domingo, 30 de janeiro de 2011
Se levarem Vénus...
Mais um capítulo só para Clara distrair-se. Revejo textos antigos. O do diospiro encaixa no meu livro.
Clara chega sempre sorridente. Fala baixo. Ouve só o que quer.
- Então Ana?
Feliz, digo que escrevi, escrevi, escrevi, escrevi! Na estante todos meus desabafos (alguém conhecido assim condenou a minha escrita). Orgulhosa mostro quase 20 páginas A4.
Enquanto acomoda-se no sofá, faço um chá - Flores da Paixão – chá verde com rosas.
Clara avisou-me que ia apontar todos os erros. Aceito como um exercício de humildade.
- Ana, falta a ligação... Não estás a escrever só para ti. Nada é tão óbvio.
- hm
- E depois os diospiros não se descascam!
- Nunca os comi, apenas imaginei.
- Mas está errado amiga. O diospiro abre-se. Chupa-se.
- Deixa-me descacar a fruta Clara. Deixa-me dar dentadas na laranja.
- Eu deixo. Mas está mal. Olha, não te vou largar. Vou ser uma chata. Só vais alterar se achares bem. Mas não te vou poupar.
Hoje, David enviou-me uma mensagem a dizer que eu comesse o fruto como bem quisesse. Quando menos espero apetece-me morder um ananás com casca. Ferir os lábios, sangrar. No meio da dor o suco da fruta a fazer-me feliz.
- Quero mostrar-te a carta que escrevi a Cleo quando Gabriel saiu de casa. Quero expulsar a dor que resta. Importas-te?
- Claro que não.
Ontem, disseram-me que uma energia intrusa tomou conta da mim. Baco, Vénus, Sansão e Dalila moram comigo. Se os expulsar o que vai restar de mim?
Estou tão cansada desta convivência! Por isso, não resisto. Que venha à superfície o que sou.
Como sempre, sigo o meu impulso. Meu Deus que procuro eu? Mostrar que valho a pena? Esta modéstia mentirosa. Vou tirando o disfarce. Dalila não me cortes o cabelo!
A febre volta a tomar conta de mim. Deliro. Quero embebedar-me. Esquecer. Tirar a roupa, perder-me de desejo.
Se me levarem Vénus como vou existir?
- Ana. Acorda linda. Vai correr tudo bem. Contenta-te com o que tens.
Água salgada que limpa o meu rosto. Lágrimas uma seguir as outras. Na garganta um nó! Mãe aparece, dá-me o teu colo que eu hoje sou criança de novo. Faz de conta que me deixo engolir pela onda e tu dizes que sim. Não me puxes para norte mãe, eu quero o sul.
Olha meu corpo cheio de nódoas. Esta é a cor da dor mãe – roxa. Tem um som fundo, quase silencioso. Vem do estômago este grito que ninguém ouve.
Uma bofetada me acorda, Clara assustada, implora:
- Ana... Ana, ACORDA
Na minha face um sorriso mostra que a febre passou. Não sei qual o arquétipo que me ressuscita, sempre que beiro a loucura. Como se nada tivesse acontecido levanto.
No toca-discos Cássia canta:
“Antes de me despedir, o meu pedido final,
Não deixa o samba morrer, não deixa o samba acabar”
Clara pede a carta que escrevi a Cleo.
Lisboa, 15 de Junho de 2005
Querida Cleo,
Um dia ele chegou, abriu a porta e saiu. Eu ainda nem bem tinha começado a saber ajustar minhas omoplatas, adequar a postura correcta, saber inspirar e expirar. Não deu tempo porque a porta se fechava no meu movimento esquecido de respirar.
Na capoeira as galinhas correm para o milho, debicam um a um, gritam desassossegadas, abrem as asas e não voam. Ensurdecedor o ruído das galinhas na capoeira.
Fico pensando que prometi escrever, você está longe do outro lado do mar, lá onde os homens são mais baixos, olhos puxados, hábitos outros. Você está por aí tentando adivinhar se respiro. Confesso que tento, ai como tento fingir que tudo isto aconteceu para meu bem. E assim esotérica vejo na desgraça a luz.
A minha ginecologista diz que tenho quistos no colo do útero porque engoli as palavras e cultivei um jardim de bolinhas sebosas na entrada do meu sexo. Receitou florais de bach, um para o coração, outro para o sono e finalmente, outro para a timidez.. O do coração é para quem sofre de ciúmes e possessividade. Tão bem se ajusta a mim que sempre amei tomando posse do meu amado. O do sono é tão óbvio, serve para dormir! O da timidez para que eu me expresse. Parece que meus quistos assim explodem e dos meus lábios as palavras aparecerão a contar a minha dor.
O meu amor abriu a porta e saiu. Lá na casa dele, só entro se pedir autorização. Na geladeira dele as frutas e legumes fazem a festa. Almofadas cor de laranja, Bilal na parede a contar em quadrinhos, histórias de amor. Os discos – são tantos- ainda moram aqui, assim quando me viro à direita e vejo o passado, dos clássicos ao jazz, do rock ao pop, os meus brasileiros ainda desarrumados. Quando me visita vai à estante e tira um par de discos. Pouco a pouco a nossa história vai ficando sem peças.
Hoje, disse como está feliz. Abriu a porta de nossa casa, fechou e saiu. Lá na casa dele sozinho acorda quando quer. Se tem companhia para dar o bom dia não sei. Sei que na minha cama tomei seu lugar, me viro a direita e vejo o vazio. Por mais que me toque não vem o orgasmo, estou sozinha.
Da rua vejo sua janela, indiscreta adivinho sua rotina. Por vezes telefona-me e vamos ao supermercado. E assim os dois nos encontramos nos corredores das frutas e congelados. Tão grande foi o ultimo super que só lá voltaremos talvez daqui a dois meses. Assim, não sei que pretexto teremos para estarmos juntos de novo. Tão feliz está ele a viver sozinho.
Meu cunhado telefona e diz que temos de facturar, “Tu não estás motivada”. O informático aproveita e diz que seus erros são fruto da minha tristeza.
Fui trabalhar e doente fiquei, tão mal cabia naquele espaço. Prometi escrever, mas só lembro da porta fechando. Você que está aí desse lado do outro lado do mar adivinhando se ainda respiro. Eu te digo que por vezes me sonho no mar, por vezes me vejo na lama. Seja onde for espirro vezes sem conta porque estou alérgica ao ar.
Assim descanse que entre um espirro e outro vou respirando.
Clara devolve a carta. Calada, sempre calada me abraça. Não há o que corrigir nesse texto
Clara chega sempre sorridente. Fala baixo. Ouve só o que quer.
- Então Ana?
Feliz, digo que escrevi, escrevi, escrevi, escrevi! Na estante todos meus desabafos (alguém conhecido assim condenou a minha escrita). Orgulhosa mostro quase 20 páginas A4.
Enquanto acomoda-se no sofá, faço um chá - Flores da Paixão – chá verde com rosas.
Clara avisou-me que ia apontar todos os erros. Aceito como um exercício de humildade.
- Ana, falta a ligação... Não estás a escrever só para ti. Nada é tão óbvio.
- hm
- E depois os diospiros não se descascam!
- Nunca os comi, apenas imaginei.
- Mas está errado amiga. O diospiro abre-se. Chupa-se.
- Deixa-me descacar a fruta Clara. Deixa-me dar dentadas na laranja.
- Eu deixo. Mas está mal. Olha, não te vou largar. Vou ser uma chata. Só vais alterar se achares bem. Mas não te vou poupar.
Hoje, David enviou-me uma mensagem a dizer que eu comesse o fruto como bem quisesse. Quando menos espero apetece-me morder um ananás com casca. Ferir os lábios, sangrar. No meio da dor o suco da fruta a fazer-me feliz.
- Quero mostrar-te a carta que escrevi a Cleo quando Gabriel saiu de casa. Quero expulsar a dor que resta. Importas-te?
- Claro que não.
Ontem, disseram-me que uma energia intrusa tomou conta da mim. Baco, Vénus, Sansão e Dalila moram comigo. Se os expulsar o que vai restar de mim?
Estou tão cansada desta convivência! Por isso, não resisto. Que venha à superfície o que sou.
Como sempre, sigo o meu impulso. Meu Deus que procuro eu? Mostrar que valho a pena? Esta modéstia mentirosa. Vou tirando o disfarce. Dalila não me cortes o cabelo!
A febre volta a tomar conta de mim. Deliro. Quero embebedar-me. Esquecer. Tirar a roupa, perder-me de desejo.
Se me levarem Vénus como vou existir?
- Ana. Acorda linda. Vai correr tudo bem. Contenta-te com o que tens.
Água salgada que limpa o meu rosto. Lágrimas uma seguir as outras. Na garganta um nó! Mãe aparece, dá-me o teu colo que eu hoje sou criança de novo. Faz de conta que me deixo engolir pela onda e tu dizes que sim. Não me puxes para norte mãe, eu quero o sul.
Olha meu corpo cheio de nódoas. Esta é a cor da dor mãe – roxa. Tem um som fundo, quase silencioso. Vem do estômago este grito que ninguém ouve.
Uma bofetada me acorda, Clara assustada, implora:
- Ana... Ana, ACORDA
Na minha face um sorriso mostra que a febre passou. Não sei qual o arquétipo que me ressuscita, sempre que beiro a loucura. Como se nada tivesse acontecido levanto.
No toca-discos Cássia canta:
“Antes de me despedir, o meu pedido final,
Não deixa o samba morrer, não deixa o samba acabar”
Clara pede a carta que escrevi a Cleo.
Lisboa, 15 de Junho de 2005
Querida Cleo,
Um dia ele chegou, abriu a porta e saiu. Eu ainda nem bem tinha começado a saber ajustar minhas omoplatas, adequar a postura correcta, saber inspirar e expirar. Não deu tempo porque a porta se fechava no meu movimento esquecido de respirar.
Na capoeira as galinhas correm para o milho, debicam um a um, gritam desassossegadas, abrem as asas e não voam. Ensurdecedor o ruído das galinhas na capoeira.
Fico pensando que prometi escrever, você está longe do outro lado do mar, lá onde os homens são mais baixos, olhos puxados, hábitos outros. Você está por aí tentando adivinhar se respiro. Confesso que tento, ai como tento fingir que tudo isto aconteceu para meu bem. E assim esotérica vejo na desgraça a luz.
A minha ginecologista diz que tenho quistos no colo do útero porque engoli as palavras e cultivei um jardim de bolinhas sebosas na entrada do meu sexo. Receitou florais de bach, um para o coração, outro para o sono e finalmente, outro para a timidez.. O do coração é para quem sofre de ciúmes e possessividade. Tão bem se ajusta a mim que sempre amei tomando posse do meu amado. O do sono é tão óbvio, serve para dormir! O da timidez para que eu me expresse. Parece que meus quistos assim explodem e dos meus lábios as palavras aparecerão a contar a minha dor.
O meu amor abriu a porta e saiu. Lá na casa dele, só entro se pedir autorização. Na geladeira dele as frutas e legumes fazem a festa. Almofadas cor de laranja, Bilal na parede a contar em quadrinhos, histórias de amor. Os discos – são tantos- ainda moram aqui, assim quando me viro à direita e vejo o passado, dos clássicos ao jazz, do rock ao pop, os meus brasileiros ainda desarrumados. Quando me visita vai à estante e tira um par de discos. Pouco a pouco a nossa história vai ficando sem peças.
Hoje, disse como está feliz. Abriu a porta de nossa casa, fechou e saiu. Lá na casa dele sozinho acorda quando quer. Se tem companhia para dar o bom dia não sei. Sei que na minha cama tomei seu lugar, me viro a direita e vejo o vazio. Por mais que me toque não vem o orgasmo, estou sozinha.
Da rua vejo sua janela, indiscreta adivinho sua rotina. Por vezes telefona-me e vamos ao supermercado. E assim os dois nos encontramos nos corredores das frutas e congelados. Tão grande foi o ultimo super que só lá voltaremos talvez daqui a dois meses. Assim, não sei que pretexto teremos para estarmos juntos de novo. Tão feliz está ele a viver sozinho.
Meu cunhado telefona e diz que temos de facturar, “Tu não estás motivada”. O informático aproveita e diz que seus erros são fruto da minha tristeza.
Fui trabalhar e doente fiquei, tão mal cabia naquele espaço. Prometi escrever, mas só lembro da porta fechando. Você que está aí desse lado do outro lado do mar adivinhando se ainda respiro. Eu te digo que por vezes me sonho no mar, por vezes me vejo na lama. Seja onde for espirro vezes sem conta porque estou alérgica ao ar.
Assim descanse que entre um espirro e outro vou respirando.
Clara devolve a carta. Calada, sempre calada me abraça. Não há o que corrigir nesse texto
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
3 comentários:
gostei
e reconheci às primeiras palavras
aguardei para ler com serenidade
beijo
devias ser meu agente! ou, melhor, devias ser o meu melhor amigo e segredar-me estes elogios todos, que me fazem sempre feliz :-)
tem que haver uma infinidade de gente
que lê e gosta.Tanto ou mais do que eu.
mas sente-se constrangido a expressar
essa sensação.
nós próprios, que escrevemos, também temos pudor em manifestar agrado por aquilo que fazemos.
acho que os ingleses se contemplam muitas vezes com um "I am proud of", falando deles próprios
nós não - tudo o que fazemos é na nossa ótica mesquinho, iníquo, bom para jogar fora.
olha, outro beijinho
Enviar um comentário