O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

O Adeus de Rustam Çiçek

Comentava o outro dia que Ali Rustam Çiçek deixou um poema numa chaikana um mês antes da sua morte. Não há dúvidas de que se trata do último poema escrito mas não há acordo quanto ao momento da sua realização. Há quem diga que foi escrito cinco anos antes, quando deixou de escrever. Outros inclinam-se por datá-lo justo nesse mesmo dia em que o deixou sobre a mesa da casa de chá, nas mãos de um jovem que gostava de ir conversar com ele. Seja qual for a verdade, o poema fala sem necessidade de ajuda. Ele tem a sua própria entidade. O tempo da alma não é o tempo dos historiadores nem dos críticos, felizmente.

E já que estou aqui a escrever quero dizer que estou a viver uma curiosa “inquietação” com todos os amigos que aqui colaboram, declarados ou ocultos. Prefiro não ser muito explícito mas remarcaria as palavras: Que interessante! Não só pela qualidade, pelos pensamentos, pela procura mas por “algo mais”. E fico por aqui, pois não quero parecer um poeta obscuro. Há um, e muito bom. Algo realmente espantoso.

Por certo, a palavra “cadaleito” é galega e significa o mesmo que ataúde ou féretro.


ADEUS, AMIGOS.


adeus amigos e adeus poemas

a tarde cai tão leve e tão sincera

que tiro o lenço duma lágrima serena

e finjo um sudário de flores e de areias


para outros mares navega o ataúde

barco puro de sonhos e de versos

e eu sinto o velho cadaleito

florir nas sobrancelhas e nas veias


adeus poemas e adeus amigos

pouco dizem as pinturas e as palavras

se o silêncio das tardes mais antigas

não soubermos ouvir sem partituras


deixemos que o vento traga novas

e rosas de inverno sem melancolia

deixemos amigos e poemas fóra



fóra da ilusão e da sagaz mentira

diga-se um adeus sincero e vivo

de amor e morte por igual nascido



adeus poemas, adeus amigos.

5 comentários:

Anónimo disse...

José António Lozano,

O poema que nos traz hoje, se este pensamento fosse concebível, reduziria o infinito (supondo a possibilidade deste ser mensurável(absurdo dos absurdos, paradoxo dos paradoxos... heresia e tudo...) a um punhado de galáxias. É verdadeiramente uma pérola que recolherei com carinho.

Obrigado

Partilho desse seu sentimento de inquietação...("a alma do Obscuro" não se deixaria inquietar tanto...)

Isabel Santiago disse...

Uma cantiga de amigo à Vida. E lindo o poema, a cantiga. Só os poemas dizem adeus. O podem dizer.

Anónimo disse...

aDeus

José António Lozano disse...

Obrigado, amigos. Nenhuma palavra ou gesto pode limitar o ilimitável. Gostaria de passar a aquilo que paira nessa inquietação. Seria algo assim como a "Sobre contrução real de barcos".
Estarei ausente no fim de semana.

Anónimo disse...

Grande poema, meu. E grande despedida, também. Ou talvez entrada...

Saúde.