O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 11 de novembro de 2008

A Pedra, a Estátua e a Montanha ou da actualidade do V Império

"[...] o título deste livro consagra os três símbolos fundamentais do sonho de Nabucodonosor, interpretado por Daniel, decerto o texto central do imaginário quinto-imperial, vieirino e não só: a pedra que, sem intervenção de mão alguma, embate violentamente nos pés de ferro e argila da terrível estátua antropomórfica, com cabeça de ouro, peito e braços de prata, ventre e coxas de bronze e pernas de ferro, pulverizando-a e convertendo-se numa “grande montanha”, que enche a terra inteira (Daniel, 2, 31-45). Esta narrativa visionária é susceptível, como tudo o que é simbólico, de uma multiplicidade inesgotável de leituras, consoante as inclinações e níveis de compreensão dos intérpretes. Dela se pode em geral dizer que, abatendo e dissipando o gigantesco ídolo de pés de barro - símbolo de uma realidade aparentemente total e invencível, mas na verdade parcial e extremamente frágil no seu fundamento e composição, interpretada tradicionalmente e por Vieira como os quatro impérios e poderes civilizacionais histórico-mundanos, e interpretável como figura de todas as falsas e frágeis construções humanas, mentais e materiais - , a pedra, figura do Messias, do Cristo ou da consciência desperta e livre, converte-se na montanha cósmica, símbolo da plenitude e da verdadeira totalidade e universalidade ou do eixo que une céu e terra, espírito e matéria, transcendência e imanência. A moral da história da pedra que pulveriza a estátua e se converte em omni-abrangente montanha, é que a imprevisível e espontânea irrupção do que parece mínimo e insignificante faz na verdade evanescer o que parece máximo, sólido e perene, convertendo-se por sua vez na verdadeira integralidade e totalidade, ao contrário da estátua, que por mais monumental era apenas um ente parcial, composto e localizado.
A partir daqui podemos vislumbrar a sempre fecunda actualidade do imaginário quinto-imperial, não só no plano histórico-civilizacional e teológico-político em que tem sido predominantemente interpretado, mas também no da nossa vida pessoal e do nosso crescimento espiritual. Pois não se aplicará a história da pedra, da estátua e da montanha ao nosso presente histórico, com seus impérios, globalizações, padrões de pensamento e ficções em aparência tão esmagadoramente triunfantes e incontornáveis, mas afinal tão frágeis, desde já minados pela ausência de verdadeiro fundamento e à mercê da ínfima pedra que contra eles subitamente se levante, contendo em si uma imensa montanha ? Pois não seremos potencialmente todos e cada um de nós essa mesma pedra, essa mesma tomada de consciência e essa mesma força que imprevisivelmente pode surgir e derrubar pela insustentável base tudo o que interior e exteriormente nos amedronta, violenta e escraviza, sem outro alicerce senão as falsas projecções da nossa ignorância, medos e expectativas, convertendo-se na ou revelando-se a inabalável montanha da descoberta da nossa natureza íntegra e primordial, único fundamento sólido de uma nova sociedade e de um novo mundo ?"

- excerto da Introdução a A Pedra, a Estátua e a Montanha. O V Império no Padre António Vieira, Lisboa, Portugália Editora, 2008. Livro apresentado na 4ªfeira, dia 12, pelas 18.30, na Igreja de São Roque (Largo Trindade Coelho ou da Misericórdia, em Lisboa).

4 comentários:

Anónimo disse...

Parece que o Quinto Império começa com uma grande pedrada...

nas asas de um anjo disse...

hum...parece interessante
pôs-me a pensar!

Anónimo disse...

Temos todos de nos abrir à pedrada do Espírito.

Anónimo disse...

Paulo,

gosto muito de o ouvir dissertar sobre esta narrativa do Nabucodonosor. E penso logo de seguida no "Desterrado". Por que razão será?

Um sorriso