Não importam as madrugadas ausentes no espaço duma vida
A sombrearem de infinito o agora que se estende para além
Nem o que sobra depois da festa de não ter sido
Todas as ruas desaguam no rio da solidão
Porque cada homem é só o que é e nada mais
O que importa é o palpitar do coração
Que mostra que não há dois dias iguais
É a urgência das mãos de desembrulhar o tédio da continuação
A criança que há em nós gosta de receber presentes
Mesmo os ausentes podem reviver pela imaginação
É tudo o que não se deixa possuir o gélido palpitar da terminação
Das horas
E até a mansidão de antes do salto de antes do mergulho no sem fim
Até isso importa mais que o que alimenta a espera
Nem a esfera de aço da autoconfiança a Primavera é só a Primavera
O que importa é o que não se espera a gestação no útero do Inverno
Só vive no inferno quem quer ou quem pode dar-se ao luxo de não se perder
Os sapatos só se gastam porque se acomodam demasiado aos pés
Tudo o que vivemos procura a nudez essencial do que não tem que ser
O nosso entorno é um convés que nos leva ao acontecer
Quem recusa a perdição do naufrágio contenta-se só em viver
E para além disso o amor que será senão uma eterna partida
Não há paragens de autocarro no centro da utopia
Incendeia-se num cigarro o espectro sedento da melancolia
As garrafas vazias vão para o vidrão
A mente alcoolizada sabe a mofo e a papelão
Para onde irá o coração depois de usado
Não que isso importe nem a vida nem a morte
Nem a sorte que nos calhar
Se calhar só importa o que se suporta sem se suportar
Os armários cheios dos restos dos anos passados
Os nossos escafandros de ir ver gente
Almas depenadas da necessidade de parecer diferente
Os encontros e desencontros com cheiro a naftalina
Nem pasto das traças pode ser o que é pretérito
Tão cheio de vazio está o que não é pleno
Nem as formigas se aventuram pelos interstícios da vida domesticada
Só resiste à putrefacção o que nunca valeu nada
E os edulcorantes só adoçam falsamente
Só precisa de céu quem sempre acreditou na escuridão
Só sabe de paraísos quem busca a consolação
Nada é permanente e mesmo a permanência é transitória
Uma vida bem vivida não tem história
Mesmo que se beba mais chicória do que café
Por causa do medo dos ataques do coração
7 comentários:
poema rebelde. insurrecto. filosófico. para (re)ler com calma.
Que mania nós temos de categorizar as coisas... Se ele for rebelde deixa de ser conformista? Se ele for filosófico deixa de ser prático? E se ele (não) for ambas as coisas? Poema para ler e esquecer pois tudo é esquecimento e nada é lembrança.
Paulo
gostei
"a criança que há em nós gosta de receber presentes"
um abraço grande
Kunzang: desconcertas-me.
E sonhava eu um dia vir a ser um grande concertista...
Sorriso ...
"Em cima, o riso eterno da Ilusão;
Em baixo, a eterna Lágrima ilusória"
Teixeira de Pascoaes
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