Numa das obras mais singulares e profundas da espiritualidade ocidental, O Espelho das Simples Almas Aniquiladas, Marguerite Porete confronta-se com três questões que lhe são colocadas por Deus: 1 - como se comportaria ela se ele preferisse que ela amasse outro mais do que a ele; 2 - como se comportaria ela se ele amasse outrem mais do que a ela; 3 - como se comportaria ela se ele quisesse que um outro a amasse mais do que ele.
Num primeiro momento, sente o "sentido" faltar-lhe, o "assombro" do pensamento e não sabe o que dizer. Descobre então que, se isso acontece, é porque afinal, julgando amá-Lo desinteressadamente, na verdade se amava muito "com ele". Responde por fim que, se for essa a Sua vontade, é isso mesmo que quer e assim põe definitivamente fim à sua vontade e ao seu amor, tornando-os mártires. Deste modo surge o "País da Franquia [Liberdade]" e a Alma torna-se um "puro nada", livre de si, de vontade e de Deus, reabismada na "nudez" do "abismo" divino, regressando "sem ser aí onde era antes de ser".
Marguerite Porete foi queimada, junto com a sua obra, em Paris, na Praça de Grève, em 1 de Junho de 1310, sob o reinado de Filipe, o Belo. Considera-se hoje poder ter sido uma das inspiradoras das teses místicas mais radicais de Mestre Eckhart.
Interrogo-me se não é o modo como julgamos amar e o próprio "amor" que, travestidos de Inquisidores, a condenaram e condenam, a queimaram e queimam. Pois, já que o amor disso que se designa por Deus passou de moda, verifiquemos como responderíamos se estas questões nos fossem colocadas por aquela ou aquele que julgamos mais amar... Abdicaríamos, abdicamos, disso a que chamamos "amor", ou seja, de nós !?... E se não, não será isso mesmo que continua a queimar esta mulher e este livro... a queimar a verdadeira liberdade que jamais pode coexistir com o querer-se isto ou aquilo !?... Não é esta íntima recusa a abdicarmos de nós mesmos que gera, alimenta e reproduz, em primeira e última instância, a opressão de que tanto nos queixamos ?... Pois quem mais nos escraviza do que o fardo do "eu" ?
Cf. Marguerite Porete, Le Miroir des Simples Âmes Anéanties, traduzido do francês antigo por Claude Louis-Combet, apresentado e anotado por Émilie Zum Brunn, Grenoble, Jérôme Millon, 2001, pp.252-255 e 258-259.
Cf. Paulo Borges, "Do Bem de Nada ser. Supra-existência, aniquilamento e deificação em Margarida Porete", in www.pauloborges.net
Marguerite Porete, queimada viva pelo mesmo carrasco dos Templários ... Que tesouros de subversão e emancipação se devem ter perdido nessa época ...
ResponderEliminarE que sistema de opressão se agigantou e se continua a agigantar, que é esse do dever querer ser "alguém" e o do querer coisas e experiências que fortaleçam esse mesmo "alguém" que depois nos esmaga com doenças físicas, mentais e espirituais ... Por issoé que a profisão de psicoterapeuta é uma das mais rentáveis do nosso tempo ... Toda a gente quer ser "alguém" e ser reconhecid@ como tal ...
Mas esta questão parece-me vazia. Deus ordena-me que ame X. Bolas, mas como é que eu Amo X? Será possível amar por um puro acto da vontade???
ResponderEliminarAmar é um dom, uma dádiva, ninguém pode decidir amar... a não ser que a palavra "amor" esteja a ser usada aqui como simples sacrifício, obediência, aniquilação. Se é isso, então tanto faz... Um Deus que peça isso não merece que queiramos viver no seu mundo...
Não me parece que o texto esteja bem lido. Marguerite confronta-se com a possibilidade de que Deus prefira, não ordene, que ela ame outro mais do que ele. Se ela o amasse absolutamente, como ela julgava, então, por amor a ele, ou seja, voluntariamente, amaria mais alguém diferente. Mas, como isso não surge espontaneamente, ela descobre que não ama absolutamente Deus e sim ainda a si, à sua gratificação própria no suposto amor de Deus. Constatando isso, renuncia então a esse amor e a essa vontade autocentrada e nesse mesmo instante infinitiza-se e deifica-se. O amor, na sua dualidade egocentrada, era o que a separava do seu estatuto primordial em Deus.
ResponderEliminarA palavra amor tem muitos significados. Para mim significa "ver o divino". Por isso, Amar a Maria significa "ver que Maria é Deus", Amar Deus significa "ver que Deus é Deus". Nessa perspectiva é impossível Amar alguma coisa a pedido...
ResponderEliminarO Amor não é algo que possa ser utilizado ou manobrado ou direccionado. Ou há essa Visão ou não há essa Visão. Tudo o resto é pura consequência. Eu sei que aqui a questão e o "com ele", mas vou desenvolver mais um pouco.
É que há outras formas de "amor" (ou seja, a palavra usada é a mesma) que são mera submissão. Faz lembrar a "história de O". Nesse caso sim, é possível por amor de A, submeter-se a B. etc.
Eu não li o original mas pelo que dizes as respostas às perguntas de Deus parecem-me muito simples:
1 - como se comportaria ela se ele preferisse que ela amasse outro mais do que a ele;
Resposta: exactamente da mesma maneira que antes, continuaria a amá-lo sem mudar nada no seu comportamento, porque o facto de alguém que eu Amo preferir que eu faça X não significa que eu faça, ou tenha vontade, ou me incline mais a fazer X. Isso só aconteceria se eu visse no amor submissão!
2 - como se comportaria ela se ele amasse outrem mais do que a ela;
Resposta: provavelmente ficaria contente, um Deus enriquecido é um Deus mais feliz, ele que Ame até ao Infinito e isso far-me-á muito Feliz!
3 - como se comportaria ela se ele quisesse que um outro a amasse mais do que ele.
Resposta: mais uma vez a questão não faz sentido. Eu amo os meus pais, agora eles querem que a Albertina me ame. Mas que raio! Não tem pés nem cabeça. Deus que vá dar uma volta com as suas preferências. O facto de eu o Amar não significa que me submeta! Nem tão pouco o outro que ele prefere que me ame.
O Amor não é submissão. O medo é que leva à submissão, o medo da solidão, a insegurança, etc. É claro, cada um usa as palavras como quer, eu só disse que se algum Deus me viesse dizer: «ai Eu preferia que te lavasses com água de malvas», eu ouvi-lo-ia atentamente e deliciado, como se faz com um Deus, mas quanto à água de malvas, isso já era outra questão!
A anulação, parece-me, é que é uma forma de esfregar o ego e de o engrandecer. Os sado-masoquistas sabem isso na perfeição.
Continuamos a ter leituras diferentes. A meu ver, as três questões divinas, no texto de Marguerite, são apenas uma estratégia retórica para a alma se confrontar com a impureza do seu amor, com a forte dose de apego e auto-gratificação que há nele. Quando o reconhece e abandona esse amor falso, redescobre-se Deus. Como se pode falar de submissão e sado-masoquismo onde não persiste qualquer forma de dualidade e onde quem supostamente se submete se reconhece afinal idêntico ao Deus a quem aparentemente se submete ?... Falar de submissão é ficar na perspectiva do ego, que vê tudo em termos de relações de poder enquanto não se dissolver na liberdade primordial.
ResponderEliminarCaro Paulo, estive a ler o teu texto mais extenso sobre a Marguerite(no teu site) e realmente achei-o muito belo e verdadeiro. Recomendo vivamente a leitura a quem se interesse por estas abordagens.
ResponderEliminarAgora, o que é certo é que há muitas pessoas que confundem o sado-masoquismo com libertação. Aquilo que há de comum em ambos é a aniquilação das fronteiras, mas na libertação ela acontece como fruto de um nascimento imparável, como a flor que rebenta a semente e a destrói, ou como o pinto que sai do ovo e o destrói. Ou seja, a ênfase está no nascimento, porque aquilo que nasce é incomparavelmente mais pleno do que o que ficou, é algo que merece Alegria, Aplausos, Júbilo!!! Já no segundo caso a mortificação, o aniquilamento, é mera destruição. É nojo pelas fronteiras. E quando se destrói a semente, ou se parte o ovo, sem que nada surja de lá, então voltámos à estaca zero. Teremos outra vez de criar um pai e uma mãe, um ovo, uma semente, para que, a seu tempo, surja a possibilidade de um novo nascimento.
O sado-masoquismo é terrível, porque em parte é o desejo de quebrar as fronteiras, é o desejo do encontro. Mas é um desejo baseado na aversão. É de alguém que não gosta de si, que não se assume e espera que Deus ou o outro venha substituir essas partes nojentas. Neste aspecto concordo com o Osho quando diz que antes de alguém se tornar um Buda tem de ser Zorba. Pois só alguém que tenha vivenciado com todo o esplendor e exuberância o seu ego (que tenha comido bem o interior do ovo) pode estar preparado para se aceitar totalmente como divino. Aí sim as fronteiras rasgam-se, mas é um prazer, um verdadeiro Encontro de tudo com tudo no reconhecimento de que Tudo é o Mesmo. É uma explosão transfigurante que engloba eu e ego e deus e nada e tudo como parte do Mesmo Amor (à falta de melhor palavra). Se calhar foi isso que aconteceu com a Marguerite. Mas faz-me confusão a conversa acerca da aniquilação, ainda por cima no contexto do confronto entre duas vontades! Porque acho que o processo de Encontro e Fusão com o Cosmos é de tal forma (pelo que ouvi dizer) BELO, que é difícil estar a pensar, "Ah! coitadinho do ovo, coitadinha da semente", quando vemos o maravilhoso pinto ou a flor a surgir! Pelo contrário, é uma espécie de Libertação onde tudo se torna possível, onde morte e vida deixam de ser barreiras, é a Suprema Felicidade onde nos reconhecemos com todos! E iríamos pensar, ah!, coitadinho do ego?? Não estou a ver! Acho que haveria nesse momento uma GARGALHADA enorme que duraria por toda a eternidade. Isto sim! Não é tristeza, a aniquilação aqui é apenas largar uma capa que, sabemos agora, nunca verdadeiramente se amou, a não ser como meio de um dia a vir a despir e permanecer inteiro! Esse seria o momento porque sempre teríamos ânsiado e a suprema ironia é que sempre tinha estado ao nosso alcance!
Não há necessidade de sentir a perda do ego como perda, até porque o ego continua lá, se o quisermos vestir e ver a que é que sabe... Porque não, «sem nenhum "quê" nem "porquê"» se nos dá Prazer? Aliás, temos mesmo de o vestir, senão não seria possível a expressão.
Gostava de conseguir ler o texto dela, mas não o encontro disponível na net! (sempre a questão do copyright!). Em todo o caso encontrei esta menção sobre o seu fim:
"Around the feast of Pentecost it happened at Paris that a certain pseudo-woman from Hainault, named Marguerite and called "la Porete," produced a certain book in which, according to the judgment of all the theologians who examined it diligently, many errors and heresies were contained; among which errors, that the soul can be annihilated in love of the Creator without censure of conscience or remorse and that it ought to yield to whatever by nature it strives for and desires."
http://weblog.bergersen.net/terje/archives/000879.html