O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quinta-feira, 14 de agosto de 2008

CATEDRAL

Para todos os que me lêem e os que me vêm ler na mesma luz de olhar. Para os que me não vêem ou lêem, também.

O Homem é uma catedral. Sempre em metamorfose, sempre a mudar, sempre a nascer e a morrer. O corpo guarda a nossa alma, desenha-a em movimentos suaves, pinta-a com cores inexistentes que se vêem em todo o espaço inextenso. Não tem portas nem janelas a catedral da alma. É vazia para as divisões, distinções e separações. Una para as multiplicações. É sem arquitectura a catedral da alma. A matéria de que é feita não é vulnerável aos efeitos do tempo. É sem tempo, o templo. As suas pedras, as suas figuras, nada são senão sinais. Símbolos para a leitura silenciosa de uma escrita com todos os sinais dentro de um indivisível e uno corpo espiritual. O espírito que o sustenta é uma pomba livre no céu. As rosáceas são buracos no céu, onde o azul é mais transparente e vibrante e não se vê parado em nenhum lado, esse voo de pomba que é o espírito santo, no centro sem centro desse espaço aberto e invisível. É sem princípio e sem fim. Com ser e sem haver. Os sopros vêm em todas as direcções. As colunas do templo são braços e abraços. Como asas transparentes os vejo. E a pedra em que assentam é uma pedra rasa sobre o chão verde, em espiral elevado. É uma pedra de Sol a arder por si mesma. A pomba está em cima, está de lado, está em baixo, voa onde desaparecemos, e aparece onde voamos. Por isso uma catedral é um lugar sagrado. Faz vibrar quando quer a pedra do peito, não reflecte o que vemos senão o que sonhamos.

Pois uma catedral não existe completa nem perfeita, nem estática. Uma catedral é uma Serpente sempre para além, a ultrapassar. Tal como um imenso oceano sempre a encher e a vazar, sempre em movimento, uma catedral é um som fundo e vago, a inspirar e a expirar. Uma catedral há-de ser como um berço para nascer e uma campa para morrer. E nesse berço passam os movimentos dos que amamos e embalam-nos e afagam-nos; e nessa pedra rosa onde dormimos e repousamos, passam os passos dos que amamos e parece que vão mais devagar, em oração, os passos em oração sobre o nosso corpo e a nossa alma são uma missa de louvor ao templo que somos. São o retiro espiritual do nosso repouso. Uma catedral é uma saudade de Ser.

Uma catedral é uma montanha onde o ar é mais puro e parece que o céu não acaba para os pássaros que soltamos. Uma catedral é um pássaro porque é mais ágil o seu voar do que o seu pensar. Uma catedral somos nós dentro do nosso corpo a sonhar e a rezar.

5 comentários:

Paulo Feitais disse...

Comungo!
E da Catedral nunca estamos exilados. Mesmo quando lutamos com o nosso Anjo, quando temos medo, medo pânico, de o encararmos, de nos entregarmos ao seu silêncio e a tudo o que ele é, enquanto viva presença dos nossos sonhos mais puros.
Se me permites, deponho aqui dois poemas, um, o primeiro, para que o seu trinado possa ecoar pelas paredas aladas da Catedral que nos mostras (a mesma onde se demoram os que se entregaram, de forma total, ao Sonho). O outro, diz-me muito.
"La Guitarra

Empieza el llanto
de la guitarra.
Se rompen las copas
de la madrugada.
Empieza el llanto
de la guitarra.
Es inutil callarla.
Es imposible callarla
Llora monotona
como llora el agua,
como llora el viento
sobre la nevada.
Es imposible callarla.
Llora por cosas lejanas.
Arena del Sur caliente
que pide camelias blancas.
Llora flecha sin blanco,
la tarde sin manana,
y el primer pajaro muerto
sobre la rama.
O guitarra!
Corazon malherido
por cinco espadas."

Federico Garcia Lorca

"Sei que para lá de ti,
há outros rios, outros sóis, outras marés,
que eu não aprendi.
Mas quero-te, apesar daquilo que não és.

Sei que para lá de ti,
há castelos com tesouros que não mereço,
um céu que ri.
E amo-te ainda, por aquilo que desconheço.

Sei que para lá de ti,
espreitam negruras e carreiros de solidão,
que já percorri.
Partir, será ainda solução?

Sei que para lá de ti,
há maravilhas que não me podes dar,
e que eu pedi.
Pode um egoísta como eu, saber amar?"

Manuel Filipe

E duas moradas que gosto de visitar:
http://catedral.weblog.com.pt/arquivo/poesia_ilustrada/index0
http://poemasmanuelfilipe.blogspot.com/

:)

platero disse...

um saquinho de
Selo-de-Salomão
para a tua Catedral

ou de
Vara-de-ouro?
ou
de avelária?

beijinho para ti

Anónimo disse...

Paulo,

Nunca estamos exilados, estamos em nossa casa, mas essa casa move-se, é preciso deixar o sonho ir com ela, porque ela é a casa do Anjo com quem temos conversas até ao sono. É uma casa sem paredes, tectos ou janelas. é a casa da mãe-natureza, sempre a mudar... Às vezes, ultimamente, percebo a chegada do outono por uma brisa mais fresca, por um cair de uma folha mais leve...vêm aí as forças
que fermentam a terra, e a noite chega mais cedo...o que será de mim, este outono? Para onde se dirigirá a catedral móvel do nosso exílio, que não prisão?
Sei que a "tua" guitarra não deixará de trinar, uns trinados mais nostálgicos, mais virados para o norte e para a distância. Quando a ouvir, como agora, agradeço o som que a trouxe para dentro da catedral. O Amor estará gravado nas
folhas e nos dossiers do nosso ofício de construtores de almas que ainda não sabem que são a catedral.
Ai, que até me deu um arrepio, quando me lembrei, desculpe, do no que aí vem.
Conto com o Anjo para lutar não comigo, mas a meu lado.

Um beijo trinado de nota dolente

Anónimo disse...

Platero,

Meu amigo, porque será que as ervas que me ofereces, para pôr nas jarras da catedral me brilham, mas menos que o sorriso dos teus olhos?!

Isso deve ser porque o cebolinho (?) ou cebolinha fez chorar Platero?

Um beijo

Unknown disse...

Falando em Catedral... :)

Nosso corpo é como a Terra, dá voltas e voltas sempre sabendo para que foi e o que deve ser feito.
Mas e a nossa mente? É como o Sol que por tão luminoso ser, o seu lugar é o centro. Mas porque nos mente? Não mente, apenas (se) encobre quando noite. Logo (se) descobrirá, quando o dia chegar...
Mas e o sentimento, este espírito de amor? O que é? Poderoso como é... É a cor azul do Céu que sentes mas não tocas, é a imensidão do Mar que nos une mas não agarras, é a nossa Lua... unida ao Sol!