domingo, 27 de janeiro de 2008

Cartas de Amor ao Século XXI: I - Algarve

Alguém, cujo nome não me apetece lembrar, escreveu um dia que só vemos aquilo que queremos ver.

Melhor: Acho que vemos aquilo que nos é dado ver pelas lentes que nos são dadas pela gente que nos viu nascer e crescer. Felizes daqueles que não vêem mais nada do que aquilo que vêem por elas.

Melhor ainda: Felizes daqueles que não querem mais nada do que continuar a ver apenas por essas mesmas lentes, dadas por quem lhes deu as primeiras palavras, por quem lhes mostrou os atalhos do amor e da camaradagem.

Numa daquelas tardes em que eu fugia para a praia para escapar a mais uma sessão de pancadaria (já não me lembro se em casa, na rua ou na escola, não interessa, nenhum dia terminava sem que eu apanhasse em todos esses lugares, no corpo ou no espírito), foi-me dado ver algo de extraordinário. Algo que confirmava a vergonhosa honra de pertencer áquela sociedade secreta de loucos, dementes e marginais de toda a especie a quem essas ditosas lentes nunca parecem assentar bem.

Era um daqueles inicios de tarde em que as quatro estações parecem dançar em uníssono. O ar estava frio e cristalino e o céu espraiava-se num azul de alfazema. A areia húmida enregelava-me os membros (uma das poucas sensações que me confirmava que eu fazia realmente parte deste mundo). O sol resplandescia nas ondas, transportando para o presente o calor branco do Verão. Mas o melhor de tudo era a solidão. A paz da solidão e o marulhar do mar.

Foi entao que eu vi. Vi o que tinha ouvido da boca de um daqueles loucos que já fazem parte da arquitectura da cidade, uma daquelas histórias que talvez ja faça parte do folclore local, daquelas coisas em que ninguem acredita mas que todos lá no fundo temem ser verdade, pois isso põe em causa o seu suposto monopólio da razão e da sanidade mental.

Um sapo saltava sobre a areia humida da beira-mar. Salta e coaxava. Coaxava com insistência, como a me desafiar a seguí-lo. Assim o fiz. Sempre houve uma voz cá no fundo de mim a dizer que nunca devemos ignorar a voz dos animais. Uma daquelas vozes que tememos admitir que existem mas que nos seguem para toda a parte.

O sapo levou-me a uma daquelas reentrâncias da falesia onde só se entra na maré vazia. O ar lá dentro era frio e escuro. O coaxar do sapo ressoava pelas paredes fora, dando a ideia que a reentrância ia muito mais longe do que a erosão do mar conseguia alcançar. Segui-o, movida por uma confiança que não sabia de onde vinha mas que me envolvia com um sabor familiar. Entrei na escuridão. A areia voltou a ficar húmida, cada vez mais húmida, os meus pés enterravam-se nela com um som terroso. Comecei a ouvir um barulho vindo lá do fundo, um barulho que a início parecia o zumbido grave de algum enxame sonolento mas depois parecia cada vez mais uma sinfonia de milhares de sapos como o que me levava para aquele lugar. Quanto mais andava, mais o som se tornava nítido. O seu coaxar juntava-se ao deles.

Como era possível? Perdi a noção do tempo mas sabia já estar longe, muito longe da praia.

Como era possível? Pela falésia adentro, escondido do olhar de todos, iluminado pelo fogo-fátuo, abria-se um enorme pântano que parecia abarcar a dimensão de toda a cidade. O ruido era ensurdecedor.

Afinal era verdade. Os loucos não mentiam, ou então eu tinha me tornado um deles. A cidade e a sua selva de complexos turísticos erguia-se sobre um chão oco que ameaçava a toda a hora desabar sobre um abismo pantanoso, onde uma multidão infinita de sapos coaxava ate a exaustão o seu verdadeiro nome. Um nome que nunca ninguem ousou entender nem dizer, porque é impronunciável.

2 comentários: