O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A queda do muro de Berlim

O Muro de Berlim caiu sob o estrondo da implosão do império soviético. Por cá viviam-se os anos cinzentos do cavaquismo. O anti-comunismo primário de Cavaco Silva, tributário da regência de Ronald Reagen, recém-substituído em Janeiro desse ano por Bush-pai, parecia ver-se chancelado pela História, ao vivo e em directo. Já muitos previam o fim do Partido Comunista Português e a vitória definitiva do neo-liberalismo cunhado pela trupe Thatcher-Pinochet e apresentado ao mundo como a vitoriosa ascensão do pragmatismo económico na ressaca do fim das ideologias.

O frugal Cavaco Silva desses tempos aparecia entre nós como uma espécie de versão ‘alcohol free’ dos maneirismos políticos abrutalhados da Dama de Ferro, talvez a maior apreciadora de Gin depois da Rainha-mãe, ainda viva e a dar horas. Em termos de imagem política é o que mais se pode aproximar dum cavalo-de-pau – dá para baloiçar, mas não nos leva a lado nenhum.

Mas isto sem excesso de ironia.

A queda do muro, no contexto da nossa integração europeia, foi vista, também, como uma possível ameaça da galinha dos ovos de ouro do reformismo cavaquista: com a reunificação da Alemanha a torneira dos fundos estruturais iria, certamente, fechar-se, para que o maior contribuinte para o orçamento da então CEE pudesse custear a integração da sua metade reduzida a um estado paupérrimo.

E havia, também, o medo de que essa reunificação fizesse emergir a Alemanha como uma potência mais do que regional, até então alinhada com o guarda-chuva europeu para reabilitação da sua imagem, depois do horror do Reich. Principalmente em França os velhos medos emergiram. Mas Saddam Hussein apressou-se a demonstrar que os perigos para o mundo agora desequilibrado viriam doutros quadrantes.

Mas a primeira intervenção militar da Alemanha fora do seu território depois de 1945 só teria lugar dez anos depois, no Kosovo. Aí já esses medos estavam completamente dissipados e o processo de integração europeia corria a bom ritmo, com a Alemanha reunificada a continuar a suportar uma fatia generosa do orçamento europeu.

Hoje a Guerra Fria parece um pesadelo longínquo, perdido na infância do mundo. Muitos biliões de bites depois, a geografia política, económica e cultural do mundo mudou. A escala dos acontecimentos tornou-se infinitamente mais densa e os seus significados, antes regidos pelos mitemas ideológicos, ganham uma viscosidade proteiforme no plasma da mediatização planetária.

Mas o mundo de hoje já tem um Inimigo, agora a diabolização do outro já não tem uma fronteira bem definida, uma vez que estamos na era quiliástica com que sonhava o reaganismo: voltámos ao espírito de cruzada, temos uma massa de infiéis que nos odeia, dum ódio visceral só possível a outros de nós, que se sabem reflexos nossos e que, tal como nós, não querem assumir todas as consequências disso. Nenhuma das imagens invertidas é o original da outra, porque neste jogo de espelhos não há autenticidade.

Não pode haver autenticidade na recusa do outro em nós, ou da recusa de nós no outro.

A queda do muro de Berlim não foi, portanto, uma mudança de paradigma, foi antes o reforçar do paradigma da beligerância em nome do vazio histórico.

Neste tempo em que se torna possível viver em comunidade mesmo a grandes distâncias, falar em fronteiras e em delimitações territoriais do humano é tão absurdo quanto querer ver na queda do muro uma vitória do capitalismo sobre o seu contrário, quando sabemos que o capitalismo não admite contrários. Só haverá libertação se deixarmos de querer viver acorrentados.

A vida do Espírito não se coaduna com muros, muralhas, redomas ou estufas, é agregação e superabundância, não segregação e miséria humana repartida por espaços condenados ao fracasso e à frustração.

Se quisermos uma representação exacta do mapa geopolítico do mundo, para além das fronteiras políticas e dos gigantes insanos, os Estados, dentro delas confinados, teríamos que contar com as mega-corporações, multi e trans-nacionais. Se tivéssemos um galvanómetro que pudesse medir com exactidão a potência do poder de cada uma dessas entidades, dos estados e das mega-corporações, talvez estas últimas se revelassem uma surpresa. Até a Alemanha se tem que vergar perante as mudanças de humor da General Motors. O que é, no meio disto tudo, o mosquito socrático, plantado num dos recantos da Península Ibérica?

Ruge gravíssimos rugidos, o bichano? Felizmente não.

E, contudo, a lusofonia, vivida em autenticidade, pode ser uma via de afirmação do futuro. Mas sem epifanias desta ou daquela grandiloquência de quem tem baús cheios de antigamente. A antiguidade é outra coisa, mas para isso há que ter estofo de mareante.

E no mar não há muros. Nem fronteiras. Nem teias de aranha.

Em certo sentido a aranha acaba por cair na sua própria teia. A queda do muro é o resultado dum processo assim. A Cortina de Ferro, urdida do lado de cá e do lado de lá, tornou-se obsoleta precisamente porque cumpriu a sua função: manter a humanidade no redil.

A Lusofonia não pode ser uma vontade de redil.

Fora com os baronetes, tiranetes e títeres da subjugação económica e mental.

Vivam os homens e as mulheres que fazem sociedade conversável, sociedade vivenciável, sociedade fraterna, culturalmente multi-expansiva, mesmo à custa da sua vida, da sua liberdade, da sua reputação. Quem se lembra, por exemplo, dos jornalistas perseguidos no espaço da lusofonia? Este é um problema que merece a nossa atenção, não os festins dos contentes consigo mesmos.

Como diz Leonardo Coimbra, no primeiro número da Revista Águia:

“Partindo de si, o homem deve abraçar todo o Universo.

Ser a boca onde todas as dores venham cantar, os olhos onde todos os sofrimentos venham chorar lágrimas de piedade e ternuras universais.”

A compaixão como centro da vida, e daquilo a que chamamos, impropriamente, política, por lhe termos perdido o sentido. Porque, como diz Jaime Cortesão no mesmo número daquela revista:

“Os homens são todos cegos, e os mais cegos ainda são os que têm olhos. Ter olhos só é cegar. Com eles vemos apenas a face fria e impasjavascript:void(0)sível das coisas.”

(continua).

2 comentários:

Kunzang Dorje disse...

O que fazer para derrubar os muros que se ergueram após a queda do muro de Berlim? O que fazer quando novos se erguerem após a queda destes?

Paulo Feitais disse...

Esse o problema!
É que a queda daquele muro só aconteceu porque outros muros estavam prontos a substituí-lo...
No fundo só há 'muro' para a mente emparedada...
:)