Há música na América,
meus senhores.
Nunca a ouviram?
Talvez os tambores da guerra
vos tenham roto os tímpanos,
assim como a superioridade moral
vos bloqueou as artérias.
Há música na América,
meus senhores
e é estridente.
Nunca a escutaram?
É a música do desmoronar
das nossas certezas
sob o peso das garantias.
É o som do chacoalhar
dos refegos gordos
da nossa saciedade.
É o eco do caminhar
dos esqueletos que acordam
do longo sono que lhes proporcionámos
nos armários da nossa História.
Há música na América,
meus senhores
e o seu vibrar é ambivalente.
Não o sentiram?
É o hálito agridoce
de um repentino despertar.
É a dor e a delícia
de uma puberdade revisitada.
É a estranheza e o fascínio
de quem vê o seu reflexo com novas lentes.
Há música na América,
meus senhores
e é um canto de sereia.
Não se aperceberam?
É a canção mestiça
que nos recorda
a tentação de Ulisses
e a indiferença a que foi votada
a donzela do mar,
que Andersen fez sacrificar
a própria vida
ao amar o inalcançável.
Há música na América,
meus senhores
e é uma canção pungente.
É a canção da sabedoria intemporal
que força para ser ouvida
entre os brados do auto-contentamento.
É a canção do amadurecer das eras
que tenta transparecer
entre o choro da ingenuidade violada.
Há música na América,
meus senhores,
um cântico dolente.
América,
das filhas dos homens a mais pura,
beija-nos o rosto, tu que olhas fascinada
para o falo com que injectámos o teu corpo virgem
com os nossos devaneios.
América,
das filhas dos homens a mais puta,
abraça-nos ternamente, tu que caminhas desajeitada
nos tacões altos que te emprestámos,
para que a queda seja mais doce
quando o chão se abrir sob os nossos pés.
E que a nossa garganta roufenha remoce
ao juntar-se á tua nesta canção embriagada.
Par ce que oui, Messieurs, Dames,
il y a de la musique
dans l’Amerique,
la merdique.
Bruxelas, Abril de 2004
Há música na América, sim, no mínimo Walt Whitman !... Mas não só !...
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