segunda-feira, 31 de agosto de 2009
Homem "pré-histórico" e homem "civilizado moderno" ou a raiz de todas as separações
"[...] o nosso ser humano amputa-se no que tem de mais profundo e ainda de mais universal e constante ao longo da sua peregrinação terrestre. Dizendo melhor, o homem "moderno civilizado" intenta cometer este antropocídio precedido por um cosmocídio - sem por isso consegui-lo. De facto, o homem moderno ocidental perdeu em grande parte o sentido da sua existência nua e está constantemente agarrado à sua consciência consciente para subsistir; não "vive" senão quando está desperto, nem se crê homem senão quando pensa ou quer mais ou menos conscientemente, isto é, pensando que pensa e observando-se a querer. A vida tem que ser então "propósito", "pro-jecto" e a oração (ponho por acaso) pensamento e volição... Gostaríamos de sublinhar que dissemos "moderno civilizado" e não homem ocidental - que todacia possui raízes muito mais profundas e mais vivas.
O homem primordial está aí, sabe-se homem. Porém, mesmo sabendo-se homem, não cortou ainda assim o cordão umbilical que o une com a terra e com o céu, porque não se sabe homem enquanto separado, coisa que implica a sua segregação do resto do universo. Sabe-se humus, homem que não está desvinculado da terra nem do céu e sabe que não é monarca absoluto da criação. Se por espiritualidade se entende a forma concreta pela qual o homem realiza a sua obra de salvação, a sua plenitude, a espiritualidade pré-histórica identifica-se com a própria vida do homem, toda ela vivida e considerada como um rito, ou seja, como uma acção sagrada na qual o humano e o divino colaboram para fazer chegar o cosmos ao seu destino. A espiritualidade é rito e o rito é a própria vida. Tudo é uma acção ritual e, por este mesmo facto, por nem sequer vislumbrar a possibilidade da existência de uma esfera profana, o próprio rito não se distingue do conjunto de acções comuns da vida corrente. O homem vivendo "faz", trabalha, forja a sua salvação, porque a vida não é outra coisa senão isto: o caminho para a salvação, a oportunidade de chegar plenamente a ser. A questão não é que o homem deva fazer muitas coisas no caminho e entre elas pôr em prática os meios para salvar-se, não é que a religião seja uma de tantas coisas, ainda que porventura a mais importante das que o homem tem que realizar; a questão é que a própria vida é esta realização ou não é nada. A vida religiosa não tem férias nem pausas, como as não tem o coração. Não há períodos de descanso porque não é uma acção justaposta à vida, ao viver, que desgaste e necessite ser reposta, antes é a própria dinamicidade da existência. A adoração, ou seja, a consagração total e rendida à Divindade ou à Realidade, é considerada como evidente e como pressuposto implícito em qualquer acto. Tudo é latria. Lentamente, o céu separa-se da terra na consciência do homem e então começa a subir ao céu o espírito de Deus que flutuava sobre as águas. Aparece o que logo no Ocidente se chamará idolatria e as novas formas religiosas mais ou menos conhecidas. Aparecerão então os Deuses mais ou menos personificados e em conflito entre si e entre os homens.
Mesmo sem o epifenómeno do que chamamos civilização, o homem pré-histórico é plenamente homem e vive toda a profundidade abissal da sua existência"
- Raimon Panikkar, Espiritualidad hindú. Sanatana dharma, Barcelona, Kairos, 2005, pp.64-66.
O homem primordial está aí, sabe-se homem. Porém, mesmo sabendo-se homem, não cortou ainda assim o cordão umbilical que o une com a terra e com o céu, porque não se sabe homem enquanto separado, coisa que implica a sua segregação do resto do universo. Sabe-se humus, homem que não está desvinculado da terra nem do céu e sabe que não é monarca absoluto da criação. Se por espiritualidade se entende a forma concreta pela qual o homem realiza a sua obra de salvação, a sua plenitude, a espiritualidade pré-histórica identifica-se com a própria vida do homem, toda ela vivida e considerada como um rito, ou seja, como uma acção sagrada na qual o humano e o divino colaboram para fazer chegar o cosmos ao seu destino. A espiritualidade é rito e o rito é a própria vida. Tudo é uma acção ritual e, por este mesmo facto, por nem sequer vislumbrar a possibilidade da existência de uma esfera profana, o próprio rito não se distingue do conjunto de acções comuns da vida corrente. O homem vivendo "faz", trabalha, forja a sua salvação, porque a vida não é outra coisa senão isto: o caminho para a salvação, a oportunidade de chegar plenamente a ser. A questão não é que o homem deva fazer muitas coisas no caminho e entre elas pôr em prática os meios para salvar-se, não é que a religião seja uma de tantas coisas, ainda que porventura a mais importante das que o homem tem que realizar; a questão é que a própria vida é esta realização ou não é nada. A vida religiosa não tem férias nem pausas, como as não tem o coração. Não há períodos de descanso porque não é uma acção justaposta à vida, ao viver, que desgaste e necessite ser reposta, antes é a própria dinamicidade da existência. A adoração, ou seja, a consagração total e rendida à Divindade ou à Realidade, é considerada como evidente e como pressuposto implícito em qualquer acto. Tudo é latria. Lentamente, o céu separa-se da terra na consciência do homem e então começa a subir ao céu o espírito de Deus que flutuava sobre as águas. Aparece o que logo no Ocidente se chamará idolatria e as novas formas religiosas mais ou menos conhecidas. Aparecerão então os Deuses mais ou menos personificados e em conflito entre si e entre os homens.
Mesmo sem o epifenómeno do que chamamos civilização, o homem pré-histórico é plenamente homem e vive toda a profundidade abissal da sua existência"
- Raimon Panikkar, Espiritualidad hindú. Sanatana dharma, Barcelona, Kairos, 2005, pp.64-66.
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26 comentários:
Caro Paulo, grato pela oferenda de hoje... Com ela fez-nos recordar que a prática deve ser realizada a todo o momento e não apenas durante os dias de missa ou nas manhãs de meditação... Como escreve Mingyur Rinpoche, a prática formal tem como objectivo carregar as "baterias" que alimentam a prática informal, a tal realizada a todo o segundo e em todo o lugar. Recordo-me de palavras suas afirmando que se pode a meditar mesmo a fazer o pino e isso, creio eu, é tornar a vida num rito, numa afirmação daquilo que verdadeiramente somos: humanos divinos. E se o contrário de afimação é negação, julgo que a negação da vida é ignorar o divino que nós somos, a natureza de Buda que brilha no fundo infundo do nosso ser; negar a vida é não crer que a nossa verdadeira natureza é de amor e compaixão; negar a vida é crer que nascemos para sofrer pois é nossa condição humana estar separado da natureza e do outro; negar a vida é afiar todas as manhãs a espada que nos permitirá derrubar o inimigo e vencer (n)a vida... essa espada pode matar mas não nos mata... Para morrermos desta vida ignorante acredito que há uma outra espada, a espada da sabedoria, empunhada pelo tal guerreiro-poeta por si evocado no post anterior, a espada que dilacera o apego, a aversão e a ignorância, os três venenos que obscurecem a fonte da vida. O mestre Pema Wangyal, no seu belíssimo livro "Diamantes de Sabedoria", fala de um cutelo de lâmina curva manejado por Vajrayogini para que ela rasgue os véus mentais. Esse cutelo tem um gancho numa das extremidades, símbolo de compaixão, gancho esse que lhe permite "resgatar os infelizes que afogam no oceano do samsara". Não será este o rito que é a nossa vida de que nos fala Panikkar? Direccionar tudo aquilo que pensamos, falamos e fazemos como forma de libertação, tendo sempre em mente a libertação de todos os seres? Quando comemos, oferecer os alimentos ao bem-estar de todos os seres; quando bebemos, oferecer a bebida à saciação da sede de todos os seres; quando lavamos os pratos, imaginar que a sujidade da loiça são os obscurecimentos a remover, podendo nós inclusive recitar durante o acto da lavagem o mantra de Vajrasattva... Compor uma música com o desejo de libertação de todos os seres; ir a um espaço comercial repleto de gente e, em vez de sentirmos aversão pelo hiper-consumismo que o lugar nos suscita, praticar o tonglen, recebendo através da inspiração os véus kármicos das pessoas em forma de fumo negro e expirar fumo branco, purificado, para as mesmas... Todos estes actos de entrega ao próximo ajudar-nos-ão a esquecer o ego... E acredito que com a prática constante é possível mesmo um dia libertarmo-nos destas práticas e ser... simplesmente ser. E quando todos os seres forem, "línguas de fogo" destruirão separações, antagonismos, países, fronteiras, raças e espécies... tudo arderá numa grande e cálida fogueira... a fogueira primordial...
Grato por todos os dias nos mostrar quem somos. Abraço primordial:)
HOMO
Apesar dos defeitos que possuo
na minha condição de ser humano,
a acreditar, Senhor, eu continuo
que não Te fui razão de desengano.
Ainda que de barro depurado
seguramente me tivesses feito,
sabias muito bem que, do meu lado,
nunca eu seria, como Tu, perfeito.
Da mais selecta argila, não de lodo,
posso dizer que fui, de qualquer modo,
a obra melhor saída dos teus dedos,
embora Tu soubesses de antemão
que eu Te defraudaria... porque não
existem para Ti... nenhuns segredos!
JOÃO DE CASTRO NUNES
Caro Kunzang, essas palavras é que são uma verdadeira oferenda!
Posso perguntar-lhe se já nos conhecemos pessoalmente, na União Budista ou noutro sítio?
Abraço na Natureza primordial
talvez noutra vida nos tenhamos cruzado... não sei... preciso de me familiarizar mais.
boas cruzadas:)
"grato pela oferenda de hoje" lol
é a eucaristia
Ó FAUSTA, afina o cavaquinho! JCN
Não tens unhas para mim! JCN
Está mais do que provado! JCN
Convence-te de que Orfeus sá dois: o outro... e eu! JCN
Ó FAUSTA, vê-se te enxergas!... Afina o cavaquinho. Não é Poeta... quem quer!
Aqui vai outro "Pedregulho":
AO SOM DA LIRA
Não é Poeta quem quer,
mas quem Deus o entender:
oxalá não pense em mim
para esse efeito, esse fim!
Nem toda a gente que um dia
fez alguma poesia
ou por motivos diversos
fez uma dúzia de versos,
uns rimados, outros não,
consoante a inspiração,
pode chamar-se Poeta
mesmo que longe da meta
dos que nunca morrerão.
Ser Poeta é coisa séria
seja qual for a matéria
da sua composição,
não devendo nem podendo,
segundo aquilo que entendo,
descer ao nível do chão
por qualquer motivação.
Como toda a gente sabe,
ser Poeta é coisa grave,
dada a sua condição
de na casa ser a trave
que segura a construção.
O Poeta deve estar,
em qualquer tempo e lugar,
eminentemento acima
de tudo quanto o oprima
para estar em condições
de levar aos corações
a mensagem da verdade,
que é irmã da santidade.
Não é Poeta quem quer,
mas quem Deus o entender!
Deus poeta não me faça,
não me conceda essa graça,
que para minha desgraça
já me basta o que se passa
na minha longa existência
posta à prova pela ausência
da criatura gentil
que oriunda de Arganil
foi o anjo que me deu
uma entremostra do céu!
Só é Poeta quem Deus
fadou para esse destino,
que é um dom quase divino
só reservadoa aos Orfeus
do mito greco-latino.
Deus tenha pena de mim,
se há-de ser esse o meu fim!
JOÃO DE CASTRO NUNES
Adoro conhecer malucos delirantes!...
Ao seu dispor! JCN
Se adora conhecer malucos delirantes... recomendo-lhe Fernando Pessoa, em todas as suas versões heteronímicas sob o efeito do "bagaço". Quanto ao meu caso, se é a mim que se refere, não aspiro a tanto. Fico pelo Camões! JCN
Já somos três! JCN
E porque não?!... Estaríamos em pé de igualdade. Que maravilha! JCN
Ouve lá este:
SER POETA!
Ser Poeta é ter a alma a descoberto,
a mente sã de cavaleiro andante;
ser Poeta é ter o coração aberto
à presença de Deus em cada instante;
ser Poeta é cultivar um grande amor,
equiparando a Deus o ser amado
a ponto de ver nele, lado a lado,
a projecção do próprio Criador;
ser Poeta é tudo ser, não sendo nada:
luz cósmica de estrelas ou tão-só
astro cadente... reduzido a pó;
ser Poeta é amar de tal maneira ou forma
que, viva ou morta, a criatura amada
em ser divino quase se transfoma!
JOÃO DE CASTRO NUNES
Ouve lá este:
SER POETA!
Ser Poeta é ter a alma a descoberto,
a mente sã de cavaleiro andante;
ser Poeta é ter o coração aberto
à presença de Deus em cada instante;
ser Poeta é cultivar um grande amor,
equiparando a Deus o ser amado
a ponto de ver nele, lado a lado,
a projecção do próprio Criador;
ser Poeta é tudo ser, não sendo nada:
luz cósmica de estrelas ou tão-só
astro cadente... reduzido a pó;
ser Poeta é amar de tal maneira ou forma
que, viva ou morta, a criatura amada
em ser divino quase se transfoma!
JOÃO DE CASTRO NUNES
Ao som do cavaquinho, não vais lá; muda para violino! JCN
Dou-te um padrão:
ESPONTANEIDADE
A vera Poesia não se ensina,
a Poesia faz-se tão-somente
por um imperativo que se sente
ser de raiz ou de índole divina.
Não é produto ou fruto de oficina
sob a batuta de um qualquer docente
porque ser-se Poeta é simplesmente
uma questão de vocação ou sina.
A Poesia pura só se alcança
quando se estabelece uma aliança
do ser humano com a divindade.
Para se ser Poeta é necessário
ter-se um carácter intermediário
entre o talento e a sensibilidade!
JOÃO DE CASTRO NUNES
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