O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quinta-feira, 26 de agosto de 2010

A morte da "Filosofia Portuguesa" (texto de Miguel Real sobre "Uma Visão Armilar do Mundo", publicado no JL de 25 de Agosto)



O movimento da “Filosofia Portuguesa” nasceu em 1943, em torno da publicação do livro de Álvaro Ribeiro, O Problema da Filosofia Portuguesa, reivindicando o legado espiritual de Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoais, Leonardo Coimbra e Fernando Pessoa. Neste movimento cultural ganhou raízes um dos mais importantes grupos de pensadores portugueses do século XX – José Marinho, António Quadros, Afonso Botelho, Orlando Vitorino, Pinharanda Gomes, António Braz Teixeira… -, que revolucionaram o pensamento filosófico português. Com a recente publicação de Uma Visão Armilar do Mundo, de Paulo Borges, autor cujos primeiros livros operavam o cruzamento entre as teses da “Filosofia Portuguesa” e a filosofia de Agostinho da Silva, pode dar-se por terminado este movimento. As teses fundamentais da “Filosofia Portuguesa” sublinhavam o sentido nacional de um espiritualismo profético firmado na língua portuguesa, um providencialismo vanguardista firmado na cultura portuguesa, um serviço missionário prosélito e messiânico de regeneração de Portugal contra o positivismo, o materialismo e o cientismo europeus. O Império aí estava para garantir e recordar aos cépticos o papel de Portugal no mundo como rosto avançado da espiritualidade cristã. Porventura os mais fortes documentos históricos sintetizadores das teses do grupo serão os números 1 e 2 da revista 57. Movimento de Cultura Portuguesa (dir. António Quadros), o primeiro com o “Manifesto de 57” e o segundo com o “Manifesto sobre a Pátria”, bem como o texto O Espírito da Cultura Portuguesa (1967), de A. Quadros. Assim, em finais da década de 1950, princípios da de 60, o núcleo filosófico das teses aristotélico-cristãs alvarinas, apresentado em 1943, ganhara uma dimensão política patriótica e imperial.

Paulo Borges, sintetizando o núcleo central das teses da “Filosofia Portuguesa” a partir de cinco estudos relativos ao Quinto Império (Camões, Vieira, Pascoaes, Pessoa e Agostinho da Silva) e da transformação dos dez mitemas da cultura portuguesa de A. Quadros em “instâncias [ontológicas] de realização de si”, do “nosso ser e consciência mais universais e profundos” (p. 206), propõe uma verdadeira desnacionalização da “Filosofia Portuguesa” [“o conceito de identidade nacional é, pois, tal como o de identidade pessoal (…) uma mera abstracção que em última análise apenas funciona na lógica da ignorância dualista que predomina na mente humana”, pp. 230-231), integrando-a na lógica de um “patriotismo transpatriótico” (p. 232), universalista, superador de Portugal e da lusofonia numa comunidade ecuménica, global, de toda a humanidade.


Para Paulo Borges (cf. Manifesto “Refundar Portugal”, pp. 235 – 243), as “pátrias” fazem parte, hoje, do “círculo vicioso e infernal” (p. 232) que impede a existência de uma “cultura da paz, da compreensão e da fraternidade à escala planetária, que hoje se sabe não poder visar apenas o bem da espécie humana, mas também a preservação da natureza, da biodiversidade e do direito à vida e ao bem-estar de todas as formas de vida animal, como condição da própria sobrevivência da espécie humana e da qualidade e dignidade ética da sua vida” (p. 236). Dito de outro modo, o nacionalismo, sobretudo o nacionalismo filosófico, é encarado hoje como um prolongamento serôdio (senão uma excrescência) do século XX. De certo modo, o novel conceito de “razão atlântica”, de A. Braz Teixeira, já apontava neste caminho, mantendo, no entanto, um vínculo ontológico forte à língua e à cultura portuguesas. Neste sentido, a uma época de globalização corresponde um pensamento globalizado, no qual, ainda que com sólido respeito pelas filosofias passadas, como o faz Paulo Borges, a busca de novas raízes e novos horizontes de transcendência superam o arreigamento aos clássicos conceitos históricos gerados em torno da rivalidade entre pátrias e nações.

Neste sentido, Uma Visão Armilar do Mundo estatui os cinco grandes autores portugueses acima citados, não como estritos pensadores da identidade nacional, como limitados “pensadores portugueses”, mas, enquanto portugueses, autores que visariam, de um modo universal, as quatro características manifestadas simbolicamente na “esfera armilar”: “perfeição, plenitude, totalidade e infinidade” (p. 10). Como se vê, não se trata de “nacionalizar” Camões, Vieira, Pascoaes, Pessoa e Agostinho da Silva, mas, ao contrário, de os universalizar como símbolos passados de um mundo novo português e lusófono, num “ímpeto de ser tudo de todas as maneiras e nisso sacrificar, esquecer e perder a própria identidade, transfigurando-a divina e cosmicamente” (p. 11). Ou seja, para que Portugal ressuscite sob formas superiores, Paulo Borges defende a morte do Portugal do século XX (o Portugal monárquico, republicano, estadonovista, socialista, social-democrata), integrando-se no grande futuro global do mundo, regido por outras e muito diferentes regras, que os antigos designaram por Quinto Império.

Importantíssimo chamar a atenção do leitor que, com este livro, Paulo Borges, sem abandonar a tematização sobre a vocação universal da cultura portuguesa, “despatriotiza” e “desnacionaliza” vincadamente o seu pensamento, marca permanente da sua filosofia desde Do Finistérreo Pensar (2001), sublinhando as características mais fundamente filosóficas (isto é, universais, ontológicas, metafísicas) e minimizando as mais explicitamente circunstanciais ou “nacionais”, ou, melhor, espiritualiza (o primado da consciência) de um modo “armilar” o que restava pertinente ou exclusivo da cultura portuguesa. Face a um pensamento assim tão pujantemente planetário, as teses da “Filosofia Portuguesa”, fundadas num aristotelismo cristão (Alv. Ribeiro), num esoterismo português (A. Telmo) ou numa “patriosofia” (A. Quadros), com uma particular apetência para o repensamento do Deus cristão (Amorim Viana, Cunha Seixas, Sampaio Bruno, Pascoaes), constituem-se como figuras tutelares, avoengos de retrato figurado nas galerias da história passada. Paz à sua alma (a “Filosofia Portuguesa”), que a vida lhe foi farta e, com discípulos como Joaquim Domingues, Paulo Borges, Renato Epifânio, Rui Lopo, António Cândido Franco e Rodrigo Sobral Cunha, a terra não lhe será pesada.

Uma Visão Armilar do Mundo. A Vocação Universal de Portugal em Luís
de Camões, Padre António Vieira, Teixeira
de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva
,
Lisboa, Editora Verbo, 2010, 243 pp., 18 euros.

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