Alimento-me do pouco que cultivo e dos ratos e outros bichos que consigo apanhar. Ao lado da casa há uma romãzeira que dá frutos todo o ano. São as romãs mais doces e frescas que comi na minha vida, e a sua cor é a mais madura. Mais ao fundo, descendo um pouco, há o poço de que me sirvo para me lavar, beber água e regar o horto. Por vezes tenho medo que seque. Talvez um dia, quando a montanha já nada contiver nas suas entranhas: nem água, nem ouro, nem a vertigem da sua altura. Então saberei que chegou a minha hora de morrer. Há muito que tenho a corda atada à romãzeira para quando esse dia chegar.
Neste instante há um avião que passa sobre a montanha, deixando no céu um indício branco de fumo. É o indício da morte e da destruição. Agora é o estrondo da bomba. Agora é o sobressalto que irrompe e me rasga desde as veias. Agora são as sirenes. Agora é o silêncio curvado. Nunca me habituarei a isto.
Dizia: espera-me a morte súbita num bago incendiado de romã, a aridez da montanha, o balancear do corpo ao ritmo das elegias que o louco murmurava obsessivamente ao cair da tarde e pela noite dentro. Esperam-me os abutres e os ratos que não conseguir comer. Espera-me o frio e a guerra lá ao longe, depois da montanha, ou um sossego muito íntimo e avassalador. Então, todos os frutos cairão e a árvore secará. Então, será inverno eternamente dentro e fora da casa.
Do outro lado da montanha sei que há pessoas que sofrem e que morrem. Já as vi, a essas pessoas, muito antes de chegar aqui. Trazem equinócios colados aos rostos, um caminho maior dentro dos passos, dois olhos muito fundos com precipícios dentro e um cutelo atrás das costas, preso pelo cinto. As mulheres guardam ciosamente o segredo do seu corpo com túnicas e tecidos negros, têm o dom da maternidade e envelhecem muito cedo dentro da sua sabedoria milenar. Os homens, como os homens de todo o mundo, têm o ofício de aprender a morrer apenas conhecendo o ódio e o amor.
Tudo isto eu conheci, e só então me ausentei. Andei pelas cidades destroçadas deste país, pelas vilas, pequenas aldeias e seus fontanários, por vielas, estradas de terra batida pelo tempo, os pastores no campo, as cabras, a erva rasa, o orvalho pela manhã, tudo isso eu aprendi depois de ter conhecido os homens. Andei pelas avenidas de Bagdad, pelas praças manchadas de sangue, pelas ruas, pelas margens dos rios, pelo espaço perdido deste país. Calcorreei todas as suas vias de cajado na mão e alforge pelas costas, guardando o pão duro e as azeitonas do sustento. Fui muito calado por esses caminhos, sentindo o trabalho do silêncio na orla da minha voz. Vi muitas coisas. Vi a paisagem mudar tantas vezes, os meses sucederem-se na minha pele e na crosta das árvores, vi o céu mudar de cor, as sombras serem tão perfeitas e indomáveis, abarcando tudo, vi as minhas mãos fecharem-se tantas vezes sobre um punhado de areia, e aprendi que isso estava certo, que tudo isso se encaixava numa ordem anterior sobre a qual os nossos dias se sucediam e se esbatiam.
Num bar de uma província do norte, um velho marinheiro de um país longínquo falou-me deste lugar, do louco que aqui viveu, da romãzeira, da doçura das uvas, da imensa loucura, de como ouviu tudo isso da boca de um ancião, quando, há muito tempo, desembarcou perto daqui para não mais regressar à sua terra de solidão.
Foi então que parti, seguindo ao acaso, detendo-me apenas para dormir sobre os trevos nas encruzilhadas. Todos os caminhos vão lá dar de alguma maneira, disse-me o bêbado, e será caminhando que encontrarás o teu destino. Assim errei longamente, conhecendo tudo, aprendendo sobre todas as coisas que doíam nos homens.
Até que, numa madrugada de névoa, vi aparecerem as giestas, primeiro, e logo depois o solo inclinou-se. Nesse momento comecei a subir a montanha. O nevoeiro não deixava ver para além do espaço onde pousava os pés, mas eu subia e era cada vez mais leve. Nesse tempo a guerra estava nos nossos corações e fazia-se entre irmãos. Mas eu subia e era muito livre, e ao mesmo tempo que subia, pensava em como era muito só e subia muito alto, para além das vinhas, e ainda mais leve, os meus passos apagavam-se na areia fina e o nevoeiro dissipava-se. Apareceu o horto, o poço, o banco de pedra improvisado onde agora me sento, a casa muito branca, envolta em silêncio. E só depois, muito mais perto, avistei a romãzeira, os frutos secos, as escarpas frias, o exílio e o desterro balançando, o louco dependurado por uma corda atada ao ramo mais grosso da romãzeira.
Fecho as portas, cerro os postigos, a noite desprende-se dos fios luminosos da lua. Estende-se, avança pelo céu até unir todos os espaços numa única sombra pura. Recolho assim aos meus aposentos. Hoje não deve vir mais nenhum avião. Ainda assim a cidade está silenciosa, esperando. É em noites como esta que, por vezes, surge o poema dentro da minha cabeça. Sento-me na cadeira que está na cozinha, pouso os braços sobre a mesa e forço o poema à sua quietude muda, como uma ave pairando sobre um desfiladeiro. Essa é a imagem da sua terrível beleza, a obsessiva vertigem da sua língua transparente desafiando os desígnios de deus.
A casa tem quatro divisões. Uso apenas duas: a cozinha e o quarto. Tudo é pobre e artesanal. Calculo que tenha sido o louco a construir todos os móveis e a trazer todos os objectos. Na cozinha há apenas uma mesa, uma cadeira e uma espécie de móvel por polir onde guardo os utensílios de comer – um prato, um conjunto de talheres e o que resta do copo que parti ao lavar. Há ainda toalhas de linho que mantenho sempre limpas, uma bacia e, a um canto, o aprovisionamento de velas que o louco deixou em abundância. Sobre a mesa existe um aquário onde mantenho o peixe vermelho que encontrei no poço, quando cheguei. Às vezes penso que a trajectória do seu vaguear esconde algum enigma. Então ponho-me a tentar decifrar os símbolos que desenha dentro da água. É uma das formas que encontrei de passar o tempo e de enganar o medo.
A porta de entrada dá para a cozinha e esta para duas outras divisões. Apenas a cozinha e o quarto têm janelas. O postigo do quarto está guarnecido de um reposteiro que fiz com uma das túnicas que trazia comigo. Espetei um prego em cada um dos cantos do topo e pendurei a túnica. Quando o sol incide e o reposteiro está cerrado o quarto adquire uma sacralidade íntima. Na extremidade oposta à da janela está a enxerga. Ao lado, um pequeno móvel onde pouso o castiçal e uma concha com água para a sede nocturna.
Contíguo ao meu quarto fica outro compartimento onde nunca entro. Está coberto de estantes e, alinhados, centenas de livros, milhares de livros. Ao centro está um banco. Este e o da cozinha são os únicos em toda a casa. Quando cheguei, este aposento despertava-me curiosidade. Passei horas e horas folheando os livros que não sabia ler, esperando encontrar um que apenas contivesse gravuras de paisagens ou outros signos de igual beleza e horror. Mas cedo percebi que em nenhum dos livros eu encontraria as respostas que procurava, só letras, caligrafias imprecisas que não decifrava. Desde então nunca mais lá entrei, nem mesmo quando por vezes, à noite, ouço um roçar do que suponho ser uma pena sobre uma folha de papel.
Há ainda uma outra divisão, mas à qual não se tem acesso pelo interior. Tem uma entrada do lado direito da casa, onde em tempos esteve um portão. Quando cheguei, esse portão estava caído. Foi essa a minha primeira fonte de lenha quando o frio se instalou e a neve revestiu toda a montanha. Essa divisão é o antigo estaleiro onde o louco guardava os instrumentos da vindima: os lagares, os tonéis e os odres onde deixava o vinho a fermentar e a ganhar idade para adquirir a aveludada sumptuosidade de que me falaram naquela taberna.
Hoje o estaleiro está sujo e abandonado, e as ferramentas da poda estão enferrujadas e ressequidas pelo envelhecido mosto das uvas virginais.
Quando cheguei perto do louco, que balouçava vagarosamente, impelido pela leve brisa de Março, um avião rasgou o céu com o seu estertor mecânico. Pouco depois uma bomba explodiu. A verdadeira guerra tinha começado.
O sol já se havia posto. A noite percorria o seu labirinto lúgubre, espalhando os seus incêndios de bronze. O louco olhava para mim, do alto da sua loucura árida. Morria-me nas mãos o seu corpo morto. No seu peito um grito contido, um incêndio fulgurante. Aproximei-me, encostei o meu ouvido à sua boca. E então, como se perdidamente iluminado, o poema formou-se pela primeira vez dentro da minha cabeça como uma verdade original refulgindo na lâmina de um horizonte cego.
Voltei-me, entrei na casa, encontrei no escuro uma faca e peguei no banco. Nesse momento, lá em baixo, do outro lado da montanha, havia pessoas a sofrer e a morrer devastadas pelas carícias de uma guerra. Eu pegava numa faca e num banco para soltar o dependurado, precipitado na sua ruína.
De novo ao relento, olhei para o louco. Debaixo dele crescia uma pequena túlipa vermelha. O tronco onde a corda se achava enrolada rangia. A imagem do reflexo da lua iluminando os contornos do seu corpo e as rubras pétalas da flor gravou-se-me fundo na alma como uma bala de prata. Sabia que tinha encontrado um lugar de abismo, um lugar de precipício onde continuaria a cair até escutar um ténue violino ressoando de muito longe, da superfície de um mar distante ou de uma seara de ouro tremeluzindo ao vento. Sabia que aqui ninguém me encontraria a não ser a fome, a febre e a melancolia, e essa leve imagem de uma brutal pureza.
Esse era o dia do meu recomeço. Cheguei perto do louco, inclinei-o para trás para que não caísse em cima da flor, e cortei a corda. O seu corpo caiu com um baque profundo que fez abalar a montanha desse a sua raiz. Assim que o tremor parou, a túlipa murchou. Foi nesse instante, ao mesmo tempo que dezenas de bombas devastavam Bagdad, que eu comecei a enlouquecer.
A guerra continua. Eu continuo a enlouquecer. Há muito que comi todos os pedaços do corpo do louco. Foi tudo o que comi durante duas semanas: o seu corpo e a água que retirava do poço. Depois enterrei os ossos ao lado do estaleiro.
Então, comecei a tratar do horto todas as manhãs, regando e cavando. Foi assim que a minha pele começou a secar e a enrugar. À tarde vou caçar os pequenos ratos e outros animais que aqui vivem. Nunca me atrevi a matar nenhuma águia, a senhora da montanha. A ela sacrificava as romãs mais altas, bebendo o seu sumo.
Por vezes recordo aquele velho marinheiro de um outro país e a sua voz de marés violentas e corais ensanguentados. Sinto-me agradecido. Foi ele que anunciou o local da minha salvação e da minha morte. Aqui cheguei, numa noite de nevoeiro, sob uma lua de alvura. E aqui permaneço, pelos dias e pelas noites.
A casa está cada vez mais gasta e eu estou velho e cansado. A água e o ouro estão a secar no seio da montanha, as romãs estão cada vez mais maduras e fora de estação. Sei que se aproxima o fim de um ciclo para das entranhas apodrecidas da montanha recomeçar tudo de novo, quando um outro homem voltar a pisar esta terra compacta e me desprender da romãzeira. Não me importo. É a ordem natural das coisas. Mas se ao menos houvesse maneira de perpetuar o poema que, em noites como esta, se forma na minha cabeça.
14 comentários:
Magnifico ... Qualquer semelhança com "Assim Falava Zaratustra" é mais do que mera coindicência.
Estou verdadeiramente admirado da qualidade poética deste blogue. Mensagem tras mensagem fico sem palavras. Um forte abraço, amigos.
João...sei que vai perceber:
"Depois de termos feito da morte uma afirmação da vida, convertido o seu abismo numa ficção salutar, esgotados os nossos argumentos contra a evidência, ronda-nos o marasmo: é a desforra da nossa bílis, da nossa natureza, desse demónio do bom senso que, quebrado por um tempo, volta a acordar para denunciar a inépcia e o ridículo da nossa vontade de cegueira (...) Porém, devemos aprender a pensar contra as nossas dúvidas e contra as nossas certezas, contra os nossos humores omniscientes; devemos, sobretudo, forjando uma outra morte, uma morte incompatível com os nossos cadáveres, aceitar o indemonstrável, a ideia de que alguma coisa existe...
O Nada era, sem dúvida, mais cómodo. Como é difícil dissolver-se no Ser!" Cioran, A Tentatção de Existir, p. 185
O poema vai perdurar, como os textos, na exaustão dos dias, e porque em si isso não é uma escolha. O texto impôs-se contra todos os anteriores reparos. Que ritmo às vezes já consegue na sequência mais breve, soprada...é por ouvir e estar nas orlas. Nas orlas também nos dissolvemos. Pressinto que começo a entender esta cidade bombardeada e irei lá visitá-lo, depois dela, às montanhas, e levar um segredo. Conversaremos enfim com os anjos de Rilke ou os demónios de Holderlin. Não me esquecerei das romãs e das uvas e faremos o banquete; travaremos o diálogo. O Diálogo da Montanha. Pois devo levar Celan e Sete Rosas Mais Tarde. Vou abraçar o poeta que vi menino...e dançar com ele ao som dos pássaros que conhece melhor do que eu. Mas vou chegar tarde, como sempre.Bagdad então!
*****
Ana Margarida Esteves,
Parte um: Já tenho saudades de convosco voar em desafios tão altos que me fazem vertigens. Ora vamos lá desafiar os céus: «Viemos tarde demais para os deuses e cedo demais para o Ser.»
___________________
(nome do filósofo)
Parte dois:
A maior pedra de toque ("d'achoppement"; tropeção? de impulso?) da nossa disciplina espiritual é a de que na realidade o que importa é não desembaraçar-se do eu, mas sim, dar-se conta de que, afinal, não há, à partida, tal existência.»
(Merton, T.)
Saudações calorosas
Caro obscuro,
Se me permite uma sugestão:
Pierre d'achoppement traduz-se como obstáculo, dificuldade, resistência. Verdade seja dita que é difícil acertar, a olho nu, com o valor exacto da força necessária para remover obstáculos. A maioria das vezes exageramos com a força e disparamos a alta velocidade em linha recta. Será isso a que chama impulso? Espero que depois de arrombar a porta entre disparado na sala certa! Seja lá com Martin Heidegger, Thomas Merton ou até com o fantasma de John Simon Ritchie.
Quando fizer o striptease da burka seria simpático mandar convites :))
Obrigada, João Moita. Lindo.
Cara Ana Moreira,
Será que noto algum vestígio de sentimento negativo na sua resposta??...
Acabei de reler o que escrevi e reparei que se poderá captar, com sensibilidade fina, como parece ser o caso,uma ligeira possibilidade de haver ironia nas minhas palavras.
Não fui suficientemente claro, parece... na minha expressão.
Mas a Ana compreendeu o alcance das palavras, não o da intenção, que não é outra que a de exercitar o pensamento e poder navegar livremente num blogue livre.
Aí não há necessidade de retirar a burka. Para o caso, de nada serve...
Como diz o Nuno, muita paz!
Cara Ana Moreira,
Já agora, como também gosto de charadas, dou a solução para a primeira parte do desafio proposto pelo Obscuro à Ana Margarida (que deve estar de beicinho...): ACERTOU!!!
A sala é a de Heidegger, a de Thomas Merton e a do fantasma de John Simon Ritchie e, já agora, a do fantasma de Heidegger e a de Merton.Todos mortos-vivos a visitarem-nos de quando em vez.
Em ficção,o jogo de espelhos,as burkas (máscaras)que retiramos e colocamos, nunca ficam presas ao rosto. Já que não há um rosto ao qual se colem.
Morrer velho como Heidegger, electrocotado e de meia-idade como Merton ou jovem viciado enquanto dorme, não faz assim tanta diferença...
Afinal, isto não é um jogo de onde à partida todos saimos derrotados?
Do outro lado do tabuleiro não está quase sempre o mesmo obscuro parceiro?
Quem lhe conhece o rosto?
Um jogo de onde ninguém sai vivo. Um jogo mortal?
"O nome transfigura as cousas. O sonho humano alastra, como será o Mundo sem esta máscara que lhe pusemos no rosto? Sem esta mentira que lhe introduzimos no coração? E que seria do homem despido do seu nome na sua nudez absoluta?"
O Homem na sua nudez absoluta
seria inominável, seria tomado de um medo metafísico e pavoroso, veria com os olhos da alma, diante de si mesmo, a ilusão de tudo.
Até que algum anjo lhe dissesse ao ouvido, se para isso estivesse preparado as palavras: «Neóphito, não há morte.»
O texto que gerou estes comentários
está bem escrito. Parabéns ao seu autor!
As sabatinas também estão boas.
Ooops, o obscuro que me desculpe, so agora vi este desafio.
Que venham outros, por favor:-)!
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