(…) Como pois se ria ou podia rir-se Demócrito do mesmo mundo e das mesmas coisas que via e chorava Heraclito? A mim, senhores, me parece que Demócrito não ria, mas que Demócrito e Heraclito ambos choravam, cada um a seu modo. Que Demócrito não risse, eu o provo. Demócrito ria sempre; logo, nunca ria.
(…) O riso, como ensinam todos os filósofos, nasce da novidade e da admiração; e cessando a novidade e a admiração, cessa também o riso. Por isso, quando vemos uma figura ridícula, ou então ouvimos algum dito engraçado e faceiro, rimos de princípio; mas uma vez dada vazão àquela primeira surpresa, uma vez que cessa a novidade, cessa ao mesmo tempo o riso; e como Demócrito se ria dos ordinários desconcertos do mundo e do que quando sai de casa sai rindo, sendo sem controvérsia, já o que é comum e vulgar não pode causar nem admiração nem novidade, depreende-se, como consequência, que, se ria sempre, nunca ria, e aquilo que parecia riso, de facto não era riso.
(…) Já disse que era pranto, e que Demócrito chorava, embora de modo diverso do de Heraclito. Varia só a maneira de chorar: há chorar com lágrimas, chorar sem lágrimas e ainda chorar com riso. Chorar com lágrimas é sinal de dor moderada; chorar sem lágrimas é sinal de maior dor; e chorar com riso é sinal de dor suprema e excessiva. (…) A dor moderada solta as lágrimas, a grande dor as enxuga e as seca. Dor que pode sair pelos olhos não é grande dor; por isso não chorava Demócrito. E como era pequena demonstração da sua dor não só chorar com lágrimas, mas ainda sem elas, para declarar-se com o sinal maior, sempre se ria.
(…) A mesma causa, quando é moderada e quando é excessiva, produz efeitos contrários: a luz moderada faz ver, a excessiva faz cegar. A dor, quando não é excessiva, rompe em vozes; a excessiva, emudece.
Desta sorte a tristeza, se moderada, faz chorar; se excessiva, pode fazer rir. No seu contrário temos o exemplo: a alegria excessiva faz chorar e não só destila as lágrimas dos corações delicados e brandos, mas ainda dos fortes e duros. (…) Pois se a excessiva alegria é causa de pranto, a excessiva tristeza não será causa de riso? A ironia tem contrária significação do que soa: o riso de Demócrito era ironia de pranto; ria, mas ironicamente, porque o seu riso nascia de tristeza e também a significava; eram lágrimas transformadas em riso por metamorfose da dor (…).
(…) Os olhos poderão queixar-se desta minha filosofia mas, acho eu, sem razão, pois o pranto vem da dor provocada pelo batimento nas mãos e, se se reflectir, vê-se que os olhos não são necessários à capacidade de falar. (…) E se choram as mãos por que não há-de a boca chorar? Heraclito chorava com os olhos; Demócrito chorava com a boca; o pranto dos olhos é mais fino; o da boca mais mordaz.
(…) Demócrito ria porque todas [as coisas humanas] lhe pareciam ignorâncias; Heraclito chorava porque todas lhe pareciam misérias; logo, tinha mais razão Heraclito para chorar do que Demócrito para rir, porque neste mundo há muitas misérias que são ignorâncias e não há ignorância que não seja miséria.
(…) E como nem todas as misérias são ignorâncias e todas as ignorâncias são misérias, e as maiores misérias, muito maior matéria e mais razão tinha Heraclito de chorar que Demócrito de rir, antes digo, que só Heraclito tinha toda a razão e Demócrito nenhuma.”
3 comentários:
E com este texto de Vieira bem passamos do Carnaval para a Quaresma ! Momento a meu ver fundamental, até para que continue a haver Carnaval...
Porra, que texto lindo.
Há um filme muito giro a respeito deste tema chamado "O Feitiço do Tempo" (Groundhog Day). Quando percebemos que tudo o que temos é o *mesmo* momento, uma e outra vez, que não há "saída", o presente torna-se um horror, uma cruz, um peso, uma oportunidade? Belo ou terrível?
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