No jardim entra-se por um fio de luz. Uma corda por cima do abismo há-de achar-nos o rosto: uma feição acima da nossa mesma altura. Há-de haver pássaros, porque os havia antes, entre as dobras do tempo. Abro essa seda e essa sede que, desdobrada, é um mar acetinado e azul, chão e céu da nossa insaciávlel sede de voar. Fecho todos os buracos da luz com um grito escuro. Escrevo na folha do jardim as viagens que a lua faz, empurrada pelas nuvens, a quererem sair da moldura, como o cavalo do pintor. O Poeta leva consigo as penas para lá do rio, para lá da montanha, entre margens onde dormem as luas, e as brisas são puros cristais na noite da saudação.
Lugares de sombras adormecidas, à espera do corpo de luz. Cansados olhos de sonhar. O futuro é o passado que amanhece - oiço o Poeta dizer. E dou um salto que me entreolha de nenhum lugar. Sobe-se ao céu por uma escada de luz. As fogueiras ardem para lá do tempo que está e do que foi. Em Saudade, olho, como se cegasse, a copa das árvores e os anjos que sobrevoam o Real. Espectros ardem enquanto o trapezista vestido de Arlequim, deixa cair uma bola na relva do jardim. No jardim perde-se o olhar e a nudez no gesto de varrer as folhas, a alma curvada das paisagens que correm do distante bosque para a pérola dos olhos. A tristeza é um dédalo a tecer as asas dos cisnes. O cisne é a morte cantada, a visão orante dos flamingos, no coração da densa selva. África é uma oração, um nódulo no peito, lusa paixão do oiro. A argonauta lembrança de um jardim mais-que-perfeito. Percorro o jardim e, ao centro dos olhos chego, ali onde a tristeza é um dédalo a tecer as asas dos cisnes. Na mão seguro o livro sagrado: um verbo em sombra: um livro de novas Saudades: ... vagueio ao luar no meu jardim. Um jardim de Saudade. Ergo – tal como o poeta do Marão - no ar o cálice da Realidade e levanto-a em sonho, para que se desfaça nos olhos do Poeta. Disse-o nas palavras que me ferem o peito em pranto: Que foi a minha vida? Um facho que acendi, nas trevas, para ver a morte. E morro aos pés desta verdade como se Cristo fosse última corda por cima do abismo onde toda a humanidade se revê. Como se não houvesse amanhã ajoelho e choro, lembro o poeta e acendo uma luz, qual facho ardente a limpar todas as sombras coladas ao muro e ao limoeiro reverdecido do olhar. E o meu canto aclara os medos. Como se o colo da Mãe fosse um novo e vivo oceano onde se miram os rostos perdidos dos futuros argonautas.
Havia um jardim como um sonho, aberto às luas de diferentes faces na mesma face da chuva. Como quem lavra e semeia o que foi semente que se bebe no futuro: invertida campânula, derramando deus na infinita presença do mundo.
A Deus só pertence o meu fantasma. Vivo nele em Saudade.
7 comentários:
Incomentável.
Belíssimo brinde a Pascoaes!
Beijo.
:)
lindo livro de Martinho Marques tem o título: "Com lume nos cabelos" - julgo saber agora inspirado em quem.
Cesarinny dizia que Pascoaes soltava faíscas pelo cabelo.
a tua escrita deve ter incendiado a cabeça do Mestre aonde quer que se encontre
É espantoso ver como o poeta das sombras encontra eco numa escrita tão luminosa!...
Em clarão, o lume dos cabelos de Pascoaes se acendeu na noite. Veio até mim a presença do poeta do Marão, em clarões de Saudade para iluminar a sua morte. Que morra a Saudade!
Saudades fica sempre rendida ao encanto dos vossos comentários.
Um abraço.
Para o JCN não mando, não...
Há quanto tempo não faz ele um "sô-neto"?
Agora anda só preocupado com o Saramago! Ele é Saramago para aqui... S.......para ali.
Elé... é Abel e Caím!
Nem umas quadrinhas, em arte menor... mas ao seu jeito!
Nem camoneando... nem floreando...
*(Isso) Senhor Abade!
Nem é tarde nem é cedo, para... "saudadesdofuturo":
MOSTEIRO DA SAUDADE
Chispavam fogo os cabelos
do Poeta do Marão
que hoje aina em pesadelos
sofre a sua assombração.
Todos aqueles penedos
a cuja sombra morou
têm a marca dos segredos
que com eles partilhou.
Sempre imersa em nevoeiro
que em nossos ossos se entranha
aquela imensa montanha
foi da saudade o mosteiro
em que se fez celebrante
do deus pagão de Amarante!
JOÃO DE CASTRO NUNES
Coimbra, 3 de Novembro de 2009.
Para "saudadesdofuturo", agora... em arte maior:
"Y SONT LES DIEUX"
Maurice Barrès
Anterior à nacionalidade
um deus pagão vagueia por ali
por aquelas paragens da saudade
que em plena juventude percorri.
É como um santuário pré-histórico
a serra do Marão, tocando o céu,
um templo simulado e alegórico
em si fechado como um mausoléu.
Tudo ali fala desse grande vate
cujos cabelos faiscavam fogo
como qualquer antigo mistagogo,
ou seja, Pascoaes, que tinha o dom
de com as sombras conversar e com
o Deus da Criação travar combate!
JOÃO DE CASTRO NUNES
Coimbra, 4 de Novembro de 2009.
Grata, JCN!
Gostei, pois claro!
Quando está bem disposto, JCN, é um gosto "vê-lo" com talento versejar.
Um abraço
Enviar um comentário