O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quinta-feira, 26 de agosto de 2010

"tudo corre"

«Enquanto houver madeiros estendidos sobre a água, enquanto houver pontezinhas e parapeitos vencendo o rio, na verdade não se dá crédito aos que pretendem que "tudo corre".
«Até os próprios imbecis o contestam. "O quê? - dizem os imbecis - tudo corre? Contudo, os madeiros e os parapeitos mantêm-se firmes por cima do rio."
«Tudo o que está por cima do rio é sólido, todos os valores das coisas, as pontes, as noções, o bem e o mal, tudo isso se mantém.
«Chega o rude Inverno, o domador de rio, e os mais maliciosos aprendem a desconfiar; e na verdade apenas os imbecis são então capazes de dizer: "Não será verdade que tudo está - imóvel?"
«No fundo tudo permanece imóvel; eis um verdadeiro ensinamento do Inverno, uma boa coisa para os tempos de esterilidade, um consolo para os hibernantes e para os sedentários.
«"No fundo tudo permanece imóvel"; mas é contra este facto que prega o vento do degelo.
«O degelo, touro que nada tem de boi de trabalho, touro furioso e destruidor, que quebra o gelo com cornadas. Ora o gelo, por sua vez - quebra as pontes.
«Ó meus irmãos, não é verdade que agora tudo corre? Não caíram à água todos os parapeitos, todas as pontes? Quem poderia ainda agarrar-se ao "bem" e ao "mal"?
«"Ó infelicidade! Ó felicidade! Eis o vento do degelo!" Ide pregar esta verdade por todas as ruas, ó meus irmãos.»

F. Nietzsche, Assim Falava Zaratustra, tradução de Alfredo Margarido, Guimarães, 2007, pp.269-270

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