Não sei se em Messina se em Verona – os testemunhos aqui no povo divergem – vivia um padre dedicado às orações e à sua casa e propriedade. Casto e puro, o bem dotado padre tinha por hábito, todas as noites, à hora nona, passear pelo jardim de sua casa, para tomar o fresco da noite e agradecer bênçãos aos seus inúmeros santos de devoção. Tantos eram os agradecimentos que o mantinham puro.
Numa dessas noites de agradecer a Deus e aos santos, ouviu um rouxinol piar, atrás dum grande vaso de hortênsias que se esquecera de regar nesse dia. O jovem Lorenzzo pensou e disse: «Olá, um rouxinol lembrou-me o que eu tinha que fazer: regar as pobres flores…» e pôs-se a agradecer e a rezar também pelo rouxinol e por todas alminhas que pisam a terra e também pelas que voam nos ares.
Foi buscar o regador e dirigiu-se para o fundo do quintal, a cantarolar de alegria de vida boa e sã, o que não era seu hábito, mais piedoso, severo e reservado.
– Vem cá regar-me, padre! – Ouviu uma voz dizer alto – Alto lá,!... alto aí, que isto é milagre!
Ao outro dia, chegada a hora do seu passeio, o jovem sentia em si a chama de homem acender-se de novo e o perfume da terra a chamá-lo. Depois de agradecer aos santos, não esquecendo esta bênção secreta, ouviu uma voz, desta vez mais forte, mais grave, que dizia mais ou menos as mesmas palavras – Vem cá regar-me, amor! – Aqui o padre benzeu-se e receou antes de se aproximar do vaso, pois já era noite, não fossem os santos estarem a dormir e não poderem atender ao temor da sua alma.
Diz-lhe o homem: «Já vejo, padre, que encontraste o céu.» O padre teve que dizer que sim e, para evitar o escândalo, pediu à testemunha, um pobre jardineiro das terras vizinhas, que guardasse segredo do que tinha visto. O homem fez com ele um trato a contento de ambos. Aos dias pares, faria ele mesmo as delícias de Hortênsia... e nos ímpares podia o padre solicitar os seus favores. Isto feito com o consentimento prévio da mulher, vistosa, mas viúva e sozinha, que se ia também regalando com o trato. Assim, ficava o padre com os dias pares para agradecer e os ímpares para implorar o alívio que com avareza reclamava. Foi assim que viveu vida feliz, não se esquecendo nunca de agradecer a todos a ditosa sede das flores e o terno canto do rouxinol. Quanto à hortênsia, cada dia que passava estava mais viçosa.
4 comentários:
"Virei-me para a amendoeira e pedi-lhe:
Irma, fala-me de Deus.
E a amendoeira floriu"
(Nikos Kazantzakis, Retorno a El Greco)
ao qual eu acrescento:
Virei-me para o rapaz a meu lado e pedi-lhe:
Irmao, fala-me de Deus.
E o seu falo ergueu-se.
(Nao ponho nenhum "smiley" porque isto e coisa seria.)
Ana Margarida,
O saudável rapaz respondeu ao estímulo de uma mulher bonita...
A conversa sobre Deus só depois poderá ter lugar...
O que quero dizer, sem sorrisos, é que o jovem identificou a sua Natureza com Deus...Pecou em pensamento? ou foi o seu modo de sorrir?
Não desanimes.As pessoas não sabem como ser boas. Tu e esse rapaz (apenas para seguir o exemplo que deste)estão em diferentes sintonias, contextos e circunstâncias... É necessário entendimento mútuo para que as palavras e os gestos voltem ao seu verdadeiro significado. Estou certa
que possuis esse discernimento.
Continua a divertir-te e a trabalhar, pois nem a todos é dada a possibilidade de enriquecerem o seu mundo com as esperiências mais dolorosas e também encantadoras...
Bom trabalho e boas férias...
Um abraço de nós
Acredito que o Bem é mais do que a verdade, está acima da verdade, e acredito que é discreto. O Bem não é um acto, nem depende de um conjunto de acções. Se "acção" quiser dizer o que se toma hoje pela acção. A contemplação é a grande acção. Os gregos sabiam isso bem, as grandes religiões também. Mas o Bem, repito, é sem visibilidade, sem rosto, discreto. O mal é espalhafatoso, ruidoso. Gosto de todos nesta narrativa. Gosto dos que têm sede, dos que oferecem a água, dos que escondem a água. E gosto de Deus que não fala. Ah, e gosto da hortênsia, gostaria que da janela do meu quarto se avistasse uma. São plenas e belas. Agem sobre o nosso espírito porque fazem recordar não sei que caminho, mas sei que já por lá andei.
Reparei no erro «experiências»,no comentário para a Ana Margarida. Peço desculpa.
Isabel,
Também sinto ternura por estas personagens e também acho que o Bem é superior à verdade. O que admiro nestas pequenas histórias é que em todas elas (as de Bocaccio)são sempre resolvidas em silêncio e sem ruído. Em todas elas há um segredo guardado, mas não há o mal ruidoso.
Lembro-me da do jardineio , a dos amantes que se encontram no jardim...enfim. Em todas elas há uma resolução sadia dos conflitos e um acordo com todos. Não há disputa nem briga. Os irmãos da rapagriga que mataram o rapaz de quem gostava a irmã agiram com crueldde. Mas o final do conto purifica, pelas lágrimas amargamente choradas sobre o vaso onde está a cabeça do amante,a acção. Mesmo triste, a história resulta na admiração por um grandioso vaso de manjerico...«Quem foi que desapiedado/me roubou meu lindo vaso?...» Ainda hoje se canta nesse local essa cantiga...
Quanto a estas minhas hortênsias, como eu gosto dessa flor! Os caminhos a que ela me leva, são os da água, da hera e do musgo...
Obrigada por ter salvo a minha reputação!:) O mal é ruidoso, aqui o silêncio fica com Deus e com a sua discreção.
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