
nem capa
portanto sem papel
um caderno sem papel
não tem princípio
nem tem fim
escrevemos nele como se escrevêssemos no ar
quando apagamos aquilo que escrevemos
as palavras ficam a pairar
como nuvens ou raios de sol
-consoante a natureza das ideias
contidas nas palavras
que acabámos de apagar
a ciência garante
que a poluição deste exercício
é muito superior ao CO2
da combustão
de todos os motores do mundo
não admira
:
ainda ontem
um conhecido advogado
escrevia no seu Blog
:
a minha constituinte é incapaz
de pegar um euro
que não seja legalmente seu
apagar - enviar para o éter
semelhante afirmação
é produzir
mais metano ou dióxido de carbono
do que uma manada de vacas a pastar
ou uma velha bomba russa
a bombar água
de uma mina de carvão
o Blog é um caderno
sem princípio nem fim - já o sabemos -
que não se compra
nas livrarias
nem nas capelistas de esquina
não tem linhas
nem folhas
-parece que de borla, repetimos-
uma dádiva dos céus
como agora os figos
ou para o mês que vem as uvas
nada mais errado
:
este caderno
sem a capa com um círculo azul
em que navega
uma caravela dos descobrimentos portugueses
este caderno - dizia -
tem um preço
nem baixo
por sinal
pago ao longo dos dias
das semanas
dos meses
dos anos
escreva-se ou não
no que deviam ser as linhas
-que não tem
só duas ou três livrarias
em cada país
vendem esta espécie de cadernos
em Portugal
uma das principais
vendeu agora uma das lojas no Brasil
quase pelo valor
da dívida externa do país
é isto um Blog
e eu tenho um
bem como agora sete gatos
e um mercêdes benz
do tempo ainda
da Alemanha dividia
tenho um Blog e escrevo nele
como se lápis e papel
fossem reais
e eu escrevesse ali
o melhor e o pior
da minha vida
domingo, 29 de agosto de 2010
sábado, 28 de agosto de 2010
Como podia estar acolá dentro de um vaso
Numa de experimentar ser flor
Que come e bebe do que lhe dão
Podia estar na Jamaica a apanhar calor
Ou no fundo de um poço possante
A criar laços de amizade com o silêncio
Podia estar em qualquer parte do mundo
A contar anedotas num palco
Estar viciado em literatura moderna
E comer páginas inteiras para fingir que morro
Podia dizer que sou outra coisa
Para além daquilo que sou e teimo
Pedir a direcção do mar a uma gaivota
Que veio à cidade comer uns aperitivos
Podia ir mais abaixo que o fundo de mim
Verificar se por lá existe alguma porta aberta
Por onde o vento arrasta os mendigos,
Os frutos e as manhãs nucleares
Cantar o amor à janela de uma janela qualquer
Ou medir distâncias entre o passado e o futuro
Com um morto em pé
Ou fundar o amor a par da revolução que aí vem
Podia engolir a bússola que me há-de dizer
Para que lado fica os poetas mortos
que nas mulheres fazem alegrias
Onde é que se sonha com uma perna às costas
Quem anda por aí a dizer que a verdade pariu pela boca
Podia evitar sal na comida e assim evitar poemas salgados
Cair ao chão, partir-me em quatro
E aprender como se inicia uma nova vida
Sem dar baixa nas finanças
Procurar um céu dentro do céu
Ver Deus a costurar asas aos Homens
Com o fio de uma extensa lágrima
Podia morrer de vez em quando
Para assustar o sonho e a vida
Cantar como se fosse o primeiro
A quem a morte o beijou
Podia ir à casa do Herberto H.
E falar-lhe das minhas plantações de poemas
Mas sei que o Herberto H. tem a sua plantação de poemas
Mais bem cuidada do que a minha
E está louco, mas a rir,
Porque os homens acham que a plantação faz-se na terra
Espero um dia colher bons poemas à boca de sino
E chamar os amigos cá a casa para um almoço
Dar um verso a cada um
E no final chamar o cão-poeta para fazer um bailado
Podia ser marinheiro, ideia a percorrer o mar,
Azul terra, verde céu, menino branco no colo de mãe-preta,
Podia ser grande como o Herberto H.
Ou como o Daniel
Que antes de ser livro fora árvore andante
E eu podia ser o nem tão pouco mais ou menos
Ou aquela luz que a noite roubou
Sim podia, mas a verdade é que eu estou aqui
E daqui vejo tudo a crescer
Os poemas também
Isto é,
Desde que o sol não seja em demasia
E as minhas mãos não façam tremer a paisagem
sexta-feira, 27 de agosto de 2010
Passagem de Raimon Panikkar, colaborador e membro da Comissão de Honra da revista "Cultura ENTRE Culturas"
http://www.corriere.it/cultura/10_agosto_27/panikkar-sacerdote-filosofo_fdbddf64-b1b3-11df-a044-00144f02aabe.shtml
Raimon Pannikar partiu ontem deste mundo. Recebo uma notícia que já aguardava. Estive para me encontrar com ele em 14 de Janeiro deste ano, para o entrevistar para o primeiro número da revista "Cultura ENTRE Culturas", que dirijo. O encontro foi cancelado uns dias antes, devido ao seu extremo cansaço. Ainda enviou um texto, que publiquei no referido número e que deve ter sido uma das últimas, senão a última, das suas intervenções públicas, pois logo a seguir recebi uma circular para os amigos dizendo que se retirava de todas as aparições públicas directas e indirectas e pedindo que nos mantivéssemos em contacto pela oração, na fase final da sua vida. Foi o grande mentor de um verdadeiro diálogo intercultural e inter-religioso, ainda muito longe de acontecer, e deixou uma obra enorme, verdadeira ponte entre Oriente e Ocidente, lamentavelmente muito desconhecida ainda. Admiro-o imenso e tive a honra de prefaciar o seu livro "O diálogo indispensável. Paz entre as religiões" (Zéfiro, 2007), entre nós praticamente ignorado. Que repouse na Paz e na Luz, transcendentes a todas as religiões e vias!
Imitação ao jeito de Platero
De dia ando tonto, de noite não consigo dormir...
Será que me pode ajudar?
médico: Ah! Não é nada que não se resolva!!
Vai começar a tomar Platótelesum, de manhã e à noite.
Vai ver que se sentirá melhor!
poesia não será forma superior de abrir caminhos?
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
A morte da "Filosofia Portuguesa" (texto de Miguel Real sobre "Uma Visão Armilar do Mundo", publicado no JL de 25 de Agosto)
O movimento da “Filosofia Portuguesa” nasceu em 1943, em torno da publicação do livro de Álvaro Ribeiro, O Problema da Filosofia Portuguesa, reivindicando o legado espiritual de Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoais, Leonardo Coimbra e Fernando Pessoa. Neste movimento cultural ganhou raízes um dos mais importantes grupos de pensadores portugueses do século XX – José Marinho, António Quadros, Afonso Botelho, Orlando Vitorino, Pinharanda Gomes, António Braz Teixeira… -, que revolucionaram o pensamento filosófico português. Com a recente publicação de Uma Visão Armilar do Mundo, de Paulo Borges, autor cujos primeiros livros operavam o cruzamento entre as teses da “Filosofia Portuguesa” e a filosofia de Agostinho da Silva, pode dar-se por terminado este movimento. As teses fundamentais da “Filosofia Portuguesa” sublinhavam o sentido nacional de um espiritualismo profético firmado na língua portuguesa, um providencialismo vanguardista firmado na cultura portuguesa, um serviço missionário prosélito e messiânico de regeneração de Portugal contra o positivismo, o materialismo e o cientismo europeus. O Império aí estava para garantir e recordar aos cépticos o papel de Portugal no mundo como rosto avançado da espiritualidade cristã. Porventura os mais fortes documentos históricos sintetizadores das teses do grupo serão os números 1 e 2 da revista 57. Movimento de Cultura Portuguesa (dir. António Quadros), o primeiro com o “Manifesto de 57” e o segundo com o “Manifesto sobre a Pátria”, bem como o texto O Espírito da Cultura Portuguesa (1967), de A. Quadros. Assim, em finais da década de 1950, princípios da de 60, o núcleo filosófico das teses aristotélico-cristãs alvarinas, apresentado em 1943, ganhara uma dimensão política patriótica e imperial.
de Camões, Padre António Vieira, Teixeira
de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva,
Lisboa, Editora Verbo, 2010, 243 pp., 18 euros.
"tudo corre"
«Até os próprios imbecis o contestam. "O quê? - dizem os imbecis - tudo corre? Contudo, os madeiros e os parapeitos mantêm-se firmes por cima do rio."
«Tudo o que está por cima do rio é sólido, todos os valores das coisas, as pontes, as noções, o bem e o mal, tudo isso se mantém.
«Chega o rude Inverno, o domador de rio, e os mais maliciosos aprendem a desconfiar; e na verdade apenas os imbecis são então capazes de dizer: "Não será verdade que tudo está - imóvel?"
«No fundo tudo permanece imóvel; eis um verdadeiro ensinamento do Inverno, uma boa coisa para os tempos de esterilidade, um consolo para os hibernantes e para os sedentários.
«"No fundo tudo permanece imóvel"; mas é contra este facto que prega o vento do degelo.
«O degelo, touro que nada tem de boi de trabalho, touro furioso e destruidor, que quebra o gelo com cornadas. Ora o gelo, por sua vez - quebra as pontes.
«Ó meus irmãos, não é verdade que agora tudo corre? Não caíram à água todos os parapeitos, todas as pontes? Quem poderia ainda agarrar-se ao "bem" e ao "mal"?
«"Ó infelicidade! Ó felicidade! Eis o vento do degelo!" Ide pregar esta verdade por todas as ruas, ó meus irmãos.»
F. Nietzsche, Assim Falava Zaratustra, tradução de Alfredo Margarido, Guimarães, 2007, pp.269-270
quarta-feira, 25 de agosto de 2010
saudade
da melodia que agora se escapa
diz-me que o mundo é mundo
agora que escalaste a montanha
diz-me que o mundo
ainda é mundo agora que partes
Antes,
faz-me acreditar que fui tua
neste segundo que inventei eterno
O que é Portugal? - II
II
Para quem esteja habituado a pensar Portugal como uma id-entidade, seja qual for a determinação fundamental que lhe der – espiritual, material, histórica, cultural, política, sócio-económica, etc. - , a análise anterior parece haver conduzido a uma dissolução de Portugal, a uma anulação da sua existência, que aparenta contradizer o mais elementar senso comum e a evidência de que há efectivamente alguma coisa de diferenciado, singular e concreto nisso que se concebe e designa como Portugal.
Se analisarmos bem, veremos que assim não é e antes pelo contrário. A demonstração da não constituição de Portugal como id-entidade, em si e por si, fora da sua conceptualização e id-entificação mental e emocional, que é uma identificação do construtor com isso mesmo que constrói, a demonstração de que, nesse sentido, nunca houve Portugal como uma entidade separada dos sujeitos em devir que o constroem e se constroem pelo pensamento, pela palavra e pela acção, não pode obviamente ser uma destruição ou anulação do quer que seja, pelo simples facto de não se poder destruir algo que nunca existiu, não existe e jamais pode vir a existir. O despertar de um sonho ou o dissipar de uma miragem não destroem nada de realmente existente e, na verdade, nem sequer destroem uma ilusão: apenas deixam de a alimentar, apenas designam o fim da construção, inconsciente, de uma falsa percepção do real, apenas assinalam o cessar de uma ficção da consciência pelo seu reconhecimento como tal. Do mesmo modo, o despertar do sonho ou da miragem de um Portugal substancial, existente em si e por si, dotado de uma id-entidade autárquica e imutável, um Portugal-ser e essência, não destrói nada, porque nada disso há para destruir. Analisado e revelado na sua natureza autêntica, Portugal não passa do ser ao não-ser, revelando-se antes a impertinência dos conceitos de ser e não-ser para pensar a natureza profunda das coisas, sejam nações ou indivíduos.
O que se revela então como a natureza autêntica disso que designamos, pensamos e vivemos como Portugal e que antes concebíamos de forma identitária? Precisamente a mesma natureza de tudo o mais: um devir, um fluxo, um processo, uma metamorfose. O que não quer dizer que, na trama global do devir do mundo e da consciência, esse devir, fluxo, processo e metamorfose a que chamamos Portugal não assuma, a cada instante e ao longo de períodos mais ou menos contínuos, certas diferenciações e singularizações específicas, sempre em mutação e inseparáveis daquilo de que se destacam e das consciências que as apreendem e vivenciam. Essas diferenciações e singularizações momentâneas, elas mesmas sempre em gestação e metamorfose, não podem, por isso, jamais pensar-se como diferenças e singularidades definidas, definitivas e constitutivas, enquanto propriedades intrínsecas ou modos expressivos de uma alma, espírito ou ser nacional, no sentido da id-entidade substancial e essencial cujo equívoco denunciamos. É aliás livres de todas as categorias e (pre)conceitos identitários que podemos aceder mais intimamente à experiência dessa diferenciação e singularização, diríamos energética, do processo que designamos como Portugal, patente na paisagem, nos animais, nos rostos, nos afectos, nas falas, nos odores, nos sabores, nas tradições, inovações e aspirações, em tudo isso que, livre de o isolarmos como nacional, nos entreabre um Portugal mais profundo, um outro Portugal, trama de cintilações em devir do jogo do mundo. É quando não pensamos identitariamente que se respiram as atmosferas e se revelam as tonalidades mais íntimas e profundas, complexas e múltiplas, sempre em mutação e interacção, dos povos, nações e culturas.
Que Portugal seja um devir, um fluxo, um processo e uma metamorfose é precisamente o que a história política mostra, uma mutação contínua, complexa e interdependente onde o fixismo utilitário demarca períodos cronológicos que na verdade não são senão recortes fotográficos de um mais fundo e complexo fluxo de eventos e vivências que escapam à comum apreensão e ao seu registo convencional (para não falar da história cultural, onde as múltiplas, distintas e simultâneas linhas de mutação são ainda mais evidentes): Fundação, Descobrimentos e Expansão, Domínio Filipino, Restauração, Império Brasileiro e Independência do Brasil, Guerras entre liberais e absolutistas, Regeneração, Implantação da República, Estado Novo, 25 de Abril e restauração da democracia na III República. Na verdade não se pode dizer que qualquer um destes momentos pertença a uma entidade Portugal que supostamente se manteria idêntica a si mesma ao longo da variação dos seus períodos históricos. Esse suposto Portugal, do qual incriticamente falamos, quando não reflectimos sobre o sentido do que pensamos e dizemos, não é com efeito senão uma ilusão de óptica, um filme, coproduzido pela percepção de todos os que conferem uma unidade substancial à sucessão vertiginosa de acontecimentos conexos mas diferenciados. Com efeito, a razão e a experiência não permitem considerar que o Portugal da Fundação, o Portugal dos Descobrimentos ou o Portugal pós-25 de Abril sejam idênticos, nem mostram qualquer entidade Portugal como condição transcendente ou transcendental desses três períodos, embora também não se possa dizer que difiram absolutamente, ao ponto de não haver nenhuma conexão entre si, o que é manifestamente falso. Somente essa conexão não parece obedecer a uma qualquer intencionalidade ou finalidade imanente ou transcendente intrínseca a uma entidade Portugal - interpretação que indevidamente antropomorfiza a vida das nações, à imagem e semelhança da vida psicológica dos sujeitos humanos - , nem se restringe a estes supostos acontecimentos e momentos da história de um Portugal unitário, complexificando-se antes na medida em que se estende, em cada um deles, a diferentes e inumeráveis acontecimentos e momentos da história de vários outros povos, nações e culturas. Que, na Fundação, são diferentes povos e reinos ibéricos, cristãos e muçulmanos, nos Descobrimentos são múltiplos povos, nações e culturas mundiais e, no pós-25 de Abril, são os povos e nações de língua portuguesa, a comunidade das nações europeias e todos os povos e nações com quem mantemos relações mais próximas.
Na história do processo Portugal avulta aliás, pela dimensão mundial assumida a partir dos Descobrimentos, e como temos destacado, na linha dos principais pensadores e poetas deste devir, um entretecimento armilar com os processos de muitos povos, nações e culturas planetários [1]. Um dos aspectos mais salientes que parece diferenciar e singularizar assim o processo Portugal é uma íntima interpenetração com a história do planeta. Ou seja, diferencia-o e singulariza-o o que simultaneamente mais o indistingue da trama em devir do jogo do mundo.
[1] Cf. Paulo Borges, Uma Visão Armilar do Mundo. A vocação universal de Portugal em Luís de Camões, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, Lisboa, Verbo, 2010.
Ser
E. M. Cioran
segunda-feira, 23 de agosto de 2010
O que é Portugal ? (início do texto a sair no próximo número da Nova Águia)
A melhor resposta a uma pergunta é a interrogação sobre o seu sentido. O que imediatamente nos desorbita dos hábitos e mecanismos cultural e socialmente dominantes. O que imediatamente nos leva a pensar para lá dos conceitos que são a moeda corrente das transacções mentais humanas.
Perguntar “o que é” pressupõe que o objecto em questão seja, no sentido de algo definido, um ser, um ente, uma id-entidade, pré-condicionando assim a resposta, que, seja qual for, sempre se moverá no círculo restrito da id-entificação. É este, porventura, o condicionante maior das línguas de matriz indo-europeia, particularmente activo no logos grego que, desenvolvido na ágora, o espaço público da polis, cedo enfeudou a filosofia ocidental a um projecto político-científico de redução do real a um conjunto de entidades e identidades definidas e determinadas, possibilitando o seu conhecimento conceptual, a sua ordenação mental e política e a comunicação ao serviço da vontade de poder presente em ambos. Com efeito, aquilo que passa por ser realidade, aquilo que passa por ser, resulta de uma instauração linguística e histórico-cultural de significados, sentidos e valores, ou seja, de um mundo ordenado e estável, sobreposto ao devir universal, onde o conhecimento e a acção humanos e antropocêntricos sejam possíveis, mas cuja convencionalidade se esquece nos hábitos de representação e prática que configura, como uma ficção que, pela sua repetida narração e encenação, passasse a considerar-se como a própria e única verdade. Foi este projecto que predominou na cultura mundial, padronizando o actual regime comum de consciência segundo o paradigma do logos ocidental.
Aplicada a Portugal, bem como a qualquer nação ou colectividade, a pergunta “o que é” avulta em problematicidade. Com efeito, se é difícil aplicar a categoria de ser – no sentido substancial, de algo que exista em si e por si, dotado de uma id-entidade própria – aos seres que como tal convencionalmente se designam – coisas, homens, animais - , uma vez que neles apenas verificamos processos, fluxos e metamorfoses contínuos e interdependentes, entre si e das mentes que os percepcionam, mais falacioso será pretender encontrar um ser e uma id-entidade em Portugal, realidade com-posta que a razão e a experiência não mostram dotada de uma existência em si e por si, que não esteja constitutivamente sujeita à mesma metamorfose e interdependência de todos os elementos que nela se agregam: a natureza compreendida no seu território, terra, flora e fauna, a acção e a organização social, económica, política e jurídica, a história, a cultura material e espiritual, a língua e, sobretudo, os factores do conceito de que tudo isto é Portugal, ou seja, todos os que assim o pensam e constroem, portugueses e estrangeiros, habitantes ou não do seu território. Na verdade, é apenas nas e pelas representações e acções dos homens, nacionais e estrangeiros, habitantes de Portugal ou não, que surge o conceito de que há Portugal, de que a agregação dos diferentes elementos referidos constitui uma id-entidade una, substancial e autárquica, existente em si, por si e para si. Todavia, analisado com desassombro, enquanto produto histórico-cultural complexo, constituída por múltiplos elementos tão cambiantes quantas as vidas e as mentes humanas deles indissociáveis, é manifesta a impertinência de se pressupor em Portugal um ser e uma id-entidade no sentido substancial. Uma coprodução histórico-cultural e linguística, que por definição está sempre in-definida e em curso, jamais pode, em rigor, constituir um ser e uma id-entidade fixos e imutáveis, jamais pode id-enti-ficar-se.
Analisar e pensar a fundo a realidade que se designa como Portugal leva-nos assim a vê-lo antes como um devir, um fluxo, um processo e uma metamorfose, interdependente dos devires, fluxos, processos e metamorfoses que são as vidas e as mentes de todos os que, sendo ou não portugueses e habitando ou não o seu território, o pensam e com ele interagem como tal. Livre da abstracção e ficção identitária, surge assim um Portugal simultaneamente mais real, concreto e indeterminado, que extravasa das fronteiras territoriais e administrativas, históricas, linguísticas e culturais, bem como da fronteira conceptual que separa Portugal e mundo, numa osmose com a história do planeta e com o processo em aberto da consciência e da realidade.
O mesmo acontece, naturalmente, com os demais povos, nações e culturas, tal como com todos os seres e coisas. Todos devêm em todos. Todas devêm em todas. A natureza profunda do real é a de uma dinâmica e metamórfica interpenetração universal.
sábado, 21 de agosto de 2010
Nota biográfica de António Telmo (1927-2010)
Aos vinte e três anos, entra para o grupo da Filosofia Portuguesa, depois de ter conhecido José Marinho (1904-1975) e Álvaro Ribeiro (1905-1981).
A convite de Agostinho da Silva (1906-1994) e de Eudoro de Sousa (1911-1987), foi professor de Literatura Portuguesa, durante três anos, na recém-formada Universidade de Brasília. De lá foi para Granada e, só depois, é que voltou a Portugal. Foi director da Biblioteca de Sesimbra e posteriormente radicou-se em Estremoz como professor de Português. Faleceu hoje, ao princípio da manhã, no Hospital de Évora.
Deixa uma extensa obra:
- Arte Poética, Lisboa, Guimarães, 1963.
- Gramática secreta da língua portuguesa, Lisboa, Guimarães, 1981.
- Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, Lisboa, Guimarães, 1982.
- O Bateleur, Lisboa, Átrio, 1992.
- Filosofia e Kabbalah, Lisboa, Guimarães., 1989.
- História Secreta de Portugal, Lisboa, Vega, 1977.
- Horóscopo de Portugal, Lisboa, Guimarães, 1997.
- Contos, Lisboa, Aríon, 1999.
- O Mistério de Portugal na História e n’ Os Lusíadas, Lisboa, Ésquilo, 2004.
- Viagem a Granada, Lisboa, Fundação Lusíada, 2005.
- Contos Secretos, Chaves, Tartaruga, 2007.
- Congeminações de um neopitagórico, Vale de Lázaro, Al-Barzakh, 2006/ Lisboa, Zéfiro, 2009.
- A Verdade do Amor, seguido de Adoração: cânticos de amor, de Leonardo Coimbra, Lisboa, Zéfiro, 2008.
- Luís de Camões, Estremoz, Al-Barzakh, 2010.
- A Aventura Maçónica, Lisboa, Zéfiro, 2010.
- O Portugal de António Telmo, Lisboa, Guimarães, 2010.
O seu funeral realiza-se amanhã, 22 de Agosto, em Estremoz, pela 9 horas.
Fonte: Nova Águia
"A identidade religiosa de Luís de Camões" - texto de António Telmo que publicamos em sua homenagem, no dia em que partiu deste mundo
"René Guénon nunca fala dos portugueses, mas, como muitos outros textos seus, este, que recolhi do seu famoso livro O Rei do Mundo, está intimamente ligado connosco. No âmbito do que me propus tratar neste primeiro caderno de filosofia livre, abre caminhos insuspeitados no sentido de determinar a verdadeira identidade de Luís de Camões.
É assim como se segue:
“Na Idade Média havia uma expressão, na qual os dois aspectos medulares da autoridade (régia e sacerdotal) se encontravam reunidos de uma maneira digna de nota. Nessa época falava-se muitas vezes de uma região misteriosa a que se chamava “o Reino do Preste João”. Era no tempo em que o que se poderia designar como a “cobertura exterior” do Centro Supremo era formado numa boa parte pelos Nestorianos (ou o que se convencionou chamar assim com razão ou sem ela) e os Sabeus. E eram estes, precisamente, que davam a si mesmos o nome de “Mendayyeh de Yahia, isto é, “discípulos de João”.”
Em nota ao que vem dizendo, o ilustre francês informa que “se encontraram na Ásia Central e particularmente na região do Turquestão, cruzes nestorianas que, como forma, são exactamente semelhantes às cruzes da cavalaria”
Mais adiante, esclarece o que deixou atrás: “Para que ninguém se admire da expressão “cobertura exterior” que viemos de empregar, deve ter-se em atenção, efectivamente, que a iniciação cavaleiresca era essencialmente uma iniciação de Kshatriyas (Guerreiros), o que explica, entre outras coisas, o papel preponderante que aí representa o simbolismo do amor.”
Começa já a desenhar-se a figura guerreira do poeta de Amor Luís de Camões. Esta relação com o texto não terá nada de surpreendente quando nos lembrarmos que os nestorianos na Ásia eram os cristãos de São Tomé, de São Tomé a quem o poeta dedicou nada menos do que doze estrofes d’Os Lusíadas.
Estas doze estrofes que aparecem como que engastadas no curso do Canto X todo ele em grande parte tratando de geografia, narram a vida, os milagres e a morte do apóstolo na Índia. Ainda mais estranho é o modo como Camões faz a exaltação do Santo ao referi-lo como “o núncio de Cristo “verdadeiro”. Não sabemos, dada a índole da sintaxe portuguesa, se o adjectivo se refere a núncio ou a Cristo. Se a núncio, então distingue-o como verdadeiro entre os outros; se a Cristo, então deve supor-se a existência de falsos Cristos. O último verso das doze estrofes é como uma luz que ilumina todo o relato: “Mas deixemos esta matéria perigosa.”
Perigosa porquê? Por dizer que Tomé era o núncio de Cristo verdadeiro? Por dizer também que são seus os lusitanos?
Temos de perscrutar mais fundo"
sexta-feira, 20 de agosto de 2010
Nasce a revista que eu sonhei
Hoje nasce oficialmente a revista que eu sempre sonhei poder ler um dia. Hoje nasce a revista que qualquer um de nós espera para ler. Folhear devagar, soletrando cada palavra porque em cada uma, há um paladar de enorme prazer. E se o texto é bom a beleza se espalha em cada página. Hoje na Bienal do Livro de São Paulo - Anhembi - estande da Imprensa Oficial, pelas sete da noite está nascendo a revista que partilha literatura.
Quem vive em São Paulo que corra e sorria porque hoje nasce a Revista Pessoa. Quem vive longe acesse o site www.revistapessoa.com e folheie online a revista no seu formato electrónico.
Hoje é um dia daqueles! Eu que detestava lançamentos lamento não poder brindar com um longo abraço a minha querida amiga Mirna Queiroz, responsável por este fabuloso projecto.
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
quarta-feira, 18 de agosto de 2010
pequeno poema de à beira-Mar
A louca e o Editor
- Oh, tu que estás do lado de fora, editas-me?
Com um sorriso sem qualquer ironia responde o editor:
- E queres editar o quê? Poemas, Contos, Romance, Novela...?
A louca fica sem cor, conta e reconta mentalmente muitas vezes antes de responder:
- Poesia...
- Ah, poesia é muito difícil de editar...
- Então contos, também tenho muitos,
- Os contos sofrem do mesmo mal que os poemas,
- Se só me resta o romance, tenho um quase feito...
- Desculpa-me , mas tenho pressa. Não está na hora do teu recolher?
A louca, internada no lado de dentro, sorri.
- O recolher é só as nove. Ainda são dez, PALERMA!
Aura-Mater
-cidades-
nos planos espiritual e material,
a liberdade individual e o benefício da acção colectiva."
Carta de Atenas, 1933
terça-feira, 17 de agosto de 2010
Verão em Oriola - há 25 anos
segunda-feira, 16 de agosto de 2010
quero viajar pelo mundo
viver/conviver com o sorriso
e o choro daqueles que habitam outras paragens.
Não vou poder abraçar as mulheres - girafa,
nem as meninas que vestem a burca
mal o sangue lhes escapa.
Não vou conseguir aprender
com as gueixas a arte de ouvir,
nem com as índias a de parir
e sorrir.
Queria viajar e sentir
em todos um abraço
que resulta do que cada um somos
enquanto vida.
Queria aprender a dançar
e a rezar sem conceitos e preconceitos.
Hoje acordei com a falta que tenho
de não poder jogar-me nos braços
do homem que dança o tango.
Hoje dei conta da falta,
e da vontade que tenho em voltar,
do tempo que uma vezes é longo
e agora tão curto.
Quero abraçar o mundo e para isso terei sempre tempo.
Petição pela abolição das touradas e de todos os espectáculos com touros
a) a ciência reconhece inquestionavelmente a maioria dos animais, incluindo cavalos e touros, como seres sencientes, capazes de sentir dor e prazer, físicos e psicológicos, bem como sentimentos de medo, angústia, stress e ansiedade;
b) as touradas gozam em Portugal de um injustificado regime de excepção legal, pois o ponto 2 do Artigo 3.º da Lei n.º 92/95 de “Protecção aos animais”, que diz que “As touradas são autorizadas nos termos regulamentados”, contradiz frontalmente o ponto 1 do Artigo 1.º da mesma lei, que declara que “São proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal”, o que é manifestamente o caso das touradas;
c) a maioria da população portuguesa é contra a tauromaquia, conforme mostra um estudo realizado em 2007 pelo Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE;
d) as touradas ofendem a fé e o sentimento maioritariamente cristãos e católicos do povo português, pois a Bíblia apresenta os animais como criaturas de Deus (Génesis, 1, 24) e o Catecismo Católico declara ser “contrário à dignidade humana fazer com que os animais sofram ou morram desnecessariamente”, doutrina recentemente recordada pelos Papas João Paulo II e Bento XVI;
e) o artigo 9.º da Constituição da República Portuguesa consagra como tarefa fundamental do Estado “promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo”, o que se contradiz pela permissão das touradas, que ofendem o sentimento maioritário da população e contribuem para a degradação moral de quem obtém prazer estético e psicológico com o sofrimento dos animais;
f) as touradas são uma das expressões de uma cultura da insensibilidade e da violência que degrada quem a pratica e promove, o que ofende o Artigo 1.º dos “Princípios fundamentais” da Constituição da República Portuguesa, que proclama Portugal como “uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana”;
g) vários estudos e especialistas concordam que a prática e a aceitação da violência contra os animais predispõe para a prática e a aceitação da violência contra os homens;
h) o progressivo abandono de tradições retrógradas, contrárias a um sentido humanista de cultura como aquilo que contribui para nos tornar melhores seres humanos, é o que caracteriza a evolução mental e civilizacional das sociedades e melhor corresponde à sensibilidade contemporânea;
i) a existência de touradas no século XXI constitui um embaraço para Portugal perante a comunidade internacional, configurando a imagem de um país com pessoas e práticas bárbaras;
j) a abolição das touradas é compatível com a manutenção da sua coreografia, sem a utilização de animais, num espectáculo em que se preserve a estética tradicional e que possa converter-se na atracção turística que as touradas não são e nunca foram, pela repulsa que geram nos cidadãos estrangeiros (a evolução dos costumes ditou o mesmo em muitas culturas, convertendo antigas práticas marciais, com mortes e derramamento de sangue, em artes lúdicas, como no caso do kendo japonês e da capoeira afro-brasileira, entre muitos outros exemplos);
l) a abolição das touradas vem na linha humanista da abolição da pena de morte, em que Portugal foi pioneiro, e promoverá a imagem de Portugal em todo o mundo, sendo um contributo decisivo para o país mais ético que todos desejamos, esse “país mais livre, mais justo e mais fraterno” consagrado no “Preâmbulo” da Constituição da República Portuguesa;
Vimos por este meio solicitar que se aprove legislação no sentido de abolir completamente as touradas e todos os espectáculos com touros, sob qualquer forma, em todo o território nacional, convertendo-se as actuais praças de touros em museus e casas de cultura onde se preserve informação sobre uma prática ultrapassada e onde se promovam actividades humanitárias e de introdução dos jovens e do público em geral a um maior conhecimento e sensibilidade para com a natureza e os seres vivos, criando postos de trabalho onde se podem inserir muitas das pessoas agora dedicadas às actividades tauromáquicas.
www.peticaopublica.com/PeticaoVer.aspx?pi=010BASTA
Compaixão sem sabedoria? Egocompaixão?
Friedrich Nietzsche, O Anticristo, Edições 70, p.19
sábado, 14 de agosto de 2010
para o RODRIGO
Traz-me
a música que habita em ti
beija-me até que ela seja eu
ensina-me, amor a melodia
que desaprendi antes de ti
às seis da manhã
o galo canta
o beija-flor acode feliz
e eu ainda estou a dormir
amanhã, antes do sol nascer
eu ainda sou criança
fala-me dos dias
quando despertas
e o verde é igual ao azul
mas antes,amor
cobre meu corpo
com a melodia do teu.
sexta-feira, 13 de agosto de 2010
quinta-feira, 12 de agosto de 2010
Orfeo ed Euridice
quarta-feira, 11 de agosto de 2010
Sacralização da Mulher
terça-feira, 10 de agosto de 2010
«Por isso vos digo: depois de Deus, os vossos melhores pensamentos deverão ser para as mulheres e as esposas, sendo a mulher para vós o templo divino, onde mais facilmente obtereis a perfeita felicidade.»
O Melhor dos Filhos do Homem
XII 17
Rio São Francisco e seus afluentes
Onde houver ódio, que eu leve a consciência do ódio;
Onde houver ofensa, que eu leve a consciência da ofensa;
Onde houver discórdia, que eu leve a consciência da discórdia;
Onde houver dúvida, que eu leve a consciência da dúvida;
Onde houver erro, que eu leve a consciência do erro;
Onde houver desespero, que eu leve a consciência do desespero;
Onde houver tristeza, que eu leve a consciência da tristeza;
Onde houver trevas, que eu leve a consciência das trevas;
Ó Mestre, fazei que eu procure mais
Entender a ação das forças em mim, que tentar controlá-las;
Compreender o que está dentro, para compreender o que está fora
Amar a mim mesmo para que possa ser amado
Pois, é livrando-nos da culpa que perdoamos a nós mesmos
É morrendo em vida que se vive a eternidade.
segunda-feira, 9 de agosto de 2010
Novas datas do retiro "Descobrir o Buda em nós": 4-5 de Setembro/Inscrições até 26 de Agosto
Casa Grande - Paços da Serra, 4-5 Setembro. Um retiro de verão junto à Serra da Estrela.
Todos possuímos um infinito potencial de liberdade, sabedoria e bondade, a que a tradição budista chama natureza de Buda. Esse potencial está encoberto pelos nossos conceitos, emoções negativas e padrões inconscientes de comportamento, que nos mantêm constantemente agitados e preocupados, mas pode ser descoberto mediante o acalmar da mente e a abertura do coração. É esse o objectivo deste retiro, que nos oferece um espaço de encontro connosco próprios e possibilita a experiência directa do que realmente somos, para além de qualquer pressuposto moral, filosófico ou religioso.
O retiro será facilitado por Paulo Borges.
Reservas até 26 de Agosto: Margarida Vasconcelos
Tlm: 934297935
Tel: 238496341
info@casagrande.com.pt
www.casagrande.com.pt
"Que tudo fundamentalmente mude!"
Na oficina, nas casas, nas assembleias, nos templos, por todo o lado, que a metamorfose se cumpra!" - Hölderlin, "Hypérion".
E que esta nova divindade seja a consciência afectiva do Todo, a sabedoria amorosa que abrace fraternalmente todos os seres vivos!
domingo, 8 de agosto de 2010
MEOlogismos (vale um sorriso?)
sexta-feira, 6 de agosto de 2010
Blink
um retrato imaginado através do visor da tua câmara,
havia-se escapado do portefólio.
Por uma fracção de segundo procuraste por ele
enquanto o revisor pacientemente aguardava
que lhe entregasses o passe.
É assim,
sem nada até aqui teres compreendido,
entregaste-lhe um bilhete,
pois é assim que os sonhos te aparecem…
ao veres a ideia surgir na face do pequeno talão,
estendes-lhe o braço, e acordas,
como é o hábito de todos os viajantes…
A tua memória é a fotografia…
e quando te esqueces de voltar às imagens
elas acabam por se arrumar em pilhas…
Uma sobre outra se implantam
Uma sobre outra te enformam.
Caprichoso artifício da câmara,
do oco de uma caixa preta
com uma larga correia de couro pendida,
és fruto de um dispositivo,
de um pequeno cubóide adornado por dois olhos
que através dele imaginam o que tanto anseias.
Crias-te na imagem.
Dois visores… - dirias…
um sobre o outro,
o outro sobre o lado…
como que abaulados para fora,
tal qual dois bombons de hortelã-pimenta,
como aqueles bombons de menta
que ingurgitas noite e dia.
Cursas rápido, sempre eterno,
e desembestas…
o acaso faz o resto – explicarias…
Mas… foi apenas um trémulo disparo,
um clicar meio bêbado
que te fez colocar
um quadrado virgem na célula crua
pronta a impressionar.
E eis que, mas…
é assim…
e impossível é saber-se mais que nada,
como agora meramente um símbolo,
um apenas, ou mais que um número a fixar,
mais um que retratasse esse instante
como se a memória começasse com a fotografia,
contigo,
que as fizeste notáveis,
ao chão e à paisagem,
ao céu sobre a terra,
ao mar sobre o chão,
à criança,
a ti,
a todo-o-mundo visto da plateia
a mais nada como ninguém…
Sorrias, choravas,
mas esqueceste-te de rodar a pequena peça
de alvo latão cromado, colado ao teu polegar…
É a plateia quem te observa
e não a fotografia que mais desejas.
O tempo, deve passar e passar…
Tanto no fim, como ao inicio,
todo ele é infante, dor aguda,
e isso acontece como quando tu a vês,
como quando tudo te é primeira vez.
Assistes a célula e isso faz de ti seu alguém.
É o mundo quem te cria e não a fotografia em que pensaste.
Às vezes, interrogas-te…
- talvez fosse utopia ou parte da história que eu sonhei,
e sonhei, e sonhei…
Mas, como em todas as histórias acontece,
mudas-te por fim,
subitamente de rumo,
cruzas-te por aquela rua repisada
e entras já atingido em um novo caminho
que julgas não muito estar desviado da tua própria casa,
onde hesitas,
mais-que-vacilas,
onde deixas de a reconhecer…
esqueces a cor das cortinas,
esqueces-te da forma das janelas,
esqueces-te de ti dentro do seu apartamento.
Ela, é a fotografia,
a que te abre a porta de casa
com um espelho de vidro na mão…
Havia um espelho, sim, um espelho…
e uma câmara coberta de pó colorido…
um imenso espelho decomposto em imagens,
um espelho incluso peça a peça
- e sorris…
Vês agora a janela que deixaste aberta,
vês-te por cima de uma rua deserta
onde antevês o que entanto aí se passeia…
teu inerme contorno que serpenteia,
a tremer, a tremer…
a forma do teu atelier
que rente está do chão…
no espelho sempre aberto
há essa imagem diferente
como um reflexo contínuo…
passado e presente…
Saíste para comprar tabaco
– é o que diz a fotografia
de novo na PISCINA
Arte é dor que vai doendo
Conhaque é conhaque
Que pensará o fósforo quando se acende?
Realmente é tudo uma questão de se lhe perguntar
Um velho acamado espera a sua justiça
As infâncias raramente se acham
Nada tem de negativo
É apenas uma questão
Que terei de colocar a um fumador de charutos
De preferência cubanos
Com Havana em espiral movimento
E o Fidel quase morto ainda aces
Ponho um lápis na orelha
E finjo-me poeta
Terei de rever as minhas análises
O sangue perfeito
O motor ainda dá
De amores não acusa nada
Na gaveta tenho inúmeros verbos
Se calhar mal conjugados
Arrisco?
Às vezes dou uma passa no cigarro e aperto os lábios
Tiro fotocópias à minha cabeça e falo com ela
Do duplicado escolho o mais feio
Fico então com a impressão que a escolha é de arte
Depois de ler Cruzeiro Seixas vejo que não
Que não há arte nenhuma nos cabelos que ficaram
na lente da fotocopiadora
Os monstros são só para criar cenários
A pornografia é um estado de alma
E Galileu tinha muita alma com certeza
Os versos das meninas do bar sete são compostos por exageros
Empastam a tinta entre os dedos
Sujam seus caracóis e publicam mesmo assim
Depois do editor cometer o seu crime
Um ladrão ao dar-me um esticão no saco levou-me o braço
Por sorte nasceu outro braço no lugar do outro
Acha que isto é arte?
Estou farto de dizer
Arte é o desenho que faz as varizes
E conhaque é a mesa misturadora dos egos e super egos
Passe bem!
quarta-feira, 4 de agosto de 2010
de manhã nas PISCINAS
-espírito-
Com a sorte de viveres o presente
Esquece a incerteza e de peito aberto
Permite que a flor, em perfume desabroche,
Pois existe um oásis, no teu deserto.
Deixa que a tua função, o tempo exerça
e esse momento pleno e intenso, vive.
Não te cabe, o prelúdio desse drama,
Não antes da peça propriamente dita.
Quem te quer, já abriu o teu peito e to leu.
Plantou no chão do teu coração, a certeza.
Viçou-o pr'a sempre, mesmo que não seja.
Considera a possibilidade de amares e sonhares
Embriaga-te dos seus efeitos, enquanto dura.
E que a estrutura desse amor, seja a tua cura.
De Glóra Salles