O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


domingo, 24 de fevereiro de 2008

estar sempre a partir




nada se detem
o rio é interior
e arrasta árvores de raízes rasgadas
e cadáveres de crianças que já foram
labaredas de alegria e contentamento
e sonhos
mesmo os mais acalentados nos dias de desilusão
quanto mais os cravamos na dureza da terra
mais eles mergulham na corrente da noite que trazemos no coração
mais os dias são desgarrados e pesados
mais a vida é a margem onde se acumulam destroços e coisas inúteis
trazemos o mundo todo desmantelado e apodrecido
no lado de dentro dos olhos
onde o mar não é mar
e a noite é ter os olhos fechados
e o deserto é sentir a pele desistente por dentro
a boiar turvamente na lentidão das horas
por isso
pássaro
rumo ao reverso do entardecer
pássaro urgente
pássaro todo
sem interioridade
e o sol será essa queimadura de não conhecer fronteiras
essa alucinação de não ter que sim nem que não
para quê mais do que isso?
pássaro-me
e do avesso
o mundo que visto
parece sempre novo
e isso basta
para que as torradas todas as manhãs me saibam ao mesmo
o sabor da manteiga não se desgasta
e as flores na berma da estrada são sempre iguais ao que são
e o mesmo que nunca fui
não pode ser exilado
da terra a que pertence

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