O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 11 de novembro de 2008

Terras do Quinto

Olha o chão. Não o vê. O olhar transluz. O ombro para onde descai a cabeça não está ferido, todo o corpo está incólume, mas o olhar abandonado é barro húmido a olhar o impossível chão. A profunda saudade levou-o até ali, ao cabo mais finisterra da vida. Parados, os olhos fitam a profunda espessura do tempo, a espiral da errância, o vazio do corpo nu, e a sua vulnerabilidade é alheamento e sombra. Chegou ao limite do fim. Não contorce o corpo nem o rosto, as mãos desenham uma cruz, repousam, seguram-se. Só o cabelo descaído sobre a sombra dos olhos parece mover-se... No pé, os dedos levantados conhecem o movimento de andar sem caminho aonde ir. No cabo do mundo, já não conhece mundo o caminho que não há! Nada há para a frente da distância. Só distância... Talvez só a névoa esbatida da montanha a formar-se... Não há pedra que se abata sobre a estátua do passado. Dela a montanha se formou. Talvez que os pés do desterrado conheçam o movimento para além da passada e do caminho; talvez que o olhar recorde o que ficou do homem e do caminho, mas o que quer que tenha ficado para trás, não o segue o mínimo gesto. É em frente, no fim do fim que é esperado o que há-de vir. Nenhuma pedra o destruirá, pois que não existente, nada do que ficou lhe lhe pertence. O que sabe o desterrado é que o oiro que floresce na terra não é nela que deve procurar-se. Talvez saiba que muitos caminhos andados não são o fim do caminho. O fim está no princípio... na montanha que se avista na distância e que não se sabe se virá, nem quando virá. Porque não é de sua natureza vir ou ir. O desterrado pende a cabeça para o coração. Chegado ao sem espaço e sem tempo, que fazer, senão abandonar em repouso o corpo mais que nu ao som de uma guitarra a nascer na garganta do vento. Ao divino fado. À barca de nenhum lugar...

10 comentários:

Anónimo disse...

SIM! SIM! É por isso que a pedra, a estátua e a montanha me fazem lembrar o desterrado.

Que bom que mesmo sem falar, e porque não sou só texto, me leiam no silêncio tão fun e mudo do que sou!

Respiro agora com mais conforto. E fecho os olhos e desenha-se um sorriso que só desterrados vêem com os olhos fechados.

nas asas de um anjo disse...

gostei mt desta leitura.

tem uma cadência com um quê de melancólico...e vem a propósito da temática dos últimos posts.

(só acho q deveria haver pontuação por parágrafos, sempre facilita+ a compreensão da mensagem)

nas asas de um anjo disse...

estes excertos estão excelentes:

"A profunda saudade levou-o até ali, ao cabo mais finisterra da vida. Parados, os olhos fitam a profunda espessura do tempo, a espiral da errância, o vazio do corpo nu, e a sua vulnerabilidade é alheamento e sombra."

e o final, tb:

"Chegado ao sem espaço e sem tempo, que fazer, senão abandonar em repouso o corpo mais que nu ao som de uma guitarra a nascer na garganta do vento. Ao divino fado. À barca de nenhum lugar..."

Anónimo disse...

Bom anjo,

não vejo em ti nada de criticável, mas na tua longa asa deve caber a exigência bela, o exercício complexo da Língua com que a Saudades escreve. Dentro de ti há capacidade para chegar ao difícil. E este blog é belo porque nele se escrevem textos difíceis. Nunca se deve pedir para simplificar o pensamento aos que são belos e bons. É a sua exigência que faz mudar o mundo. Faz mudar cada um de nós. E, querida Asa, tu chegaste lá. No segundo comentário vê-se que chagaste. Ou te aproximaste.
Bem sei, vais dizer-me que é um blog, que há características e regras para quem escreve em blogs. Mas será que as pessoas que por aqui escrevem são "bloguistas", ou serão outra coisa?
A Saudades é a grandeza da Língua e tu és uma asa que pensa e sobe. Não peças para descer...
Recebe o meu carinho e não fiques triste com o que te disse. Pensa nisto enquanto passeias pela praia.

Paulo Borges disse...

A minha pátria são as línguas que murmuram o indizível que quinto-impera no jejum das palavras gastas. Balbucio a minha gratidão.

Anónimo disse...

Isabel,

Pensei no desterrado, pois que nos pés, no peito, no ventre e coxas e nas pernas é caminho do mundo. Mas na face que fita, no sopro que ondula nos cabelos, na cabeça, é talvez onde melhor se exprime o sonho de Daniel. Sabe que mais, Isabel? Eu também vejo o desterrado quinto-imperial nesse sonho.

Um sopro leve me leva daqui.

Anónimo disse...

nas asas de um anjo,

Nas asas de um anjo me parece que voei, quando o desterrado me olhou.
Ia dizer que me tinha contado um segredo que logo esqueci. Ainda hoje o procuro e não encontro parágrafo em que caiba o que sinto por ter gostado do que mal disse.
Que importa o que disse mal ou se o disse menos bem. Estou certa de que a língua se não sentiu beliscada, nem eu. Talvez importe que, mesmo sem os parágrafos se terem lembrado de existir, um anjo tivesse compreendido o sentido do texto.

PS.Claro que os parágrafos são importantes e a pontuação facilita a leitura. Estou sempre a dizê-lo aos alunos... Se eu tivesse um tão atento...

Grata pelo seu comentário.
Saudades

Anónimo disse...

Leio as palavras da grandeza da língua e, apesar do comentário ser para um anjo, choro. Cubro o rosto,como se um escultor o tivesse tapado com um pano preto, mas, mesmo coberto, a luz dessas palavras inunda os meus olhos.

E... este blogue é belo porque há nele transparências e vasos comunicantes, que, mesmo sem pausas marcadas, deixam que a respiração as leve soltas por aí... Sei que são "poisagens" esses pensamentos. Deixam-se enlevar em línguas tão de fogo, tão fundas e tão carinhosamente belas, que a bondade nelas transparece.
Não são minhas as palavras que escrevo...não sei...não sei... são paisagens, oferendas imperfeitas...

Anónimo disse...

Paulo,

A "minha" pátria é o que diz a língua do desterrado. Se ele falasse,emudecia a pátria e imperava o sentido. É na sua essência que me calo.

Um abraço

nas asas de um anjo disse...

boa noite, Grandeza da Língua.

agradeço as suas palavras mas honro, acredite, o apreço genuíno q demonstra pelas palavras da Saudades.

demonstrou tb um trato doce na forma como se dirigiu a mim, obrgda!

felicidades

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boa noite, Saudades.

anjos somos todos nós, caídos mas erguidos pelo amor.

esqueça então os parágrafos e voe nas asas do pensamento, libertando o seu espírito na captação, quase plena, da essência do mundo.embale-nos nas suas palavras, sempre!

fique bem