Por mediação de Paulo Borges fui convidado a participar na Serpente Emplumada. Espero poder contribuir com algum interesse desde terras galegas. Em Vigo chamam-nos aos corunheses de turcos ( e não me perguntem a causa porque a desconheço). Como corunhês apresento aqui un poema de um turco-galego, Rustam Çiçec, cuja mãe era a filha do embaixador espanhol em Istambul, por acaso galego. Ela tinha-se apaixonado perdidamente de um pintor oriundo de Kónia, fugindo com ele para Londres antes de voltarem ambos de novo à região de Anatólia onde nasceu Rustam Çiçek.
De facto Ali Rustam Çiçek ( Kónia,1918 – Istambul,1978) é um grande desconhecido, mesmo no seu próprio país, pois não deixou uma obra de publicação regular. O único livro publicado em vida foi numa tiragem de pouco mais de mil exemplares, muitos do quais foram queimados pela repressão kemalista. O seu título: “Velas, âncoras e lábios” era uma reivindicação absoluta da liberdade individual através do amor, levando a poesia turca além do formalismo e do decadentismo de influência persa. Compartiu cela com Nazim Hikmet, de quem parece ter recebido uma clara influência, ainda que ele nunca militou nem compartiu as suas ideias comunistas. Sempre considerou a Hikmet como alguém que estava muito acima da sua própria ideologia.
O poema que aqui apresento traduzido, graças à versão francesa de Gilles Fauquier, foi publicado numa revista de príncipios dos anos setenta e é um dos últimos poemas escritos pelo autor. Realmente há um derradeiro poema intitulado “Adeus amigos, adeus poemas” que deixou escrito numa Chaikana um mês antes da sua morte
A tradução é bastante livre, ao ponto que me permiti certas piscadelas referenciais com a tradição galega e portuguesa, que alguns amigos identificarão sem dificuldade. Isto com o propósito de permitir um jogo intertextual que radique o poema, assumindo de algum jeito uma recriação.
Direi-lhe ao passeante:
para a verdade há uma noite escura,
darei-lhe uma galáxia
(Sohrab Sepehrí)
Interrogativa, enunciativa , conjuntiva e de relativo.
O sol dormido no ventre da criança
avança pálpebra a pálpebra lisonjeiro.
Sabes, filho, a ledice dos astros
as faíscas perdidas
do gato da lua
do grilo insone da lua?
Sabes, meu filho, o que se demora o amor nas tardes
em que um mendigo exculpa a palavra aziaga?
Como uma sombra
em que caminho sem temor e rumo
vacilante e agudo e, quiçá,
subtil.
A corda do amor e da tarde do amor
pelas estradas como
cão vadio de desertos e vozes
(- Animal de luzes e silêncios vivos
pirilampo dos astros
rei oculto das navegações
- levanta-te e anda!)
Mas ela está aí!, eu a sinto
Bela mendiga de olhos de amêndoa
Página do amor enfebrecida
Que canta
Que baila
Que vibra
Que se extende de mão a mão
Que é lágrima de vento e árvore
Contida!
E ouço o grito estilhaçado da estrela
mais antiga
caminhando na rua de carvões
de vinho
de solilóquos e buzinas
de chumbo e ouro
E o canto dos pássaros cegos
e a voz dos que nobremente sofrem
e os supiros
e os homens
e os não homens
e o cão
e o gato
da lua pálida e antiga
neste dia em que esqueci meu nome
Caminho cego
Mas intuo esta galáxia viva
A formarem-se no peito
(A mendiga descalça de olhos de amêndoa ...)
E não me iludo, pois hoje, meu amigo,
as minhas mãos têm a idade do universo
e tenho frio
e froto as mãos contra as mãos
eu
o mendigo prehistórico
e futuro.
As mãos
a cabeça entre as mãos
e o mar amarelo e febril
para ti e para mim
para ti e para mim
Amor
Velha melodia do pássaro cego
que voa no mar amarelo
Que se perde no labirinto da mais
velha avó
cozinhando a vida futura!
Ai!, a vida futura!.
(Que fartura!)
E caminho de ritmo vadio
A falar com o grilo que caiu da lua
- Senhor tal e qual, como lhe vai?
- Bem, mal, regular.
Sim , para a verdade há uma noite escura
Uma noite de luminoso negro
De luto puro
Singelo
Para ti
Para mim
Para o orfebre namorado da cigana
Que sei eu?
Para o que mentiu cem vezes
Para o que caiu
Para o humilhado
Para o ofendido
Para o que humilharam
Para o que ofenderam
Para o que matou
Para o que foi matado
Para o que morreu
Para o que foi morrido
Ai!,
meu Deus
meu Deus!
Que sei eu?
E o sol acorda no ventre da criança
E sorri.
http://olevantadordeminas.blogaliza.org/category/anotacions-de/jose-antonio-lozano/
6 comentários:
Bem vindo, Chiqui ! E obrigado pelo grande poema ! São fascinantes, estes filhos de cruzamentos de culturas diversas, sobretudo dos extremos da Europa...
(não será possível limpar aquelas linhas estranhas entre as estrofes ?...)
Uma pergunta:
Um só mestre e muitas falas
Ou vários mestres e uma só fala?
Lindíssimo ... Pacereu-me ouvir o eco de Aynur a cantar o "Ehmedo" ... que tanto lembra o "Ansiedade" e outros fados ...
http://www.youtube.com/watch?v=XgcJfYlA6d0
Sou uma grande admiradora da Turquia e da sua cultura. Uma das minhas melhores amigas é Turca e apresentou-me a poesia e a música dos Judeus Portugueses e Espanhóis que se refugiaram em Constantinopla.
É com esta troca cultural entre os extremos Ocidental e Oriental da Europa que resistimos ás pressões da "American Way of Life" aqui na Nova Inglaterra...
Falando de cruzamentos entre os extremos da Europa: Que é feito do Miguel Gullander?
Tenho comunicado com ele por E-mail e ele está bem. Espanta-me qua ainda não tenha publicado nada por aqui. Mas como ele acabou de ser tio, talvez esteja inebriado pela paixão pelo seu sobrinho e que apareça por cá depois, com ainda mais inspiração do que antes ...
Acabo de ler os vossos comentários. Muito obrigado, amigos. Agora não posso responder com vagar. E verei se posso tirar essas linhas estranhas. Magia da informática?
Paulo, estou muito feliz de andar por cá. Espero que os meus contributos, esporádicos e ocasionais, sejam úteis para esta nossa tarefa comum de aprenderem a ser autênticos seres humanos. Quanto aos extremos: eles tocam-se, diz um refrão!
Obscuro,
mas claro nas perguntas!. Eu penso que um mestre tem que falar várias falas e dialectos. Como dizia Nietzsche: para ter estilo é preciso ter estilos. Não há o estilo em si.Da mesma maneira, vários mestres são um só, uma voz única, em harmonia. Há muitos caminhos e ao mesmo tempo um único caminho.
Há uns quinze anos encontrei com o Herberto Helder numa taberna. Ele perguntou-me por um poeta peruano, Cesar Vallejo, cuja voz não era claramente identificável, no sentido de que não se advertiam as influências de uma tradição literária específica como costuma acontecer habitualmente. Eu respondi-lhe que era a voz do indígena. A sua mãe era meio indígena e isso marcara-o muito. Através da sua escritura surgia uma inflexão que forçava o espanhol de jeito único. H.H concordou. (Por certo, um homem extraordinariamente amável, tímido e delicado)
Mas todos somos indígenas e deveriamos reconhecer essa voz em nós.
Ana, que bela canção de Aynur. Os judeus sefardis têm umas cantigas e romances belíssimos. Joaquín Diaz, na Espanha (ele é castelhano) fez umas recopilações fantásticas de toda a cultura sefardi. É pena que não encontrei nenhuma delas em Youtube
Como dizemos os galegos, uma forte aperta!
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