O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Antologia do Padre António Vieira - I - Espiritualidade

“Cuidamos que o céu onde subiram os santos está muito longe, e enganamo-nos: o céu não está longe, senão muito perto, e mais ainda que perto, porque está dentro de nós, e dentro do que está mais dentro, que é o coração. E que haja almas, e tantas almas, que tendo o céu dentro de si na vida, fiquem fora do céu na morte; e que podendo tão facilmente purificar o coração, e ser santas, só porque não querem, o não sejam ?” - Sermão de Todos os Santos, S, IX, p.68.

“As cadeiras das universidades, ainda que sejam de teologia, de leis, de Cânones, todas são de medicina, porque todas se ordenam à saúde pública. E que seria se os catedráticos da saúde se trocassem em catedráticos da peste: In cathedra pestilentiae ? Pois saibam que tais são os que, tentados da ambição, da lisonja ou do temor, em lugar de desenganarem com a verdade aos príncipes que os consultam, se deixam enganar do seu ou de outros despeitos, e o que eles desejam ou pretendem, isso respondem que é justo. […] E por esta perversão das letras e dos letrados, as mesmas universidades e cadeiras donde havia de manar a saúde pública, vêm a ser o veneno, a ruína e a peste dos reinos: Cathedra pestilentiae” – Sermão de Santa Catarina [1663], S, IX, pp.164-165.

“Logo há doidices falsas e doidices verdadeiras ? Assim é. […] As falsas, são as dos doidos que seguem a vaidade: Vanitates, et insanias falsas: as verdadeiras, são as dos doidos que seguem o contrário da mesma vaidade, que é a verdade. Mas se seguem a verdade, porque são doidos ? Porque toda a doidice se opõe ao uso da razão diferentemente. Os excessos dos maus obram contra a razão, e por isso são viciosos e vãos: os excessos dos Santos obram sobre a razão, e por isso são sólidos e verdadeiros. Uns e outros doidos nesta grande casa de loucos, que é o mundo, têm o seu hospital separado: o dos Santos está nos arrabaldes do Céu, para onde sobem; o dos maus nos arrabaldes do inferno, onde se precipitam: uns e outros andam fora de si como doidos: os maus fora de si, porque se buscam; os santos fora de si, porque se deixam” - Sermões consagrados à glorificação de S. Francisco Xavier, VII, Doidices, S, XIII, p. 278.

“Tais foram as doidices de [S. Francisco] Xavier. Não seguiu a Regra do seu Instituto, que citámos no princípio, mas todo se formou e transformou naquele grande apotegma do mesmo Santo Inácio: Insaniendum est, si vis esse perfectus: Hás-de te fazer doido, se queres ser santo. Ele o disse, e foi tão santo e tão doido, que se Deus pusera na sua mão a escolha, ou de ir logo para o céu, ou de ficar neste mundo servindo aos próximos com risco de sua própria salvação, tinha assentado consigo de escolher este segundo” – Sermões consagrados à glorificação de S. Francisco Xavier, VII, Doidices, S, XIII, p.288.

“[…] a oração mental. No meio do ruído da corte, e dos concursos do paço, recolhia-se sua majestade por muitas horas ao seu oratório como a um deserto e ali, levantando o espírito sobre todas as coisas cá de baixo, ouvia da boca de Deus, no silêncio da contemplação, aqueles altíssimos desenganos, e via, no espelho da eternidade, aquelas claríssimas luzes, em que o tudo e o nada são da mesma cor: em que o tudo e o nada têm a mesma conta; em que o tudo e o nada têm o mesmo peso; em que o tudo e o nada têm as mesmas medidas; e por isso nenhuma mudança ou variedade das coisas humanas lhe alteravam o coração, tendo-o sempre unido com a vontade divina. E como nesta união da vontade humana com a divina consiste a suma da santidade, e a santidade suma, […]” – Palavra de Deus Empenhada no Sermão das Exéquias da rainha D. Maria Francisca Isabel de Sabóia, S, XV, p.329

" [...] tudo o que não é ser Santo, é não ser [...]" - Sermoens, IV, p.136.

5 comentários:

Anónimo disse...

Se "tudo o que não é ser Santo, é não ser", quem é que pode dizer que existe !?...

Paulo Borges disse...

Na verdade, se ser santo, segundo Vieira, é ser plenamente conforme à vontade divina, e se em Deus a vontade e o ser coincidem, pois só quer o que é e é o que quer, ser santo é estar plenamente unido a Deus, ao Infinito, ao que é. Não estar nesse estado, é não ser em absoluto...

Anónimo disse...

E estar nesse estado, será ainda "ser" ?...

Ana Margarida Esteves disse...

Lembro-me que, ao admirar as árvores do Pantanal Brasileiro em certa noite clara, iluminada por guitarras e vaga-lumes, desejei que as árvores e os vaga-lumes o não fossem. Tinha a impressão que as suas formas apenas deixavam adivinhar "Algo" para além delas, e que o próprio facto de terem forma, por muito bela que fosse, aprosionava essa energia, não a deixando expressar-se no absoluto da sua beleza.

Mas essa é a natureza da dimensão em que vivemos e morremos. A beleza indica-nos o caminho do Trancendente, mas logo se torna prisão do Transcendente se não soubermos transcendê-la.

Anónimo disse...

Haverá dimensões reais de alguma coisa ou apenas mentes com percepção condicionada, mas susceptível de o não ser ?...