quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Sobre a espiritualidade de Agostinho da Silva

"Como vimos, a espiritualidade e o ecumenismo agostinianos, paracléticos, cumprem-se não na formulação de uma nova religião, sincrética, que a todas reúna e amalgame, nem mesmo enquanto religião do Espírito Santo, enquanto centro unificador de toda a vida espiritual e religiosa, mas antes numa experiência do Espírito, do divino ou do absoluto – isso que designa como “metanóia” ou “samadhi” - , acessível por muitas vias, religiosas ou não, sendo assim compatível com a existência dessa pluralidade diferenciada de caminhos que só será em definitivo transcendida quando todos os homens e seres comungarem a mesma experiência, inaugurando a trans-histórica era do Espírito Santo ou “os tempos de ser Deus” visionária e profeticamente anunciados. Todavia, para aqueles que desde já antecipam essa pneumofania, para aqueles que acedem a essa experiência plena ou pelo menos ao seu vislumbre, e a partir daí consideram a pluralidade diferenciada das religiões e vias, esta torna-se extremamente relativa ou mesmo evanescente, como para o centro vazio da roda que pudesse observar os múltiplos raios que dele partem e nele convergem (conhecida imagem taoísta, usada por Agostinho) ou para o viajante que, havendo chegado ao cume da montanha, pudesse contemplar, a toda a volta, as múltiplas veredas que lá igualmente conduzem. É nesse sentido que nos parece que Agostinho da Silva confessa que, apesar de usar predominantemente a linguagem da via religiosa que começa por praticar, e na medida em que aprofunda essa prática, já não se limita a ser um praticante dessa religião, no caso o catolicismo cristão, sem que o passe a ser de outra. Aliás, optando pelo “Nada que é Tudo” como melhor expressão do divino e do absoluto, mostra encontrar nele a possibilidade de conciliar todas as formas, nomes e imagens divinas com a sua total ausência, negação ou superação. Como diz, em dois aforismos significativamente sucessivos de um texto ainda inédito: “Não sou inglês por falar inglês. Não passo a ser católico se uso a linguagem católica”; “Aviso aos que não concebem que sob o Deus católico possa haver o nada dos budistas” .
Todavia, se a experiência de Deus, do Espírito ou do absoluto é uma transcendência de todas as vias, religiosas ou não, ela converte-se, ao mesmo tempo, e por isso mesmo, no sentimento da sua plena e total integração e cumprimento, sem qualquer contradição, como não há contradição em considerar os raios da roda inseparáveis do seu centro vazio ou o cume da montanha inseparável de todos e cada um dos caminhos que de lá partem e lá conduzem. Daí, ainda sem contradição, outra afirmação: “Claro que sou cristão; e outras coisas, por exemplo budista, o que é, para tantos, ser ateísta; ou, outro exemplo, pagão. O que, tudo junto, dá português, na sua plena forma brasileira”.
- Paulo Borges, Tempos de Ser Deus. A espiritualidade ecuménica de Agostinho da Silva, Lisboa, Âncora Editora, 2006, pp.189-192.

Saber Amar

"Vocês são todos meus Mestres." Ah vã glória a das almas supostamente humildes, a de ter muitos Mestres!

Nós nunca aprendemos nada. Não passamos de pedaços de chão seco e quebradiço, arrastados ao acaso pelo vento, e ao chão haveremos de voltar.

No entanto, há uma lição que vale a pena tentar aprender:

A de amar os vermes que um dia nos hão de devorar, a nós todos, a tudo e ao próprio lobo Fenris, depois de se ter empanturrado de todos os Deuses.

A de amar também o esquecimento que, mais cedo do que desejamos, há de devorar as nossas obras e toda a memória da nossa própria existência.

A palavra (I)

A palavra é a sinapse do mundo.
Criva os interstícios do tempo
onde acede às confluências do desejo.
Porque ela é violenta suspensão,
situa-se na iminência do incriado.

ARMISTÍCIO

"Propões-te a finalidade ecuménica da paz universal? Foste preso por isso? É bem feito. Não és melhor que o teu carcereiro, visto que como ele te fazes desentendido na questão decisiva: como atingir a paz com os olhos postos num só deus, se as guerras são fornecidas pela nossa fé na vitória sobre a serpente da fé dos outros? A única coisa que podes fazer pela paz é não desfraldares a insígnia da tua crença num só deus. Porque os homens só serão unidos quando acreditarem em todos os deuses. Assim subirão ao píncaro espiritual de onde se abrange todo o universo. A humanidade que se coroa a si mesma. O Pentecostes.” (Natália Correia, O Armistício )


Quando se afirma a falsidade de algum deus, pode dar em guerra...

"Tal é o mistério do Espírito Santo, que nos abandona quando molestamos uma das suas células.”(Natália Correia, ibidem)

Realidade vs. Ilusão

É impossível que a realidade seja uma ilusão. Seria o mesmo do que um quadrado ser redondo, porque real é o contrário de ilusório.

É possível, no entanto, que aquilo a que chamamos e pensamos que é a realidade, não o seja e, ao invés, uma ilusão.

Recordo aqui um Upanixade - não me recordo do nome do mesmo -, em que é dito o seguinte: Samsara, a transmigração da vida, ocorre na nossa própria mente.

Viveremos uma ilusão insubstancial gerada por uma mente?

Existir e não existir, ver sem ver, agir sem agir

O mundo é só o poema
em que Deus se transformou
Ele existe e não existe
tal a pessoa que sou

- Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p.81.

Oxalá por saber tanto
me apeteça ficar mudo
só então vendo sem ver
aquele nada que é tudo

- Ibid., p.88.

Tudo o que faço no mundo
sem eu o fazer é feito
baila a vida em liberdade
sobre o nada em que me deito

- Ibid., p.141.

Realidade?

A exiguidade de nossos olhos
É nem tudo poderem abarcar,
Por isso fulminam a totalidade,
Para a poderem abocanhar.

Se baixares os braços...

os elementos não te dissolvem, porque nunca exististe...

Se tudo é ilusão ...

... se nada alguma vez exisitiu, e se o próprio sofrimento, amor e compaixão são ilusórios, será que vale a pena fazermos alguma coisa, o que quer que seja, para tentar deixar o mundo um pouco melhor do que quando cá chegámos? Será que vale a pena fazer alguma coisa, ponto final? Fazer com que este planeta dure um pouco mais de tempo e que a agonia dos seres seja menos dolorosa?

Será que vale a pena sequer dançar?

Se o próprio amor e compaixão são "chuchas com menos teor de açucar", não seria muito mais inteligente baixar os braços, sentramo-nos em posição de lotus ou noutra posição qualquer e deixar que os elementos nos dissolvam?

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Cadavre Exquis II

Em solução de anil e aventura (Tamborim)

Aos Amantes de Lisboa




Fui ao cimo da Avenida para fazer este trajecto
“Avenida da Liberdade, Restauradores, Rossio, Rua Augusta, Terreiro do Paço, Tejo, Infinito !...." (em cumplicidade com o anónimo "da Liberdade")
AM
OR
, disse-me a estátua, e de imediato lhe brilhei,
e pus-me a passo a fazer a Liberdade e a contar os números,
pares e ímpares, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9,
e 0 nos Restauradores.

E eis que o grande Momento, que me é o Centro, acontece(u) no Rossio,
LO
VE
e as Virtudes a derramarem-se insubstanciais
Ai Meu Deus que eu fico(me) já Aqui.
O Rossio é como uma bala imortal que me atinge,
um Raio que me desincorpora,
e depois prossigo com Vida de sobra e Paisagem.
E Luz. Orvalho e Silêncio Absoluto.
Mas eu continuei caminho, entrei na Augusta,
e mal o Terreiro avistei já o Tejo me transpunha para o Além,
o Além Terra, desta Lisboa d’eternas eras.

Foi você que pediu... ?: II - Brasília, sob um viaduto





O Rappa- Minha Alma


A minha alma
Tá armada e apontada
Para cara do sossego
Sêgo! Sêgo! Sêgo! Sêgo!
Pois paz sem voz
Paz sem voz
Não é paz é medo
Medo! Medo! Medo! Medo!...
Ás vezes eu falo com a vida
Ás vezes é ela quem diz:
"Qual a paz
Que eu não quero conservar
Prá tentar ser feliz?"...(2x)
A minha alma
Tá armada e apontada
Para cara do sossego
Pois paz sem voz
Paz sem voz
Não é paz é medo
Medo! Medo!...
As vezes eu falo com a vida
As vezes é ela quem diz:
"Qual a paz
Que eu não quero conservar
Prá tentar ser feliz?"...(2x)
As grades do condomínio
São prá trazer proteção
Mas também trazem a dúvida
Se é você que tá nessa
Prisão...
Me abrace e me dê um beijo
Faça um filho comigo
Mas não me deixe sentar
Na poltrona no dia
De domingo (Domingo!)...
Procurando novas drogas
De aluguel
Neste vídeo coagido
É pela paz
Que eu não quero seguir
Admitido...
Ás vezes eu falo com a vida
Ás vezes é ela quem diz:
"Qual a paz
Que eu não quero conservar
Prá tentar ser feliz?"...(2x)
As grades do condomínio
São prá trazer proteção(Ção! Ção!)
Mas também trazem a dúvida
Se é você que tá nessa
Prisão...
Me abrace e me dê um beijo(Beijo!)
Faça um filho comigo
Mas não me deixe sentar
Na poltrona no dia
De domingo (Domingo!)...
Procurando novas drogas
De aluguel
Neste vídeo coagido
É pela paz
Que eu não quero seguir
Admitido...(2x)
Me abrace e me dê um beijo
Faça um filho comigo
Mas não me deixe sentar
Na poltrona no dia
De domingo (Domingo!)...
Procurando novas drogas
De aluguel
Neste vídeo coagido
É pela paz
Que eu não quero seguir
Admitido...(2x)
É pela paz
Que eu não quero seguir
É pela paz
Que eu não quero seguir
É pela paz
Que eu não quero seguir
Admitido...(2x)

A Palavra e a Existência

A Palavra e a Existência

Vivemos (n)uma Existência codificada,
a Palavra sonha uma Visão comum, esclarecida,
um Entendimento.
Mas o que há é um Encontro de consciências,
Encontro de luzes e olhares, transparências
que revelam, tal como a chama da vela,
as sombras do que quisermos chamar Realidade.

A sombra é o código.
A percepção da sombra é a mensagem.
A interpretação é o Abraço sentido dos que se Encontram. Ao usar da Palavra.

Cadavre Exquis

Mergulho no infinito (Nuno Maltez)

um texto a fazer

...Na lâmina do horizonte durmo com a minha carne e no sonho solto bramidos como os outros animais e sempre vejo o sol poente e também o sol que surge de dia nos meus olhos e na noite nos meus sonhos iluminando a alma que divido com os seres e com todo ser que nao tém nome mesmo quando devoro a carne dos outros como a aguia a carne da serpente. quem é ele, quem sou eu e quem es tu? todo nome é uma imagem e nem uma imagem revela tudo, sou mudo e grito na lâmina do horizonte que corta o meu saber mediocre e inconsistente, flutuo na terra no mar e no céu e nas veias dos bichos e plantas mas nao nas veias de deus, pois deus flutua em me...

Um breve texto sobre esta vida, a libertação, o karma e a eternidade da consciência universal

Esta minha existência mundana é uma chama que se há-de extinguir. A consciência, porém, esse lugar negro onde todos os seres se reúnem no sono infinito de tudo, sobreviverá, incriada e indestrutível, e - quem sabe se - criará novas construções. Tudo depende, penso, do karma com que morrer. A meu ver, se morrer com desejos, medos, ansiedades... apegos, criará novas construções; caso contrário, não. Será mau viver uma nova vida? Não necessariamente. Podemos colocar a pergunta de outro modo: preferia não ter vivido esta vida que vivo? Respondo: não; venha o que vier, já valeu a pena.

Um texto acerca do que nos separa, do que nos une e da necessidade da pré-existência de algo incausado para a existência de algo

Por vezes, não queriam ser outros?

Unidos pela mesma origem e natureza semelhante, separa-nos o abismo da infinita diferença, irreconciliáveis histórias de vida, vivências.

Esse abismo é um limite, para lá do qual se cai, uma falésia, diante da qual a outra se encontra, o outro.

Esse limite é também um limiar, o lugar onde ou a partir do qual (necessariamente) cada um de nós se dá a conhecer ao outro e, mais, o lugar que cada um de nós habita, porquanto julgamos saber, neste cosmos imenso.

As histórias de vida, dos humanos, são feitas, todas elas, de semelhanças formais, porque temos, formalmente, as mesmas consciências; mas não podemos entrar nas outras mentes e julgamo-nos únicos - e somos (tenho em crer)! Não é belo?

Por mais cruel que a natureza seja - e é - penso que a minha vida já valeu a pena por causa dos belos e sublimes momentos que até hoje vivi: as alegrias, as tristezas, frustrações e contrariedades - tudo isso, findo o sofrimento, é belo...

Este é mais um espaço onde me dou a conhecer e aos meus interesses, (cada vez mais) reconhecendo-me em mim e contando a história que todos contam a partir de mim: sim, por infinitamente diferentes que sejam as histórias de vida, todas partilham a universalidade do sorriso, da lágrima, da ejaculação (é o inesperado que surge de rompante e gera espanto - e alegrias imensas?).

Aprendermos a reconhecermo-nos é tornarmo-nos maneiristas, contarmos a história - ficção? - que todos contam, à nossa maneira. Pois é essa a história que conto, com ínfimos e infinitos pormenores que só eu poderei ter vivido, mas que todos contam, pois por que haveria de pressupor que só eu vivi as estranhas entranhas das alegrias que vivi?

O que nos separa? Eu não posso ser tu e tu não podes ser eu. Não podemos, verdadeiramente, colocar-nos sob a pele do outro. Mais uma vez, é trabalho para a imaginação, provavelmente com uma pitada de sentimento à mistura (e o eu cozinha).

"O eu cozinha" - isso não existe, como não existe o tu. Mas tenho a clara sensação de que existo, embora pense que provenho da não existência, esta minha mundaneidade, nunca obstando ao facto lógico de algo ter de pré-existir para que algo venha a existir. E isso leva-nos a uma regressão ao infinito. Precisamos de um pré-existente incausado, de um Tao, o único modelo de si próprio, aquilo que com nome se torna a Mãe de todos os seres.

Falta-nos o argumento perfeito.

Fidelity - Uma homenagem a Marguerite Porete




Quem sabe se a Regina Spektor não será uma reencarnação da Marguerite Porete?

Não consegui ler o livro de Porete, O Livro das Almas Simples que são Aniquiladas e Permanecem Apenas no Desejo e Vontade de Amar porque não o encontrei (alguém tem que possa emprestar?). Mas li o comentário do Paulo que está aqui e mais umas coisas, e gostei tanto que achei por bem fazer uma comparação com esta cantora que me apaixona, a Regina!

As músicas da Regina em geral exprimem uma grande liberdade, o puro prazer de cantar! Nesta, por exemplo, ela começa por dizer que "nunca amou ninguém inteiramente", pois tinha sempre "um pé no chão", e no entanto a música invadiu-a, inundou-a, até "lhe partir o coração".

Esta coisa de partir o coração tem muito que se lhe diga... Afinal o que é o coração senão a energia, as energias que vêm dos quatro cantos e mais alguns, mas que se articulam num todo mais ou menos harmonioso, com um fim específico? Se bem que o Coração permita a sobrevivência do ser como individualidade, como caminho, como projecto, não deixa de ser verdade que essa canalização de energias as leva a mostrarem-se sempre de uma certa maneira, a serem aproveitadas sempre para um certo fim. Não são elas por elas, são elas em virtude de dar jeito aparecerem assim ou assado ao coração, ao caminho. Se eu sou alegre tentarei sempre recusar as energias tristes ou transmutá-las em alegria, se sou triste tentarei transmutar a alegria em tristeza e por aí diante.

Mas, quando a música "breaks my heart", quando a inefável energia é tanta, tão hiperabundante que me parte o coração, então a vida deixa de ser a preto e branco. Não quero estar triste, nem contente. Quero estar, como estiver, como me der na telha, deixar fluir. Da mesma maneira, "o outro" deixa de ser um mero instrumento para o meu caminho. Quando acaba o coração, a sua cara aparece, verdadeira, transparente, indizível... pois as energias (em forma material ou não) passam a ser apenas o que são.

E o coração parte-se, em milhares de cores, em míriades de sabores, em biliões de contemplações, sem entrada, sem saída... "and it breaks my heart!!"

And it Breaks my Heart!!
^_^

(deixemos cair o coração!!)


Alambique



No Alambique

No Azul sem fim
De uma nave a flutuar
Ouço uma voz a chamar (será por mim?)

No Alambique eu vou entrar
Pelo Fogo vou Subir
(pareço a navegar na ilusão do limite,
mas logo a Lua e o Sol me dizem:
Vem
para fora de ti, mas não saias d’Aqui)

e o Alambique sinto oscilar
em partículas de Amor me sinto no Ar
para logo me destilar
e voltar a mim, Aqui,
que do Azul nunca saí, afinal,
re-voltada a cauda mordi porque do Mal não sou
nem o Bem me assomou, sou Una

sou cinza, fénix de novo
mas sem igual,
sou Amor, da violeta Soror
e flutuo no Alambique...
(não estou lá,
porque Lá não existe. Apenas Aqui,
Luz e Sombra a ouvir ecos de Nietszche:
Transforma-te em quem tu és...)

Onde estão elas?



Azedas: oxalis acetosa. Flor amarela, esguia. Planta hortense, da família das oxalidáceas. Azedas brotam do teu umbigo. Chupo-lhes os caules tenros. O seu perfume e a sua acidez turvam-me os sentidos. Creio que rosmaninho azul Rosmarinus officinalis começa a crescer no meu umbigo.

Tratado de Botânica

Sobre os "Animais Iluminados"

Queridos amigos Luar Azul e outros, com toda a amizade, mas em nome do mais elementar bom senso, não posso em absoluto estar de acordo com o que dizem sobre os "animais iluminados". Claro que concordo com tudo o que dizem sobre a igualdade de todas as espécies perante a natureza fundamental que lhes é comum e, se quisermos chamar Buda a essa natureza, como é o meu caso, é verdade que todos os seres e todos os fenómenos são Buda. Agora - e falo na qualidade de um reles caminhante budista, que tenta estudar os textos de uma tradição com 2600 anos - o Buda histórico e todos os Budas vivos são unânimes em declarar que, de todos os seres possíveis, só os homens e, nalguns casos, certos deuses (com mais dificuldade), podem reconhecer, fruir e manifestar plenamente essa natureza de Buda, para o bem de todos os seres. Claro que o que importa não é dizer que é assim, porque o Buda o disse, o que seria cair no dogmatismo que ele próprio denunciou. Mas o que acontece é que para mim essa declaração é conforme à mais elementar e evidente observação da realidade. Olhemos para a vida animal à nossa volta ou para aqueles belíssimos e terríveis documentários televisivos sobre ela... Aí temos a "comunhão" profunda de que fala o Luar Azul: o albatroz a devorar o peixe, o gato a abocanhar o pássaro ou a matar o rato com requintes de brincadeira cruel, o leão a lançar garras e presas à garganta da zebra, a águia a agarrar o coelho e a arrancar-lhe os olhos e as vísceras à bicada adunca... Porquê ? Porque vêem neles o Buda e são o Buda, claro... Que maravilha de instinto, amor e visão iluminados ! E as suas vítimas, que mística volúpia devem sentir ao verem-se devoradas vivas por Budas vivos ! Sim, pois aqueles esgares de terror e angústia, aquelas convulsões dos corpos a contorcerem-se, são meras ilusões de óptica da nossa percepção humana, demasiado humana, do nosso antropocentrismo... Eles na verdade estão é a gozar imenso ! E nós, humanos, devemos então prosternar-nos diante desses "animais iluminados" e implorar-lhes que nos ensinem como chegar a esse estado de profunda comunhão amorosa, espiritual e mística... Sim, porque procurar exemplos e ensinamentos em Buda, Cristo, Ghandi, Madre Teresa, Dalai Lama, se temos ao nosso dispor o nosso cão ou gato e, lá fora, toda a fauna dos nossos irmãos predadores na sua actividade devoradora, digo, comungadora, uns dos outros !?...
Bom, não havendo iluminação, haja pelo menos bom senso !... Claro que os homens fazem o mesmo e muitíssimo pior. Mas têm pelo menos a possibilidade de o não fazer e constata-se que alguns, embora infelizmente raros, renunciam a toda a dualidade, a todo o egoísmo e instinto agressivo e dominador, e vivem apenas para o bem de todos os seres... Os sábios e santos, em todas as religiões ou fora delas... Esses manifestam plenamente a insuperável singularidade do homem: ser o único ser que tem a potencialidade de abdicar plenamente do amor-próprio, dos condicionamentos da sua espécie e colocar-se ao serviço do bem universal, transcendendo todo o especismo e todas as formas de ser. Nessa perspectiva, pode falar-se da "superioridade" do sábio e do santo, a qual reside precisamente em não se sentir superior e antes o mais humilde servidor de todos os seres... Como na cultura portuguesa o viram Antero de Quental, Sampaio Bruno, Pascoaes, Agostinho da Silva... Na mesma perspectiva, deve falar-se da inferioridade do homem gregário e comum, que, podendo tornar-se sábio e santo e colocar-se ao serviço da libertação universal, nada faz para tal e antes se converte no mais feroz predador de si e dos outros, humanos e não humanos... Esse vive, em termos éticos e de consciência, e por mais que a sua natureza seja a de Buda, abaixo ainda do animal...
Quanto ao Buda, segundo a tradição budista, não é propriamente um "ser" nem vê nada como um "ser", pois transcendeu esse conceito. Quando vê tudo como Buda, experimenta a "vacuidade" (shunyata) e portanto nada vê como Buda (nem a si próprio), já não vê seres, como é claro no "Sutra do Diamante". O que não exclui, todavia, que Budas e Bodhisattvas amem todos os seres ilusórios e se possam efectivamente manifestar como animais, homens ou outros seres aparentes, para ajudar animais, homens e os demais seres. Mas estamos a falar então de emanações como animais ("tulkus", em tibetano, ou corpos ilusórios), que não são propriamente animais, com todo o seu cego instinto de sobrevivência, vivendo no sofrimento constante de ter de devorar e de fugir de ser devorados.
Por outro lado, creio que, ao falar da vida animal e de "animais iluminados", convém ter em conta não apenas os animais domésticos e fofinhos (embora baste olhar para esses, com outra perspectiva que não a da gratificação dos nossos sentidos e da satisfação das nossas carências afectivas), mas também todos os outros, de que geralmente temos tanta repulsa: lombrigas, lêndeas, osgas, lesmas, baratas, aranhas, melgas, pulgas, piolhos, ratazanas, serpentes, hienas, George Bush, Bin Laden, etc... E amá-los igualmente a todos, ou seja, tratá-los bem, ver neles o Buda ou o divino, mas ao mesmo tempo oferecer a nossa prática espiritual para que de uma vez por todas se libertem deste absurdo e terrível circo de ilusão e dor que é o círculo vicioso da vida, da morte e da transmigração, movido pela mente dualista, pelo apego e pela aversão. Sem isso, ficamos numa alternativa falsa e ridícula ao antropocentrismo e nos idílios ilusórios das visões cor-de-rosa da existência tão próprios deste novo obscurantismo chamado "New Age" que, em nome do "tudo está bem", somos todos Buda, Deus, etc., nos distrai desta preciosa e rara oportunidade de libertação que é uma existência humana, enquanto a doença, a velhice e a morte a passos largos se aproximam e a cada momento podem surgir...

Lamento estar em tão profundo desacordo convosco, caros Amigos, e espero que a vossa amizade resista à minha sinceridade, mas seja como for dêem-me o desconto pois mais não sou do que um obscuro animal não iluminado...

Animais iluminados

Na sua curta estadia neste pequeno planeta, perdido na vastidão do espaço cósmico, o homem descobriu-se como pináculo de toda a Criação!! Quem o afirma? Ele próprio claro!

Assim diz que só ele pode construir telemóveis, esquece-se que não sabe construir formigueiros. Também diz que só ele pode sorrir, é cego para os pardais que brincam diariamente com as correntes de vento e as superam alegremente. Diz que é o único que acasala por amor e não por instinto, esquece os Albatrozes, esses magníficos voadores de ginga que são fiéis para a vida, uito mais que a maior parte dos homens e mulheres. Mas pronto, a verdade é que os homens pouco ou nada sabem sobre a vida vivida, dia a dia, dos animais. Fica-lhes bem, no seu pináculo, ignorarem esses seres menores.

Aqui há tempos um "comentário" ao texto "Buda" da Ana dizia assim:

"Poderia algum rato ou pássaro, por exemplo, sentir num gato um Buda ?"

Ora Bolas!! Quer dizer, a iluminação, que nem sequer é Amor, que nem sequer é pensamento, que exige aos monges Zen anos de silêncio mental, agora não pode ser atingida por animais que, teriam no mínimo mais facilidade que nós! Então ao menos não têm símbolos para os confundir. Uma árvore é uma árvore e a montanha é a montanha! Simplesmente! Porque não haveria um rato de ver num gato o Buda? Como podemos saber que isso é impossível?! Se nós transcendemos o instinto que estranheza seria que outros animais o fizessem também? Não serão os animais "domesticados" a prova óbvia de que o instinto é apenas um dos elementos que rege a sua acção?

Vou ser-vos muito sincero, a mim parece-me que este planeta não teria existido por seiscentos milhões de anos exuberante de vida, com todas as incontáveis histórias que por ele já passaram de seres sentientes sem que muitos Budas, sob a forma de animais, tenham vindo a existir. É claro que não o posso provar, mas também ninguém pode provar que algum Buda alguma vez tenha existido, aliás duvido até que alguém saiba com precisão explicar o que é um Buda, ou o que é preciso para ser Buda.

Vamos pensar por momentos que ser Buda é ver em todos e tudo um Buda, isto é, emanação perfeita do Divino, estando em plena comunhão com tudo! Ser Buda não é ser visto como Buda. Até o Santana Lopes pode ser visto como um buda, não significa que o seja de facto!

Ora porque é que um Albatroz, um Gato, um Leão, uma Águia, não poderiam atingir essa comunhão com tudo? Por falta de linguagem? Por falta de Amor? Pela influência do instinto?

Mas para que seria necessária a linguagem quando procuramos a comunhão?
E quem somos nós para falar de falta de amor, nós que fazemos guerras e comemos desnecessariamente tantos animais, criando-os como objectos descartáveis, é preciso dizer mais? Se na espécie humana o indivíduo consegue separar-se tanto do que é típico, porque não noutras espécies?
E em relação ao instinto não estaria um Buda ainda mais conectado com o seu instinto, assim como com tudo? Não estaria ainda mais presente nele do que em qualquer homem, ele para quem nem a gota de água poderia esconder por muito tempo o seu segredo?

A mim parece-me que é a arrogância do humano que quer desesperadamente achar-se especial.

Nós somos especiais, como a estrela Alcyone é especial, somos únicos, não precisamos de retirar a beleza a nada nem a ninguém, pedra, árvore, animal, planta ou buraco negro para nos afirmarmos no esplendor do nosso sorriso!

E além do mais, se eu disser que o meu gato é um Buda, quem me virá dizer o contrário? E desses quem me convencerá?

Ah!!!!

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Abracei o diabo


Vieste com os teus olhos escuros

E cabelos longos

Tinhas um cheiro intenso e forte

E tentador


Vieste dizer-me

que estiveste sempre presente


Disseste

Que abrias a porta da morte e da vida

Que vivias entrelaçado nos meus sonhos

Que eras

O fogo que me alimentava

A pele que me tocava e arrepiava

O terreno palpitante de húmus

Em que me deitava


Disseste que eras o hálito

Que me respirava


E eu aceitei-te

O outro

"Ele sempre achou que cada vez que ela ia passear o seu cão, não pelo tempo normal, mas por mais curto tempo, que isso se devia à sua vontade de estar com ele… mas, cada pessoa é um mundo e, no fundo, ela fazia-o mais depressa porque era sempre já tarde e, ela preferia passear-se por mais curtas distâncias com medo do que lhe podia acontecer.
Afinal... era apenas ela, e o seu cão já velho".

:-)

Goa Trance

O Goa Trance é um movimento espiritual psicadélico que surgiu e se desenvolveu em Goa ao longo dos anos 60/70, mas já bastante difundido pelo mundo, cujo centro são festas de dança ao som de um tipo de música resultante da fusão da música electrónica ocidental com ritmos, melodias e sons tribais e orientais. Goa Gil é o grande Dj guru deste movimento, um americano de 48 anos que, em busca de espiritualidade, partiu para a Índia para praticar yoga e meditação.

"Quando actuo, [diz-nos o Goa Gil] toda a música e a comunhão que dela deriva deve elevar-se ao espírito cósmico. A musa divina deve descer à festa e abençoar-nos a todos. Isto foi o que os antigos xamãs e os demais grupos tribais de todo o mundo fizeram em tempos remotos. Eu limito-me a actualizá-lo."

"Goa Gil é considerado o buda dos ambientes lisérgicos e das viagens pelos confins químicos da mente e do espírito, capaz de transformar as festas onde actua em verdadeiros rituais cerimoniais a que ninguém é indiferente. Ou, tomando à letra o slogan mais conhecido, redefinindo o ritual tribal da dança para o século XXI".

www.supergoa.com

Até onde vai o poder da imaginação?

Procurei sem procurar e deparei-me com um deus adormecido.

Não era outro que não eu!, imortal consciência que, eternamente, repousava para mim própria e vivia a história de um outro, criado, que não eu, este que chora e ri, no mundo.

Acredito piamente que tudo ocorre dentro de uma consciência; nesse sentido, sou completamente idealista, se me quiser chamar nomes. Como ocorre, ainda não tenho a certeza mas, provavelmente, pelo poder da imaginação.

Um dia, há pouco tempo, enquanto estudava na faculdade, disse a um colega que era possível que as nossas imaginações fossem mundos. Ele tentou refutar-me, dizendo que esses mundos são incomunicantes de imaginador para imaginador. Penso que a ideia é irrefutável.

Agora, ocorre-me, esta ideia vai muito de encontro ao que Giordano Bruno, a um nível não imaginário, afirmou; que existiam infinitos mundos, seres e modos.

Certo é que continuo a perguntar-me, não o que há (ok, por vezes...), mas como é possível que haja. Um acto puro da imaginação?

Não há caminho maior

Só para os cegos há busca. Para quem vê, tudo é encontro. Só para os cegos há caminho. Para quem vê, tudo é já haver chegado. Só para os cegos há quem vê.

Não há caminho maior do que não haver caminho, para quem há caminho. Porque, para quem não há caminho, não há caminho maior do que o haver.

Não há sofrimento nem felicidade. Há experiências. Uma delas é a de imaginar haver delas um sujeito. Outra a de imaginar que são boas e más.

A subjectividade é um deserto na virginal exuberância do real que a esta tem por deserto e a si como oásis.

É impossível existir. Por mais que se tente. O constante fracasso dessa tentativa é a nossa eterna libertação.

A fruição de nada acontecer. O fascínio de habitar os espaços vazios da vida. A esmagadora e insípida intensidade do nada.




da Liberdade


Por uma avenida assim
- com passagem para o Infinito
sinais de Luz
sentidos para a Ubiquidade,
ordenados e alinhados pela Verdade-

arriscar os passos e o ritmo
abrir o peito
desarreigar da corola as pétalas equívocas
expungir da alma os isolamentos
dessedentar os olhos com lágrimas
e aquecer-me da final nudez

estar no fio da navalha
como se numa branda nuvem, descalça
e escutar o Destino desferir em mim
o caminho a transcender

Por uma avenida assim
caminhar, e Ser com ela
ao meio dia como em plenas trevas
ao dealbar como no ocaso.

Línguas de Fogo



sem compreender
sem nada apreender
de par em par
estrelas e luas em desalinho
vento
alado nas árvores de madrugada
presságio no uivar dos cães ao longe
e água
límpida
fresca
bebida no reverso das sedes
assim viver
ser aventurado
todo o universo
sem mais

Resposta

Manuelinho balofo,
queres fazer pendant comigo?
fazer das rimas desporto?
Anda cá qu'eu já te digo
Damos um tiro no morto

Casamos pela igreja
eu de anel já no dedo
tu com filhos da outra
vai ser de meter muito medo

E depois dançar o tango
num copo d'água finado
em que tu e os empregados
atiram bostas ao alvo
com patrocínio da tanga

Manuelinho magano,
estou já grávida de esperanças
rapta-me num cavalo branco
e vê lá se não balanças.
[ou "pra fazermos muitas crianças", o leitor decide]

Penso, logo faleço

"Quanto mais vida puseste nos pensamentos, mais morte há em ti"
- Emil Cioran, Le Livre des Leurres [1936], in Oeuvres, Paris, Gallimard, 1995, p.256.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Foi você que pediu... ?: I - Heroin (Lou Reed)

(Ao Manuelinho)

I dont know just where Im going
But Im gonna try for the kingdom, if I can
cause it makes me feel like Im a man
When I put a spike into my vein
And Ill tell ya, things arent quite the same
When Im rushing on my run
And I feel just like jesus son
And I guess that I just dont know
And I guess that I just dont know

I have made the big decision
Im gonna try to nullify my life
cause when the blood begins to flow
When it shoots up the droppers neck
When Im closing in on death
And you cant help me not, you guys
And all you sweet girls with all your sweet silly talk
You can all go take a walk
And I guess that I just dont know
And I guess that I just dont know

I wish that I was born a thousand years ago
I wish that Id sail the darkened seas
On a great big clipper ship
Going from this land here to that
In a sailors suit and cap
Away from the big city
Where a man can not be free
Of all of the evils of this town
And of himself, and those around
Oh, and I guess that I just dont know
Oh, and I guess that I just dont know

Heroin, be the death of me
Heroin, its my wife and its my life
Because a mainer to my vein
Leads to a center in my head
And then Im better off and dead
Because when the smack begins to flow
I really dont care anymore
About all the jim-jims in this town
And all the politicians makin crazy sounds
And everybody puttin everybody else down
And all the dead bodies piled up in mounds
cause when the smack begins to flow
Then I really dont care anymore
Ah, when the heroin is in my blood
And that blood is in my head
Then thank God that Im as good as dead
Then thank your God that Im not aware
And thank God that I just dont care
And I guess I just dont know
And I guess I just dont know

Errático

Toda a arte é um clamor
Como tudo me impele ao brilho límpido
Do teu olho-armazém, matagal, labiríntico
Toda a arte entra
Por tudo quanto é:

poros
palavras
olhos
prosápia
lábios
rosas
pele
prosas
sal
sexo
músculo
fístula
no peito
na mente
efeito
transformação

Toda a arte é início
Toda a arte é re-ilusão da dor
Toda a arte é reinvenção do amor
A arte inteira, o feio no belo
O elo esfíngico das contradições
Revolução secular dos paradoxos
Toda a arte é macia como a pétala
E dura como ossos
Toda a arte é pele
Toda a arte é foco
Toda a arte é por
Toda a arte é contra
Toda a arte é cor
E no submundo molecular dos seus constituintes
Corre um rio de som

Toda a arte é grito
É rito, é mito, é nicho
Tudo se encena no palco dos aflitos
Tudo se páre como a filhos
Tudo se engole e vomita
E instila e instiga e incita
O mundo em questão
Emudece a questão
Amordaça a questão
Estremece a questão apopléctica
Arrazoares órfãos, profanos
Perdão,
Arrazoares tão tamanhos
Quanto o coração

A arte é um desmancho
A arte é um desmando
A arte é a Demanda
Toda a arte é um pedido
De tudo
Toda a arte é um infindo
Domingo
Caleidoscópio fugaz
Constelação sempiterna
(E o que é mágico, voraz
É que pode nascer)
Da ponta dos meus dedos
Dos meus pobres, torpes zelos
Frementes, suados numa caneta
Na língua quente
A lançar versos-sons
Na voz
Na tez
Da actriz em flagrante delírio
Na fuga
Ao vício
Do dia atrás do dia
Só por ser
Dia atrás do dia
Na fuga ao isco
Da existência casca
Da existência superfície
Da existência gasta
Toda a arte é impureza
Toda a arte é impoluta
Toda a arte sangra antes do tempo
E é, inclusivamente, tempo
E toda, mas toda
A sua ausência
Toda a arte degenera
Toda a arte desgasta
Toda a arte refaz
A arte inteira rodeia
A arte inteira meneia e geme
Toda a arte é filha da casta
Toda a arte é alto mar e
Leme

Enlouquecer alegremente, transfigurar o universo e morrer de luz

Preparava-me para publicar algo do que de mais devastador e incómodo este grande iconoclasta às nossas mentes mimadas dirigiu e eis que me deparo com esta passagem redentora, sem lhe poder resistir... Compaixão ou fraqueza ?...

“Gostaria de perder a razão com uma única condição: ter a certeza de me tornar um louco alegre e jovial, sem problemas nem obsessões, folgazão de manhã à noite. Se bem que deseje ardentemente êxtases luminosos, não os quereria no entanto, pois são sempre seguidos de depressões. Quereria, em contrapartida, que um banho de luz de mim brotasse para transfigurar o universo – um banho que, longe da tensão do êxtase, conservaria a calma de uma eternidade luminosa. Teria a ligeireza da graça e o calor de um sorriso. Quereria que o mundo inteiro flutuasse neste sonho de claridade, neste encanto de transparência e de imaterialidade. Que não houvesse mais obstáculo nem matéria, forma ou confins. E que, neste paraíso, eu morresse de luz”
- Emil Cioran (1911-1995), Sur les Cimes du Désespoir, in Oeuvres, Paris, Gallimard, 1995, p.31.

O grande sono

O que há? Um grande sono. É Brahman; ou será Vixnu que sonha refastelado na serpente no oceano de leite?

Embora Vixnu seja uma das inúmeras facetas de Brahman, no entanto uma das três principais, constituinte da Trimurti (com Brahma e Xiva), este poderia ser como que o sono profundo, sem sonhos e, aquele, o sono com sonhos.

No fundo, são modos de uma mesma entidade. Essa entidade é a realidade realíssima, o sonhador, o adormecido.

Não nos esqueçamos, porém, que, na realidade, o filho não é menos real do que o pai. Por isso, haverá a considerar algo mais real do que nós, o Tao, que é o único modelo de si próprio?

Penso que há algo mais real do que nós, a saber, a génese de tudo, fugindo à analogia supra, o sonhador, o adormecido.

Estranho é que a realidade surja tão meticulosamente organizada perante tamanha ignorância na fonte. Talvez tanta organização seja algo superveniente e não fontal.

O que há? Um grande sono, o sonhador, o adormecido. E, assim, entramos - tudo e todos - na primeira noite escura, limiar da realidade realíssima, lugar onde se dividem os mundos.

Calecut à vista

«O estudo do pensamento filosófico e religioso do hinduismo e do helenismo arianizado é somente um primeiro estádio que, através de formas aculturadas, nos permite alcançar a fonte primeira e autêntica de todos os nossos conceitos religiosos e místicos: ou seja, o shivaismo dionisíaco, que contempla a possibilidade de um homem total em relação com o Ser total, através das técnias de yoga, das artes, da dança, do êxtase, permitindo atingir formas de conhecimento que ultrapassam o racionalismo e a lógica baseada na experiência ilusória dos sentidos; permite chegar a uma intuição da natureza profunda do mundo e do divino em âmbitos onde o pensamento, a matéria e a percepção nos aparecem segundo aquilo que são: formas de energia, inseparáveis umas das outras.» (A.Daniélou, Mitos e Deuses da Índia)

«As ideias de ritmo e de dança vêm-nos naturalmente à memória quando procuramos imaginar o fluxo de energia que percorre os padrões que constituem o mundo das partículas. A física moderna mostrou-nos que o movimento e o ritmo são propriedades essenciais da matéria – que toda a matéria, quer aqui na Terra, quer no espaço sideral, está envolvida numa contínua dança cósmica. Os místicos orientais têm uma visão dinâmica do universo, semelhante à da física moderna; consequentemente, não é de surpreender que também eles tenham utilizado a imagem da dança para comunicar a intuição que tinham da natureza.» (Fritjof Capra, O Tao da Física)

Cabaret do mundo oco

Neste blog entra tudo
é entrar minha gente !
Mal entras por trás
logo sais p'la frente !

Se te fizeres de parvo
e não quiseres sair
levas um pontapé no cu
saltas logo a ganir

De blogues assim é qu'eu gosto
bem oleados e diferentes
musas e musos p'ra todos os gostos
a aliviar o tesão das mentes

Intelectuais, santos, parvos
heróis reformados, damas carentes
espíritos cheios de caspa
lesmas, gatos, serpentes

Cabaret do mundo oco
frenesim da vida mansa
quem nos topa é o Bosch
que lá ao fundo rege a dança

E se mais quiseres saber
saber mesmo, não ouvir
olha bem p'ra ti
e caga-te a rir !

Balanço

Neste blog entra tudo
Do mais maçudo ao mais pirilampo
Desde quem é balançado até quem faz o balanço
O mais bruto e o mais manso
Os do luto e os do ranço
Para aqui tudo é convidado
É a casa da Joana, do Gustavo e da Yolanda
Na caixa dos comentários
Entram mais uns convidados
Chamem uns aos outros otários
Ou reivindiquem um salário,
Conforme a conveniência rimária,
E fica o assunto arrumado.
Qualquer dia isto explode
Ou há um motim lá fora
Entretanto entra quem pode
Aterrem que não perdem pela demora,
Diz o partido dos blogs:
É de mais tanta abordagem
Façam lá uma triagem
Que assim não se percebe nada
Olhem lá a ladroagem
É posts de minuto a minuto
Tudo na ponta da língua
É ver quem chega primero
Ainda para mais em bué línguas.
Tenham medo das serpentes
Como costumavam ter
Que esta deixa vir os ratos
Para no fim os comer!
Ou inda não entrou tudo sem ninguém ver?

domingo, 27 de janeiro de 2008

Espírito Santo em estado puro

«Segundo a cosmologia hindu o universo não tem substância. A matéria, a vida, o pensamento não são mais do que relações energéticas, ritmo, movimento e atracção recíproca. O princípio que dá origem aos mundos, às várias formas do ser, pode portanto ser concebido como um princípio harmónico e rítmico, simbolizado pelo ritmo dos tambores, pelos movimentos da dança. Enquanto princípio criador, Shiva não profere o mundo, dança-o. "Quaisquer que tenham sido as suas origens, a dança de Shiva tornou-se com o tempo a mais clara imagem da actividade de Deus que nenhuma arte ou religião poderá gabar-se de ter inventado"(Ananda Coomaraswami, The Dance of Shiva, p.67).
Diz o escritor grego Luciano (II séc. d.C.): "Parece que a dança teve o seu surgimento no início de todas as coisas e que se manifestou contemporaneamente com o Eros antigo, pois vemos esta primeira dança aparecer claramente no bailado das constelações e nos movimentos enlaçados dos planetas e das estrelas, e nas suas relações [vemos] uma ordenada harmonia".
Shiva, como manifestação da energia rítmica primordial é o 'senhor da dança' (Nataraja). O universo cósmico é o seu teatro. É o bailarino itifálico, princípio de todas as formas de vida. Aquilo que une o Criador ao Criado, o ser divino ao mundo visível, pode ser expresso em termos de ritmo, de movimento, de dança. O Criador dança o mundo e, por analogia, a dança dos homens pode ser considerada um ritual, um meio através do qual nos é possível remontar à origem das coisas, aproximarmo-nos do divino, unirmo-nos a ele. A ebriedade erótica e a dança extática são os meios mais directos para estabelecer o contacto com o sobrenatural».

Alain Daniélou, Shiva e Dioniso, p. 181

O Cântico Imortal de Paulo Brito e Abreu











A sociedade luciferina há-de voltar sobre as nossas cabeças
e conduzir-nos novamente ao reino de Heliópolis
aos deuses criadores do maná e das flores
E o Homem há-de ser outra vez
puro como as pérolas e ousado como as águias
Há-de voltar o reino de Aquário
E os rapazes e as meninas não digo raparigas digo meninas
Hão-de de novo superar as escolásticas noções do Paraíso e do Inferno
E hão-de de novo ser ousados e saber
que não existe bem nem mal nem dia nem noite
mas sim a fecunda possibilidade de o Homem se ultrapassar a si próprio
e conquistar os frutos da ciência da única bola de fogo
que existe nos nossos corações sob a forma de um pentáculo
Esse pentáculo há-de invadir o mundo com o seu raio de Mitra puro
Os homens deixarão de ser homens as mulheres deixarão de ser mulheres
Apenas serão uma bola de fogo voando e procriando
para além dos seus próprios limites.

de: Cântico Imortal

http://www.triplov.com/poesia/abreu/index.html
www.utopiateatro.com/noticias/noticias/os-meninos-davo-recebem-paulo-brito-e-abreu.html

Cartas de Amor ao Século XXI: I - Algarve

Alguém, cujo nome não me apetece lembrar, escreveu um dia que só vemos aquilo que queremos ver.

Melhor: Acho que vemos aquilo que nos é dado ver pelas lentes que nos são dadas pela gente que nos viu nascer e crescer. Felizes daqueles que não vêem mais nada do que aquilo que vêem por elas.

Melhor ainda: Felizes daqueles que não querem mais nada do que continuar a ver apenas por essas mesmas lentes, dadas por quem lhes deu as primeiras palavras, por quem lhes mostrou os atalhos do amor e da camaradagem.

Numa daquelas tardes em que eu fugia para a praia para escapar a mais uma sessão de pancadaria (já não me lembro se em casa, na rua ou na escola, não interessa, nenhum dia terminava sem que eu apanhasse em todos esses lugares, no corpo ou no espírito), foi-me dado ver algo de extraordinário. Algo que confirmava a vergonhosa honra de pertencer áquela sociedade secreta de loucos, dementes e marginais de toda a especie a quem essas ditosas lentes nunca parecem assentar bem.

Era um daqueles inicios de tarde em que as quatro estações parecem dançar em uníssono. O ar estava frio e cristalino e o céu espraiava-se num azul de alfazema. A areia húmida enregelava-me os membros (uma das poucas sensações que me confirmava que eu fazia realmente parte deste mundo). O sol resplandescia nas ondas, transportando para o presente o calor branco do Verão. Mas o melhor de tudo era a solidão. A paz da solidão e o marulhar do mar.

Foi entao que eu vi. Vi o que tinha ouvido da boca de um daqueles loucos que já fazem parte da arquitectura da cidade, uma daquelas histórias que talvez ja faça parte do folclore local, daquelas coisas em que ninguem acredita mas que todos lá no fundo temem ser verdade, pois isso põe em causa o seu suposto monopólio da razão e da sanidade mental.

Um sapo saltava sobre a areia humida da beira-mar. Salta e coaxava. Coaxava com insistência, como a me desafiar a seguí-lo. Assim o fiz. Sempre houve uma voz cá no fundo de mim a dizer que nunca devemos ignorar a voz dos animais. Uma daquelas vozes que tememos admitir que existem mas que nos seguem para toda a parte.

O sapo levou-me a uma daquelas reentrâncias da falesia onde só se entra na maré vazia. O ar lá dentro era frio e escuro. O coaxar do sapo ressoava pelas paredes fora, dando a ideia que a reentrância ia muito mais longe do que a erosão do mar conseguia alcançar. Segui-o, movida por uma confiança que não sabia de onde vinha mas que me envolvia com um sabor familiar. Entrei na escuridão. A areia voltou a ficar húmida, cada vez mais húmida, os meus pés enterravam-se nela com um som terroso. Comecei a ouvir um barulho vindo lá do fundo, um barulho que a início parecia o zumbido grave de algum enxame sonolento mas depois parecia cada vez mais uma sinfonia de milhares de sapos como o que me levava para aquele lugar. Quanto mais andava, mais o som se tornava nítido. O seu coaxar juntava-se ao deles.

Como era possível? Perdi a noção do tempo mas sabia já estar longe, muito longe da praia.

Como era possível? Pela falésia adentro, escondido do olhar de todos, iluminado pelo fogo-fátuo, abria-se um enorme pântano que parecia abarcar a dimensão de toda a cidade. O ruido era ensurdecedor.

Afinal era verdade. Os loucos não mentiam, ou então eu tinha me tornado um deles. A cidade e a sua selva de complexos turísticos erguia-se sobre um chão oco que ameaçava a toda a hora desabar sobre um abismo pantanoso, onde uma multidão infinita de sapos coaxava ate a exaustão o seu verdadeiro nome. Um nome que nunca ninguem ousou entender nem dizer, porque é impronunciável.

No fluir das águas


O mundo, com todas as suas presenças, revela as sombras e os rostos do passado e anuncia a cor e a escuridão dos milénios futuros. As imagens sucedem-se num ritmo constante e parecem cumprir um ritual comum, que se resume a despertar e adormecer, desenhando círculos intermináveis de prazer e de dor, de posse e despojamento. A razão de tudo isto existir é um mistério… e tudo está mergulhado nesse mistério.

Cassandra, ao compreender que faz parte desta festa de luz e de cor, sente uma profunda gratidão por existir. Tudo o que desejou foi-lhe oferecido. Qualquer perda que venha a sofrer será irrelevante, tendo em conta tudo o que já viveu. “Estou segura.” – pensou. “Seja o que for que me aconteça será sempre exterior a quem eu sou.” A partir deste momento, Cassandra preparou-se para viajar. Guardou o perfume das flores que a rodeavam numa pétala de rosa, a frescura do rio e das fontes numa gota de água, o luxurioso verde dos jardins e das árvores numa folha. Mas não levou nada consigo! Confiava que o mundo tivesse uma infinita variedade de flores, rios e árvores. Olhou em seu redor, para se despedir das paredes de beleza que a tinham mantido aprisionada durante toda a eternidade. E depois partiu.

Onde quer que esteja, terei sempre tudo o que preciso.” – foi com este pensamento que Cassandra entrou no grande rio e se deixou levar pela sua corrente, para um mundo onde nada lhe podia ser tirado.

Invocação da Alma Peregrina

Num cemitério de São Francisco, Califórnia

“Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono,
Dormitando junto à lareira, toma este livro,
Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar
Que outrora tiveram teus olhos, e com as suas sombras profundas;

Muitos amaram os momentos do teu alegre encanto,
Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,
Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,
E amou as mágoas do teu rosto que mudava;

Inclinada sobre o ferro incandescente,
Murmura, com alguma tristeza, como o Amor te abandonou
E em largos passos galgou montanhas
Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas.”

Yeats

Haverá outra luz em nós que não o fugaz Bem? O Bem que nunca se instala e não tem ninho tem apenas asas? À maneira de Éluard? Que outro Bem como o Amor poderia perdurar dentro de uma alma peregrina? Ele que é alado e faz subir à solidão da mais alta montanha? Uma alma peregrina espera as estrelas para entregar o rosto, o seu e o do amado. Uma alma peregrina não o traz revelado nem descoberto. E, por isso não pode sentir senão abandono e, em si e nele, um rosto que mudava. Uma alma peregrina canta, com a voz que canta em Lacrimosa days of tears na composição de Zbigniew Preisner. E chora e ouve no vento a voz do rosto que se esconde sob todas as formas e de todas as formas. O rosto amado tem as formas todas do Universo e tem os sons de todos os elementos. Não é um rosto. É um universo. É por isso que a alma é peregrina: para o ver de todas as maneiras em todas as coisas. E tanto é o cansaço desse correr e dessa espera, enfim em tudo cheia e vazia, que as imagens do mundo nos hão-de querer destruir o corpo, como o rosto. E nesse instante murmurará a voz cadente e cadenciada do poema: da sua música e do seu canto. Porque lá onde há poeta, há já músico e cantor. Mas ele não se ouve. Canta e sente a indizível dificuldade de ser a luz que é, ao sê-la. E que só outros podem reconhecer luz, música e voz. Uma alma peregrina é a que passa e diz poemas às estrelas. É por isso que elas dançam. Mas não tem ninguém para contar e não conta. Canta e visita os mortos. As almas peregrinas são as que ainda lêem os poetas e ouvem os músicos e as esferas divinas.


Kuntá Hora, Republica Checa

sábado, 26 de janeiro de 2008

Amor ?

Numa das obras mais singulares e profundas da espiritualidade ocidental, O Espelho das Simples Almas Aniquiladas, Marguerite Porete confronta-se com três questões que lhe são colocadas por Deus: 1 - como se comportaria ela se ele preferisse que ela amasse outro mais do que a ele; 2 - como se comportaria ela se ele amasse outrem mais do que a ela; 3 - como se comportaria ela se ele quisesse que um outro a amasse mais do que ele.
Num primeiro momento, sente o "sentido" faltar-lhe, o "assombro" do pensamento e não sabe o que dizer. Descobre então que, se isso acontece, é porque afinal, julgando amá-Lo desinteressadamente, na verdade se amava muito "com ele". Responde por fim que, se for essa a Sua vontade, é isso mesmo que quer e assim põe definitivamente fim à sua vontade e ao seu amor, tornando-os mártires. Deste modo surge o "País da Franquia [Liberdade]" e a Alma torna-se um "puro nada", livre de si, de vontade e de Deus, reabismada na "nudez" do "abismo" divino, regressando "sem ser aí onde era antes de ser".
Marguerite Porete foi queimada, junto com a sua obra, em Paris, na Praça de Grève, em 1 de Junho de 1310, sob o reinado de Filipe, o Belo. Considera-se hoje poder ter sido uma das inspiradoras das teses místicas mais radicais de Mestre Eckhart.
Interrogo-me se não é o modo como julgamos amar e o próprio "amor" que, travestidos de Inquisidores, a condenaram e condenam, a queimaram e queimam. Pois, já que o amor disso que se designa por Deus passou de moda, verifiquemos como responderíamos se estas questões nos fossem colocadas por aquela ou aquele que julgamos mais amar... Abdicaríamos, abdicamos, disso a que chamamos "amor", ou seja, de nós !?... E se não, não será isso mesmo que continua a queimar esta mulher e este livro... a queimar a verdadeira liberdade que jamais pode coexistir com o querer-se isto ou aquilo !?... Não é esta íntima recusa a abdicarmos de nós mesmos que gera, alimenta e reproduz, em primeira e última instância, a opressão de que tanto nos queixamos ?... Pois quem mais nos escraviza do que o fardo do "eu" ?

Cf. Marguerite Porete, Le Miroir des Simples Âmes Anéanties, traduzido do francês antigo por Claude Louis-Combet, apresentado e anotado por Émilie Zum Brunn, Grenoble, Jérôme Millon, 2001, pp.252-255 e 258-259.
Cf. Paulo Borges, "Do Bem de Nada ser. Supra-existência, aniquilamento e deificação em Margarida Porete", in www.pauloborges.net

तत् त्वम् असि, ( Tat Tvam Asi, "Tu és Isso" ) - Chandogya Upanishad , 6.8.7

“Na indizível dificuldade de sermos a luz que somos e de vê-la sendo, na experiência de que falo, sentir-nos-emos uma presença intemporal, eterna, de nós a nós – sentirás como abruptamente, atonitamente, terrivelmente, é como se visses alguém vivendo em ti, uma pessoa que lá estava e não estava, uma realidade estranha e fulgurante, um alguém que não és tu e te habita e vive atrás de tudo quanto o manifesta, oculto atrás dos teus gestos, dos teus pensamentos, disfarçado nisso que tu és e tu e os outros reconhecem”
– Vergílio Ferreira, Invocação ao Meu Corpo, p.67.

"Por trás do espelho quem está
De olhos fixados nos meus?
Alguém que passou por cá
E seguiu ao deus-dará
Deixando os olhos nos meus.

Quem dorme na minha cama,
E tenta sonhar meus sonhos?
Alguém morreu nesta cama,
E lá de longe me chama
Misturado nos meus sonhos.

Tudo o que faço ou não faço,
Outros fizeram assim.
Daí este meu cansaço
De sentir que quanto faço
Não é feito só por mim"

- Fado "Cansaço", letra de Luís de Macedo, cantada por Amália Rodrigues

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Eros humano, Eros divino

"Ora, pelo facto de que o mistério divino, tal qual se propõe à religião esotérica, se enuncia na Unidade do amor, do amante e do amado, se há uma via de acesso pela qual o iniciado possa aproximar-se deste mistério e vivê-lo, esta via não pode senão ser única; ela é indicada no próprio enunciado. O tâwhid esotérico não pode ser compreendido, vivido e realizado senão na e pela experiência do amor. É o amor (o Eros) humano que abre o acesso ao tâwhid esotérico, porque o amor humano é a única experiência efectiva que pode, no seu limite, fazer pressentir e por vezes realizar a unidade do amor, do amante e do amado [...].
"Não se trata senão de um só e mesmo amor e é no livro do amor humano ('ishq insâni) que é necessário aprender a ler a regra do amor divino ('ishq rabbâni) [Rûzbehân, Jasmim dos Fiéis d' Amor, 160]"
- Henry Corbin, En Islam Iranien. Aspects spirituels et philosophiques. III - Les Fidèles d'Amour. Shî'isme et Soufisme, Paris, Gallimard, 1972, p.67.

Uma breve reflexão sobre a realidade (jogo do ser e não-ser) e sobre mim mesmo

O jogo do ser e não-ser é o jogo do não ser, vir a ser, ser e deixar de ser - a realidade ela mesma. Não podemos sair do jogo, quem sabe se na morte; no entanto, porquanto entendermos que nada nunca não existiu, mas que é eterno nos seus diversos modos de ser ou aparições (ou não aparições...), entendemos que não podemos sair do jogo, objectivamente, embora possamos entender que, subjectivamente, saímos de facto do jogo (ou não estamos nele...), no desaparecimento e antes do aparecimento daquilo a que chamamos "eu".

É uma hipótese: o Universo enquanto palco de transformações é eterno... ele é as próprias tranformações, no seu todo, eternas. Bebe do cálice hinduísta, porque enuncia um espaço cíclico (embora ponha o eterno retorno entre parênteses) onde ocorrem as dores e alegrias dos seres, no qual pode inclusivamente ocorrer reencarnação, mesmo segundo a lei do karma; seria o equivalente ao samsara. Bebe do cálice budista, porque enuncia um eu (subjectivo) impermanente, insubstancial, que nem sempre existiu e condenado a desaparecer; seria o equivalente ao anatman, por oposição ao atman de certas correntes hinduístas.

Apesar de referir ao que são equivalentes as ideias que expus, lançando para a fogueira uns ténues laivos de sabedoria, não interessa realmente ao que são equivalentes, mas o que são. Resumindo: o Universo é eterno e é o conjunto de todos os seres; tudo existe desde sempre e para sempre, embora, antes e depois de vir a ser e deixar de ser, sob outras formas (ex. os seres vegetais, animais ou humanos após a morte) ou, pelo menos, intemporalmente na génese destas (que são seres).

O que há em mim de incriado, de incondicionado? Aquilo que está na génese de tudo.
O que há em mim de criado, de condicionado? Todos os seres que fui e serei, na e para a eternidade, para os quais nem nome temos.

A hymn to Love

Love is the road to salvation, they say, but sometimes it kills you in the process...

This following text was written hundreds of years ago, I dedicated it to all the reverend fathers who told us to "give the other cheek" and, when we did not comply, forced us into the floor and whipped us until we understood the meaning of Love: obedience to the point of indistinguishability!

Are they saints or are they sinners? The disappearance of the self through utter acceptance... is it not just another face of the ego that tries to transcend just by possessing the possessor?

HE, who we do admire, has such power over us and everything, that by melting away with him, we transcend our own pain and become, become stronger, become him to whom we are enslaved.

Love, oh, LOVE, LOOOOVEEEE, Loooveee, the mystery, the redemption, transcending and beyond, oh!, I am you and you are me, and no difference between us now stands, except...

It's all the same illusive ego, all around, all around...


Este texto foi publicado num jornal há 351 anos atrás e repescado por Foucault para ilustrar um dos seus próprios livros; é dedicado aqui ao Rev. Robert Levermore, personagem que escreve neste blog de quando em vez. É dedicado também a essa Igreja que nos levou aos mais altos picos da espiritualidade, que eu Adoro e com a qual certamente me identifico...

Uma versão mais completa pode encontrar-se aqui.

«A 2 de Março de 1757 Damiens foi condenado a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris, onde lhe foi arrancada carne dos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas com tenazes quentes. A mão direita segurando a faca com que tentou cometer o regicídio foi queimada com enxofre, e às feridas foi aplicado chumbo derretido, óleo fervente, cera e enxofre derretidos conjuntamente, a seguir o seu corpo foi puxado e desmembrado por seis cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento. […] Os espectadores ficaram todos edificados com a solicitude do cura de Saint-Poul que, a despeito da sua idade avançada, não perdia nenhum momento para o consolar. […] O senhor Le Breton, escrivão, aproximou-se diversas vezes de Damiens para lhe perguntar se tinha algo a dizer. Disse que não; nem é preciso dizer que ele gritava, com cada tortura, da forma como costumamos ver representados os condenados: "Perdão, meu Deus! Perdão, Senhor". […] As cordas tão apertadas pelos homens que puxavam as extremidades faziam-no sofrer dores inexprimíveis. O senhor Le Breton aproximou-se outra vez dele e perguntou-lhe se não queria dizer nada; disse que não. Achegaram-se vários confessores e falaram-lhe demoradamente; beijava conformado o crucifixo que lhe apresentavam; estendia os lábios e dizia sempre: "Perdão, Senhor". »

(adaptado da Gazeta de Amsterdão de 1 de Abril de 1757, in Michel Foucault, Vigiar e Punir)

Um Buda


quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Cristo e a energia sexual

"A energia sexual é uma energia temível, um "fogo divino" que tanto pode consumir-nos, destruir-nos e destruir o outro como divinizar-nos. Os impasses do mundo contemporâneo neste domínio, com as suas obsessões da fruição a todo o preço que não deixam lugar algum à fragilidade, à solidão e à vulnerabilidade do ser humano, não podem ser esquecidos, nem a mercantilização do corpo e outras formas de pornografia.
A sexualidade, tal como a inteligência e a afectividade, se lhe falta orientação (oriente) não pode senão conduzir a abismos ou a regressões, e as tradições cristãs têm a sua responsabilidade neste domínio.

"A religião esqueceu-se de ensinar aos seus fiéis a arte de fazer amor. Ela faltou ao seu dever ao negligenciar a disciplina espiritual da fruição física. Não quis estabelecer o elo entre a teofania da sexualidade, que deixou cair no esquecimento, e as outras teofanias descritas nas Escrituras (das quais faz parte o Cântico dos Cânticos) [Matthew Fox, Le Christ Cosmique, Paris, Albin Michel, 1995, p.261].

Restituir ao Cristo uma sexualidade humana e verdadeira, é restituir ao ser humano a possibilidade de viver espiritualmente esta dimensão inevitável de si mesmo, porventura mesmo de a transfigurar e encontrar o Sol aí onde se o tinha habituado a não ver senão sombras"

- Jean-Yves Leloup, "Tout est pur pour celui qui est pur". Jésus, Marie-Madeleine, l'Incarnation, Paris, Albin Michel, 2005, p.138.

(Em homenagem a um dos pensadores contemporâneos mais profundos, no momento em que aceitou o convite para uma conferência na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 22 de Abril: ver Actividades, neste blogue)
Francesco di Giorgio Martini
God the Father - 1470
National Gallery of Art - Washington

Eternas navegações ao vogar do vento

Sou uma nau à deriva, ao vento; não me lembro de que porto parti; talvez não tenha partido nunca, e navegue desde sempre.



Santa Joana Princesa
exilada

Poema do Dolce Stil Novo

Biltà di donna e di saccente core

e cavaliere armati che sien genti;

cantar d’augelli e ragionar d’amore;

adorni legni’n mar forte correnti;


aria serena quand’apar l’albore

e bianca neve scender senza venti;

rivera d’acqua e prato d’ogni fiore;

oro, argento, azzuro n’ornamenti:


ciò passa la beltate e la valenza

de la mia donna e’l su’gentil coraggio,

sì che rasembra vile a chi ciò guarda;


e tanto più d’ogn’altr’há canoscenza,

quanto lo ciel de la terra è maggio.

A simil di natura ben non tarda.


Postei aqui o original, porque é necessário lê-lo em voz alta.

Agora, uma tradução literal:


Beleza de dama e de coração sábio

e cavaleiros armados que sejam gente;

cantar de pássaros e razoar d’amor;

armar barcas no forte mar corrente;


brisa serena ao primeiro alvor

e branca neve descendo sem vento;

ribeiro d’água e prado de toda a flor;

ouro, prata, lápis-lazúli em ornamento:


tudo isto vence a beleza e o valor

da minha senhora e o seu gentil coração,

parecendo vil a quem o observa;


e de tudo o mais tem ela tanto entendimento,

quanto o céu sobre a terra se eleva.

O bem não adia a sua imagem na natureza.



Guido Cavalcanti (1259?-1300?)

Quem por amor se perdeu

Quem por amor se perdeu não chore, não tenha pena
Uma das santas do céu foi Maria Madalena!

Desse amor que nos encanta
Até Cristo padeceu
Para poder tornar santa
Quem por amor se perdeu

Jesus só nos quis mostrar que o amor não se condena
Por isso quem sabe amar não chore, não tenha pena!

A Virgem Nossa Senhora
Quando o amor conheceu
Fez da maior pecadora
Uma das santas do céu

E de tanta que pecou, da maior à mais pequena
E aquela que mais amou foi Maria Madalena!

Augusto Gil (1873-1929)

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Os Amores do Redentor

"Três caminhavam sempre com o Mestre: Maria, sua mãe, a irmã de sua mãe e Myriam de Magdala que é como a sua companheira (koïnonos) pois Myriam é para ele uma irmã, uma mãe e uma esposa (koïnonos)" [Evangelho de Filipe, 32].
A palavra koïnonos, em grego como em copta, faz referência ao coito, quer a traduzamos por "noiva", "companheira" ou "esposa". Neste texto, Myriam aparece como aquela que partilha o "coito" com o Mestre. O texto precisa igualmente que Myriam não é somente isso, ela é também como uma irmã e uma mãe para Yeshoua"

- Jean-Yves Leloup, "Tout est pur pour celui qui est pur". Jésus, Marie-Madeleine et l'Incarnation, Paris, Albin Michel, 2005, pp.16-17.

Samaritana

Dos amores do Redentor
Não reza a História Sagrada
Mas diz uma lenda encantada
Que o bom Jesus sofreu de amor

Sofreu consigo e calou
Sua paixão divinal
Assim como qualquer mortal
Que um dia de amor palpitou

Samaritana plebeia de Cicár
Alguém espreitando te viu Jesus beijar
De tarde, quando foste encontrá-Lo só
Morto de sede junto à fonte de Jacob

E tu serena acolheste
O beijo que te encantou
Serena empalideceste
E Jesus Cristo corou

Corou por ver quanta luz
Irradiava da tua fronte
Quando disseste - Oh Meu Jesus
Que bem eu fiz Senhor em vir à fonte !

Fado de Coimbra - Letra e música: Edmundo Bettencourt

Como nos libertamos do jogo do ser e não-ser?

Este post vem a propósito do anterior e sobre a questão de, por vezes, nos sentirmos aprisionados no jogo do ser e não-ser. A pergunta é: como nos libertamos do jogo? No post anterior, não é dada uma resposta clara. É, apenas, dito que nos libertamos através de toda uma série de actos verdadeiramente diversos. Naturalmente, uns serão mais libertadores do que outros. Mas pretendo, agora, de forma clara e, no entanto, quase paradoxal, responder à questão: como nos libertamos do jogo do ser e não-ser? Jogando.

O tempo, a realidade (jogo do ser e não-ser) e a fuga da realidade (tendo em vista a liberdade)

O tempo passa e nada permanece o mesmo.
Tudo está sempre a mudar.
Umas coisas deixam de ser, esgotado o seu karma,
Outras vêm a ser, a partir das outras.
É o jogo do ser e não-ser, dominado pelo tempo.
O tempo é a mudança operada nas coisas,
A sua essencial instabilidade, desequilíbrio,
Entre o uno e o múltiplo, o finito e o infinito, o definido e o indefinido, o tudo e o nada,
Algoritmo que não controlamos.
E nesta roda viva de ecos, gritos, brilhos, sombras - fantasmas,
Tudo vai acontecendo, vindo a ser e deixando de ser, cheio de dores de pranto e parto, e de alegria,
Por obra não sabemos de quem.

E, por vezes, apetece-nos fugir e é o que fazemos:
conversamos; lemos um livro; vemos um filme; brincamos; damos uma solitária volta de carro pela noite escura, calcorreando o brilho psicadélico das luzes da cidade; fodemos como animais bestiais; matamos...

Libertamo-nos do jogo pelo esquecimento do jogo. Há verdadeira liberdade no acto. Enquanto dura. Poderá durar para sempre - um após outro, após outro...- e será que o queremos?

Tão longe

No ar, a penumbra de velhas glórias
Aqui, tudo está parado no tempo
Nada se move, nem um som de soslaio
Estou perante um verdadeiro nada
Tão longe da primeva civilização.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

A todos os Amantes que em Verdade se sabem perder

"[falando da iluminação do Buda, com a mulher, antes de abandonar o palácio]
Junto com Gopa, ele experimentou a beatitude.
Unindo o ceptro de diamante e o lótus,
Alcançou o fruto da beatitude.
A Budeidade é obtida a partir da beatitude e,
na separação das mulheres, não haverá beatitude"
- Candamaharosana-tantra

"O homem [vê] a mulher como uma deusa,
A mulher [vê] o homem como um deus.
Unindo o ceptro de diamante e o lótus,
devem fazer oferendas mútuas.
Não há adoração a não ser esta"- Ibid.

"O prazer humano, com as características que o identificam,
É isso mesmo que,
Quando se removem as características,
Se converte em êxtase espiritual,
Livre de pensamento conceptual,
A própria essência da sabedoria auto-emergente"
- Sahajayoginicinta

"Cessamos de saber quem é o outro
E o que nos aconteceu.
Os amantes experimentam uma beatitude inexprimível,
Nunca antes experimentada"- Id.

(Ver "Experiência sexual e iluminação na tradição tântrica", em www.pauloborges.net / textos)

Depois

Só a ti chego depois das tempestades
Bebo o teu sopro de vida
Respirando o perfume de laranjas em flor
Aqui fico para que me embales
matando-me a dor
junto ao teu peito

Solta-me o laço marcado
dobrado pelo tempo de não te ver
Quero-te desenrolar sobre o meu corpo
sobrado da saudade
do teu amor

Cobre-me de linho
Unta-me com flores
Fala-me de longe
Um mar de areia fina
e a tua cor

Juntam-se os azuis
Num céu de amarelos
Conchas vermelhas
E um cavalo castanho

Sabes do que eu falo
Guardamos segredos
Canto cá do alto
Voltamos a ver-nos
Juntos caminhamos
Sem nunca perdermos
A mão que nos junta
tem mil e um dedos

Canção da América

Há música na América,
meus senhores.

Nunca a ouviram?

Talvez os tambores da guerra
vos tenham roto os tímpanos,
assim como a superioridade moral
vos bloqueou as artérias.

Há música na América,
meus senhores
e é estridente.

Nunca a escutaram?

É a música do desmoronar
das nossas certezas
sob o peso das garantias.

É o som do chacoalhar
dos refegos gordos
da nossa saciedade.

É o eco do caminhar
dos esqueletos que acordam
do longo sono que lhes proporcionámos
nos armários da nossa História.

Há música na América,
meus senhores
e o seu vibrar é ambivalente.

Não o sentiram?

É o hálito agridoce
de um repentino despertar.

É a dor e a delícia
de uma puberdade revisitada.

É a estranheza e o fascínio
de quem vê o seu reflexo com novas lentes.

Há música na América,
meus senhores
e é um canto de sereia.

Não se aperceberam?

É a canção mestiça
que nos recorda
a tentação de Ulisses
e a indiferença a que foi votada
a donzela do mar,
que Andersen fez sacrificar
a própria vida
ao amar o inalcançável.

Há música na América,
meus senhores
e é uma canção pungente.

É a canção da sabedoria intemporal
que força para ser ouvida
entre os brados do auto-contentamento.

É a canção do amadurecer das eras
que tenta transparecer
entre o choro da ingenuidade violada.

Há música na América,
meus senhores,
um cântico dolente.

América,
das filhas dos homens a mais pura,
beija-nos o rosto, tu que olhas fascinada
para o falo com que injectámos o teu corpo virgem
com os nossos devaneios.

América,
das filhas dos homens a mais puta,
abraça-nos ternamente, tu que caminhas desajeitada
nos tacões altos que te emprestámos,
para que a queda seja mais doce
quando o chão se abrir sob os nossos pés.

E que a nossa garganta roufenha remoce
ao juntar-se á tua nesta canção embriagada.

Par ce que oui, Messieurs, Dames,
il y a de la musique
dans l’Amerique,
la merdique.



Bruxelas, Abril de 2004

Pobreza amada

Pobreza amada,

Grande é a tua senhoria!

Minha é a França e a Inglaterra,

para além do mar tenho toda a terra

(e nenhuma guerra me move,

porque a tenho a meus pés).

Minha é a terra de Sassonha,

minha é a terra de Vasconha,

minha é a terra de Borgonha

com toda a Normandia.

Meu é o reino Teotonícoro,

meu é o reino Boemíoro,

Ibérnia e Dazíoro

Escócia e Fressónia.

Minha é a terra de Toscana,

meu é o vale spoletano,

minha é a Marca Anconitana

com toda a Esclavónia.

Minha é a terra siciliana,

Calábria e Puglia plana,

Campanha e terra romana

com toda a planície de Lombardia.

Minha é a Sardenha e o reino de Chipre,

o de Córsega e o de Creta;

para lá do mar gente infinita,

que nem sei ao certo onde estão.

Medos, Persas e Elamitas,

Jacobitas e Nestorianos,

Georgeanos e Etiópios,

Índia e Barbaria.

As terras dei para a lavoura,

àqueles que as cultivassem;

renuncio aos frutos de cada ano,

tal é a minha cortesia.

Terras, ervas com as suas cores;

árvores, frutos com os seus sabores,

as bestas ao meu serviço,

todos estão no meu talhão.

Águas, rios, lagos e mares,

os peixes no seu nadar,

brisas, ventos, pássaros a voar,

todos me prestam saudação.

Lua e sol, céu e estrelas

perante meus tesouros pouco são;

é sobre o céu que eles estão,

e é sobre eles o meu canto.

Pois Deus tem a minha vontade,

e é senhor de tudo o que eu seja,

as minhas asas têm tantas penas

que da terra ao céu já não é caminho.

Pois o meu querer a Deus o dei,

sou senhor de todo o estado;

e no seu amor transformado,

enamorada cortesia.

Jacopone da Todi (1236-1306)