O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 6 de abril de 2010

Serpente emplumada

I

A serpente emplumada
vive na caverna
e, no ar plúmbeo,
pulveriza com um silvo
a pulseira de silêncio

E compõe a jarra
num arranjo:
destaca uma pluma de
pavão no conjunto floral

II

Em plena noite cerrada
semi-cerrados os olhos
de serra em serra na sombra

Em plena montanha pétala
passo a passo até aos píncaros
perfeitamente perdida

Em plena nuvem ebúrnea
enrolada subterrânea
sombra a sombra entre címbalos

Em pleno, implementada
na planta dos pés fincados
n’água da cascata cúbica

III

Pertenço a uma espécie rastejante
mas o solo que raso é o mais limpo:
as asas recolhidas no meu dorso
marfilíneo, a marginar um ovo mágico

Pertenço a uma espécie delirante
com lírios nos cabelos de corsário
e livros de leitura muito bíblica
e laivos de lisérgica pesquisa

Pertenço a uma espécie de poeta
emplumada d’impulsos e de pedra

IV

Plumas de papel
escrito dos dois lados
com profundas rasuras
que atravessam os poros

Plumas que semeiam
um jardim de pombos
a florir planctôn
na flotilha dos teus ombros

Plumas perpétuas:
buganvílias
em antigas telefonias
a ecoar bigornas

Plumas, palácios
de causas de carvão
calculadas nos mínimos
pormenores de som

V

Pedra polida na
superfície branca
pela aresta viva
de faca almofadada

Pedra perfeita na
cavidade negra
completamente em
brasa estereofónica

Pedra de pranto, pedra
de precipício cristalino
aonde se amarinha
em caso d‘erro próprio

Ritual análogo / António Barahona; extratextos de Catarina Baleiras.
1.ª edição. Lisboa: Rolim, 1986. pp. 34-38

3 comentários:

Paulo Borges disse...

Belo poema do António Barahona, talhado para este espaço!

Um abraço!

platero disse...

RUI

grato pelo festival de poesia viva. Não entendi de quem: de António Barahona?
Maravilha
delirante/com lírios nos cabelos.
Deliriante?

Venha mais
abraços

platero disse...

Para aumentar a minha confusão:

Edição Rolim -1986. De Loy Rolim?
Abraço a ti, Beijinho a LOY