quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008
Em Homenagem a Agostinho da Silva, precursor de um mundo a desencobrir, no dia do seu Aniversário
George Agostinho Baptista da Silva escolhe, no Céu, nascer em Barca d’Alva, mas um desvio do movimento do mundo fá-lo irromper no Porto, a 13 de Fevereiro de 1906, por volta das 20 horas e 30 minutos, como declara no Caderno de Lembranças. Corrigido no Céu o erro, é em Barca d’Alva, a partir dos seis ou sete meses, que cresce nessa livre paisagem raiana que, com a aprendizagem simultânea do português e do castelhano, lhe dará um sentido do espírito peninsular que nunca abandonará a sua predominante paixão por Portugal, o Brasil e o mundo lusófono.
Entre a sua vinda ao mundo e a sua partida dele, em Lisboa, a 3 de Abril de 1994, no Domingo da Ressurreição, deixa uma vida exemplar de pensamento e acção: das traduções e estudos clássicos à educação popular, da insubmissão perante a “Lei Cabral”, a demissão do ensino público e o confronto com o poder político-religioso à prisão e auto-exílio no Brasil, da fundação de universidades e centros de estudos ao aconselhamento de presidentes, governos, políticas culturais e internacionais, da ampla vida amorosa à criação de vasta rede de amizades em todo o mundo e à partilha dos recursos com os mais necessitados - incluindo os animais - , do domínio de múltiplas línguas à publicação de imensa obra pedagógica, científica, literária, filosófica e epistolar, da conversão da casa de Lisboa em tertúlia aberta à intensa e viva presença mediática e ao voluntário retiro nos anos próximos da grande viagem.
Espírito livre, inconformista e original em todos os domínios, colocou as ideias e a vida ao serviço do pleno cumprimento de todas as possibilidades humanas. Impossível de classificar, assumidamente paradoxal, protagonizou um modelo de pensamento e acção alternativo aos paradigmas dominantes que todavia nunca deixou de intervir socialmente influenciando cidadãos e centros de poder em prol de uma reorganização fundamental do mundo e das consciências. Autor de obra profunda e complexa, escrita com o desprendimento de quem fala, nela cintilam as fagulhas do incêndio da sua vida, da sua contagiante eloquência, do seu poder de despertar e elevar consciências para o melhor de si e o bem comum.
Derrubador de ídolos e ideias feitas, desprendido de aspirações e convenções mundanas e do política e intelectualmente correcto, não se poupou a si mesmo, praticando uma bem-humorada ironia acerca de si próprio e dos elogios e críticas que lhe foram dirigidos. Licenciado e doutorado com as mais altas classificações, munido de um vasto saber obtido por estudo e experiência, nunca foi um intelectual desligado da vida e um académico obcecado com a carreira, apresentando-se como o mais comum dos homens que procurava praticar o que pensava e comunicar o que sabia, ou a inquietação que tinha, de modo adequado a cada um dos mais diversos auditores, desde presidentes a analfabetos. Insistia que o importante não era ter ideias, mas antes ser-se as ideias que se tem e que nos devemos converter na diferença que desejamos para o mundo, realizando desde já em nós aquilo que cremos faltar-lhe. Nunca se viu como mestre nem quis ter discípulos, estimulando antes os seus amigos e interlocutores a encontrarem os seus próprios caminhos de autorealização e a irem além das ideias e vias por si percorridas. Tornar-se “agostiniano”, no sentido de aderir a uma suposta doutrina ou via por si formulada, será assim a melhor forma de trair o sentido libertador da sua exortação, exemplo e magistério espiritual.
A Vida, superabundante, explodiu-lhe em bem mais de uma dezena de heterónimos, festiva exuberância de um sujeito que, afim a um infinito criador, não pôde sujeitar-se a ser sujeito, a ser isto ou aquilo, ou mesmo a ser, sem integrar o seu outro, o não ser, indeterminando-se num ilimitado devir autopoético. Como Pessoa (“Deus tem diverso modo / Diversos modos sou”), mas com maior rigor metafísico, assume a sua ficção autocriadora como inerente a um Deus-“Nada que é Tudo”. Na constante heteronimia da vida - para Agostinho, ao contrário de Pessoa, bem mais interessante que a literária – , a suposta pessoa rompe os limites de todo o preconceito de identidade, substancialista ou funcional, realizando a sua inata vocação de “poeta à solta”, semelhante ou consubstancial ao próprio Deus, que vê eternamente e a cada instante criador de si como criador do mundo, totalidade de uma ilimitada expressão heteronímica a partir do seu mais abissal, incriado e anónimo Nada. E é esse Nada que se desentranha no todo de uma vida-obra tanto mais coerente quanto aparentemente errante e assistemática.
Profundo conhecedor da Antiguidade grega e romana, a primeira fase da obra agostiniana é pautada pelos estudos clássicos, abandonados perante o reconhecimento das limitações do ideal helénico, confrontado com o sentido do amor cristão, como se mostra em Conversação com Diotima. Mas é ainda nesse período que estabelece, a partir da interpretação do mito da Idade de Ouro, da possível origem do sacrifício na mutação do regime alimentar de frugívoro em carnívoro – nítida influência de Teixeira Rego, seu professor e amigo na primeira Faculdade de Letras da Universidade do Porto – e da teoria do teatro, tragédia e comédia, como purificação da cisão entre a vida social e a Vida cósmica, os fundamentos de uma visão radicalmente crítica da civilização, sobretudo a ocidental, como procedente do divórcio da origem natural e divina. Seja o paradigma da Idade de Ouro, seja o do Paraíso, configuram uma visão da plenitude, unidade e harmonia entre homem, divindade e natureza, ou, mesmo, da indistinção entre eu e outro, sujeito e objecto (A Comédia Latina), que permanece como a consciente ou inconsciente aspiração mística de uma humanidade insatisfeita com o estado dualista da consciência e a vida civilizada no seio dos quais se limita e encerra.
As biografias de Agostinho da Silva, simultaneamente históricas e espirituais, são vivos modelos ético-educativos que fornecem exemplos concretos de ser possível, pelo combate espiritual, intelectual, moral e social, triunfar sobre as limitações da ordem estabelecida no mundo, nas consciências e em si mesmo. O santo, o religioso e o sacerdote, o poeta, o escritor e o artista, o pensador, o cientista, o educador e o político, em sua humanidade pulsante de força e fraqueza, desafiam-nos à mesma tarefa de realização da melhor virtualidade oculta em cada um de nós.
Agostinho desdobrou o seu talento nos domínios da novelística e da crítica literária, mas é na poesia e na tradução que deixa obra mais original e significativa, da qual estão por publicar muitos inéditos. Convivente assíduo e tradutor-recriador de grandes autores e poetas, de Aristófanes, Platão, Virgílio, Horácio, Catulo e Lucrécio a Lao Tsé e Li Bai, passando por Angelus Silesius, Novalis, Rilke e Cavafis, entre muitos outros, quase sempre lidos nas línguas originais, lega-nos na obra publicada uma poesia singela, de sentido condensado e súbito, com uma dimensão pensante onde se aprofundam os grandes temas da sua visão mística, especulação metafísica e exortação ético-sapiencial. As suas quadras, ao gosto popular, têm o sabor do paradoxo subversor da mente conceptual, recordando os haiku ou os kôan Zen.
Educador e pensador ético de fundamento místico-metafísico, concebendo o homem como Deus em potência ou Deus sendo, e não lhe conferindo assim limites, Agostinho exorta à assunção da constitutiva e superior possibilidade de realizar todo o possível e sobretudo o “impossível” (cf. essas Sete Cartas a um Jovem Filósofo que deveriam ser leitura obrigatória de todo o estudante e, sobretudo, de todo o professor de Filosofia). Ser plenamente, como o Infinito: eis o fim supremo a consumar em vida, servindo a sua realização em todos os homens, o que inclui cuidar o bem do mundo e de todos os seres vivos, consoante a sua inspiração franciscana e a ética cósmico-ecológica tão presente, de Antero a Sampaio Bruno, Junqueiro, Pascoaes e José Marinho, no pensamento português. Assumindo a santidade como o supremo dever de todos os homens, procede à crítica radical do infanticídio pedagógico dominante, que considera sacrificar a ampla curiosidade e flexibilidade mental da criança ao especialismo e funcionalização profissional do adulto, em obediência às necessidades sócio-político-económicas de uma civilização divorciada do divino, da natureza e da busca de perfeição. Propõe em alternativa uma educação inspirada pelo modelo evangélico da criança, símbolo também da inocência, disponibilidade e criatividade a redescobrir pelo adulto.
Pensador à margem da filosofia académica, ensaísta, provocador de ideias e acções mais do que teórico puro ou doutrinador, Agostinho reassume, num magistério mais socrático do que platónico, e mesmo dela desconfiado, a tradição originária da própria filosofia como inseparável da vida na sua feição comunitária, prática e dialogante ou, como gostava de dizer, “conversável”, citando o Diário da Navegação de Pero Lopes de Souza. Ciente porém dos limites do próprio pensar, a suprema actividade humana, no limiar divina, é sempre o amor, superando as mediações da filosofia, ciência, arte e política na fruição imediata dessa unidade inefável em que fulgura a Verdade oculta a toda a antinomia conceptual, iniciada pela cisão entre sujeito e objecto. Um amor que, místico, no sentido da fusão com o fundo último e inexprimível do real, não deixa de ser criador, pois consubstancial ao Infinito, no qual as mentes inventam e transfiguram a cada instante a si e ao mundo (Pensamento à Solta). Considerando o fundo do espírito humano como incriado e criador, numa linha convergente com a mística germânico-flamenga e oriental, está por avaliar o justo grau da sua proximidade e afastamento em relação ao pensamento criacionista de Leonardo Coimbra e António Sérgio, pensadores e pedagogos de quem foi aluno e discípulo.
Teorizador da história e da civilização, Agostinho vê-as – tal como Eudoro de Sousa, com quem estabeleceu estreitas relações no Brasil - decorrentes da referida ruptura de um paradisíaco estado primordial, passando-se de comunidades restritas a sociedades belicamente organizadas para a luta pela sobrevivência, com o surgimento da propriedade, das relações de poder, do trabalho, da pedagogia e da religião instituída, formas do combate humano para se emancipar da Vida plena. Mas o sentido desta cisão é a sua própria transcensão, o que vislumbra possível colocando-se os recursos científico-tecnológicos ao serviço da libertação humana e da reconquista, a nível superior, do ócio e da abundância originários, pelos quais todos os homens possam enfim fruir as suas divinas possibilidades de amar, contemplar e criar. O que exige todavia uma prévia e profunda transformação espiritual, que leve à abdicação voluntária dos demais frutos da civilização, em particular da propriedade, que vê como a raiz de uma mente e de uma sociedade obcecadas pelo trabalho e o lucro e dominadas pela competição e a ganância, reprodutoras do mesmo estado de insatisfação e carência que pretendem superar.
Revolucionário, o pensamento social, político e económico de Agostinho decorre naturalmente da sua espiritualidade e da sua ética. Pensador da libertação, em todos os homens e seres, da sua auto-oprimida natureza divina, idealiza o regresso das sociedades humanas à comunhão cósmica, vê na política uma oportunidade de descentramento ético e de progresso na santidade, proclama a necessidade de se ultrapassar a propriedade capitalista ou socialista, de coisas, pessoas ou de si próprio, numa experiência de despojamento total, segundo uma assunção laica do modelo evangélico, franciscano e monástico. Todavia, a par da tentativa de ser o primeiro exemplo desta realização, e atento à necessidade de um gradual progresso colectivo para este fim, exorta à participação activa nos desafios e tarefas da vida política, fora porém das estruturas partidárias, as quais, resultando, como adverte na designação de “partidos”, da fragmentação e da parcialidade, limitadas pela ideologia e o apetite do poder, pela incompreensão e ódio ao adversário e pela demagogia, considera tenderem sempre a sacrificar o bem comum a interesses particulares.
Na áurea linhagem dos grandes poetas e profetas do destino universal de Portugal que foram Luís de Camões, António Vieira e Fernando Pessoa, Agostinho da Silva desenvolve uma das dimensões mais apaixonadas do seu pensamento e vida como intérprete criativo da história e da cultura lusófonas. Colhendo daqueles uma noção de Portugal como ideia metafísico-religiosa, e de Jaime Cortesão a inspiração joaquimita e franciscana do culto popular do Espírito Santo e dos Descobrimentos – fundada numa heterodoxa inquietação religiosa laica e pré-nacional, que remontaria ao priscilianismo - , Agostinho assume o espaço da língua e da cultura lusófonas como o de uma vocação messiânica reveladora de um mais fundo sentido do universal e do divino e mediadora da criação de uma comunidade planetária onde se harmonizem e transcendam as oposições ideológicas, nacionais, culturais e religiosas. Inspirador da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), entendeu o mítico Quinto Império como a fraternidade universal futura que, apenas utópica porque virtual, se poderia realizar mediante uma conjunção do mundo lusófono e ibero-americano e sua aproximação à África e ao Oriente, oferecendo um modelo mental e convivencial alternativo ao fim de ciclo da civilização europeia e norte-americana, entendido como a verdadeira e final queda do Império Romano. Em particular, o papel fundamental de Portugal na Europa, após a haver levado ao mundo, seria agora o de inverter o processo, trazendo a ela a diversidade das culturas, paradigmas e sabedorias planetárias, convertendo-se na porta de “novas invasões bárbaras” que venham afinal insuflar uma nova vitalidade humana e espiritual no ainda demasiado autocentrado Velho Mundo, provocando-lhe uma metamorfose redentora do iminente esgotamento e catástrofe.
Pensador religioso e místico, que opta por fazer do mundo o seu mosteiro após ter estado na iminência de entrar na vida monástica, Agostinho não o via oposto ao pleno uso da razão, e sobretudo ao novo paradigma científico surgido com a física quântica, nem ao profundo sentido do concreto exemplificado por Santa Teresa de Ávila, que estudou, tal como São João da Cruz. Na convergência do neoplatonismo grego e cristão, do não-dualismo oriental (mormente taoista e budista) e da mística universal, o Deus agostiniano é o inefável, o uno ou o absoluto onde se unificam e superam todos os contrários: o “Nada que é Tudo”. É dele que a consciência, a história e a civilização se cindem com a saudade do regresso à paz da não diferenciação entre sujeito e objecto. É dessa cisão e do medo assim gerado que a religião e as religiões se originam como busca de religação do que foi separado. Em termos da linguagem trinitária cristã e do paracletismo ecuménico onde vislumbra o único catolicismo (universalismo) autêntico, de que o cristianismo seria apenas uma das faces, esse absoluto é o Espírito Santo, inovadoramente pensado como metafisicamente anterior às duas outras pessoas da Trindade, Pai e Filho, que superiormente unifica como figuras da sua manifestação e re-velação. Deus anónimo, patente nas miríades de heterónimos do universo, mas radicalmente oculto, ou só experienciado no silêncio da união mística, o nada e tudo ser funda o mais amplo ecumenismo, onde religiões, ateísmo e agnosticismo expressam igualmente aspectos parciais dessa verdade inapreensível. O que torna Agostinho um dos mais ousados e insuperados pioneiros do tão actual diálogo inter-cultural e inter-religioso, elevado a um sentido trans-confessional. Pois o que mais importa é que cada um descubra e frua, por vias próprias, a sua essencial identidade com esse mesmo absoluto: “Crente é pouco sê-te Deus / e para o nada que é tudo / inventa caminhos teus” (Quadras Inéditas).
Profeta porque visionário, vive um presente já apocalipticamente transfigurado pela deslumbrante visão da Presença-Ausência eterna. Precursor e bandeirante espiritual de um mundo a desvelar, em si já manifesto mas ainda oculto nas divinas entranhas do possível para as consciências mais alienadas, escravas e desatentas, é nessa condição que anuncia à comunidade dos homens a iminência, em função da sua disponibilidade, de um estado onde poderão cessar enfim todas as lutas e contradições do espírito e da história. Reino divino ou Idade de Ouro, nele desaparecerão as ilusórias antinomias entre céu e terra, natural e sobrenatural, tempo e eternidade, contemplação e acção, homem, mundo e Deus. Mostrando um acolhimento subtil da influência de Joaquim de Flora, considera que à relação entre senhor e servo, na Idade do Pai, e à relação entre irmãos, na Idade do Filho, sucederá, na Idade do Espírito, e superando a própria mensagem de Cristo, uma última revelação: aquela que, inobjectivável porque não exterior, só pode advir da relação mais íntima, profunda e secreta de cada um consigo próprio. Se a Idade Antiga durou até à Idade Média, e se esta dura até hoje, o que funda a Idade Nova e porventura última é esse inaparente desvelamento do nosso intemporal e universal fundo divino. “Metanóia” ou “samadhi”, é essa experiência de transcensão da cisão sujeito-objecto que verdadeiramente une o Oriente e o Ocidente. Mais do que em movimentos sociais ou culturais, é nela que reside a verdadeira e definitiva Revolução, inauguradora dos “tempos de ser Deus”.
Agostinho da Silva impõe-se hoje como referência incontornável da cultura lusófona, do debate de ideias e, sobretudo, da busca de mutação da vida e da consciência que, numa encruzilhada crítica e dramática da civilização e da aventura humana, pode promover um novo Renascimento integral e planetário.
Entre a sua vinda ao mundo e a sua partida dele, em Lisboa, a 3 de Abril de 1994, no Domingo da Ressurreição, deixa uma vida exemplar de pensamento e acção: das traduções e estudos clássicos à educação popular, da insubmissão perante a “Lei Cabral”, a demissão do ensino público e o confronto com o poder político-religioso à prisão e auto-exílio no Brasil, da fundação de universidades e centros de estudos ao aconselhamento de presidentes, governos, políticas culturais e internacionais, da ampla vida amorosa à criação de vasta rede de amizades em todo o mundo e à partilha dos recursos com os mais necessitados - incluindo os animais - , do domínio de múltiplas línguas à publicação de imensa obra pedagógica, científica, literária, filosófica e epistolar, da conversão da casa de Lisboa em tertúlia aberta à intensa e viva presença mediática e ao voluntário retiro nos anos próximos da grande viagem.
Espírito livre, inconformista e original em todos os domínios, colocou as ideias e a vida ao serviço do pleno cumprimento de todas as possibilidades humanas. Impossível de classificar, assumidamente paradoxal, protagonizou um modelo de pensamento e acção alternativo aos paradigmas dominantes que todavia nunca deixou de intervir socialmente influenciando cidadãos e centros de poder em prol de uma reorganização fundamental do mundo e das consciências. Autor de obra profunda e complexa, escrita com o desprendimento de quem fala, nela cintilam as fagulhas do incêndio da sua vida, da sua contagiante eloquência, do seu poder de despertar e elevar consciências para o melhor de si e o bem comum.
Derrubador de ídolos e ideias feitas, desprendido de aspirações e convenções mundanas e do política e intelectualmente correcto, não se poupou a si mesmo, praticando uma bem-humorada ironia acerca de si próprio e dos elogios e críticas que lhe foram dirigidos. Licenciado e doutorado com as mais altas classificações, munido de um vasto saber obtido por estudo e experiência, nunca foi um intelectual desligado da vida e um académico obcecado com a carreira, apresentando-se como o mais comum dos homens que procurava praticar o que pensava e comunicar o que sabia, ou a inquietação que tinha, de modo adequado a cada um dos mais diversos auditores, desde presidentes a analfabetos. Insistia que o importante não era ter ideias, mas antes ser-se as ideias que se tem e que nos devemos converter na diferença que desejamos para o mundo, realizando desde já em nós aquilo que cremos faltar-lhe. Nunca se viu como mestre nem quis ter discípulos, estimulando antes os seus amigos e interlocutores a encontrarem os seus próprios caminhos de autorealização e a irem além das ideias e vias por si percorridas. Tornar-se “agostiniano”, no sentido de aderir a uma suposta doutrina ou via por si formulada, será assim a melhor forma de trair o sentido libertador da sua exortação, exemplo e magistério espiritual.
A Vida, superabundante, explodiu-lhe em bem mais de uma dezena de heterónimos, festiva exuberância de um sujeito que, afim a um infinito criador, não pôde sujeitar-se a ser sujeito, a ser isto ou aquilo, ou mesmo a ser, sem integrar o seu outro, o não ser, indeterminando-se num ilimitado devir autopoético. Como Pessoa (“Deus tem diverso modo / Diversos modos sou”), mas com maior rigor metafísico, assume a sua ficção autocriadora como inerente a um Deus-“Nada que é Tudo”. Na constante heteronimia da vida - para Agostinho, ao contrário de Pessoa, bem mais interessante que a literária – , a suposta pessoa rompe os limites de todo o preconceito de identidade, substancialista ou funcional, realizando a sua inata vocação de “poeta à solta”, semelhante ou consubstancial ao próprio Deus, que vê eternamente e a cada instante criador de si como criador do mundo, totalidade de uma ilimitada expressão heteronímica a partir do seu mais abissal, incriado e anónimo Nada. E é esse Nada que se desentranha no todo de uma vida-obra tanto mais coerente quanto aparentemente errante e assistemática.
Profundo conhecedor da Antiguidade grega e romana, a primeira fase da obra agostiniana é pautada pelos estudos clássicos, abandonados perante o reconhecimento das limitações do ideal helénico, confrontado com o sentido do amor cristão, como se mostra em Conversação com Diotima. Mas é ainda nesse período que estabelece, a partir da interpretação do mito da Idade de Ouro, da possível origem do sacrifício na mutação do regime alimentar de frugívoro em carnívoro – nítida influência de Teixeira Rego, seu professor e amigo na primeira Faculdade de Letras da Universidade do Porto – e da teoria do teatro, tragédia e comédia, como purificação da cisão entre a vida social e a Vida cósmica, os fundamentos de uma visão radicalmente crítica da civilização, sobretudo a ocidental, como procedente do divórcio da origem natural e divina. Seja o paradigma da Idade de Ouro, seja o do Paraíso, configuram uma visão da plenitude, unidade e harmonia entre homem, divindade e natureza, ou, mesmo, da indistinção entre eu e outro, sujeito e objecto (A Comédia Latina), que permanece como a consciente ou inconsciente aspiração mística de uma humanidade insatisfeita com o estado dualista da consciência e a vida civilizada no seio dos quais se limita e encerra.
As biografias de Agostinho da Silva, simultaneamente históricas e espirituais, são vivos modelos ético-educativos que fornecem exemplos concretos de ser possível, pelo combate espiritual, intelectual, moral e social, triunfar sobre as limitações da ordem estabelecida no mundo, nas consciências e em si mesmo. O santo, o religioso e o sacerdote, o poeta, o escritor e o artista, o pensador, o cientista, o educador e o político, em sua humanidade pulsante de força e fraqueza, desafiam-nos à mesma tarefa de realização da melhor virtualidade oculta em cada um de nós.
Agostinho desdobrou o seu talento nos domínios da novelística e da crítica literária, mas é na poesia e na tradução que deixa obra mais original e significativa, da qual estão por publicar muitos inéditos. Convivente assíduo e tradutor-recriador de grandes autores e poetas, de Aristófanes, Platão, Virgílio, Horácio, Catulo e Lucrécio a Lao Tsé e Li Bai, passando por Angelus Silesius, Novalis, Rilke e Cavafis, entre muitos outros, quase sempre lidos nas línguas originais, lega-nos na obra publicada uma poesia singela, de sentido condensado e súbito, com uma dimensão pensante onde se aprofundam os grandes temas da sua visão mística, especulação metafísica e exortação ético-sapiencial. As suas quadras, ao gosto popular, têm o sabor do paradoxo subversor da mente conceptual, recordando os haiku ou os kôan Zen.
Educador e pensador ético de fundamento místico-metafísico, concebendo o homem como Deus em potência ou Deus sendo, e não lhe conferindo assim limites, Agostinho exorta à assunção da constitutiva e superior possibilidade de realizar todo o possível e sobretudo o “impossível” (cf. essas Sete Cartas a um Jovem Filósofo que deveriam ser leitura obrigatória de todo o estudante e, sobretudo, de todo o professor de Filosofia). Ser plenamente, como o Infinito: eis o fim supremo a consumar em vida, servindo a sua realização em todos os homens, o que inclui cuidar o bem do mundo e de todos os seres vivos, consoante a sua inspiração franciscana e a ética cósmico-ecológica tão presente, de Antero a Sampaio Bruno, Junqueiro, Pascoaes e José Marinho, no pensamento português. Assumindo a santidade como o supremo dever de todos os homens, procede à crítica radical do infanticídio pedagógico dominante, que considera sacrificar a ampla curiosidade e flexibilidade mental da criança ao especialismo e funcionalização profissional do adulto, em obediência às necessidades sócio-político-económicas de uma civilização divorciada do divino, da natureza e da busca de perfeição. Propõe em alternativa uma educação inspirada pelo modelo evangélico da criança, símbolo também da inocência, disponibilidade e criatividade a redescobrir pelo adulto.
Pensador à margem da filosofia académica, ensaísta, provocador de ideias e acções mais do que teórico puro ou doutrinador, Agostinho reassume, num magistério mais socrático do que platónico, e mesmo dela desconfiado, a tradição originária da própria filosofia como inseparável da vida na sua feição comunitária, prática e dialogante ou, como gostava de dizer, “conversável”, citando o Diário da Navegação de Pero Lopes de Souza. Ciente porém dos limites do próprio pensar, a suprema actividade humana, no limiar divina, é sempre o amor, superando as mediações da filosofia, ciência, arte e política na fruição imediata dessa unidade inefável em que fulgura a Verdade oculta a toda a antinomia conceptual, iniciada pela cisão entre sujeito e objecto. Um amor que, místico, no sentido da fusão com o fundo último e inexprimível do real, não deixa de ser criador, pois consubstancial ao Infinito, no qual as mentes inventam e transfiguram a cada instante a si e ao mundo (Pensamento à Solta). Considerando o fundo do espírito humano como incriado e criador, numa linha convergente com a mística germânico-flamenga e oriental, está por avaliar o justo grau da sua proximidade e afastamento em relação ao pensamento criacionista de Leonardo Coimbra e António Sérgio, pensadores e pedagogos de quem foi aluno e discípulo.
Teorizador da história e da civilização, Agostinho vê-as – tal como Eudoro de Sousa, com quem estabeleceu estreitas relações no Brasil - decorrentes da referida ruptura de um paradisíaco estado primordial, passando-se de comunidades restritas a sociedades belicamente organizadas para a luta pela sobrevivência, com o surgimento da propriedade, das relações de poder, do trabalho, da pedagogia e da religião instituída, formas do combate humano para se emancipar da Vida plena. Mas o sentido desta cisão é a sua própria transcensão, o que vislumbra possível colocando-se os recursos científico-tecnológicos ao serviço da libertação humana e da reconquista, a nível superior, do ócio e da abundância originários, pelos quais todos os homens possam enfim fruir as suas divinas possibilidades de amar, contemplar e criar. O que exige todavia uma prévia e profunda transformação espiritual, que leve à abdicação voluntária dos demais frutos da civilização, em particular da propriedade, que vê como a raiz de uma mente e de uma sociedade obcecadas pelo trabalho e o lucro e dominadas pela competição e a ganância, reprodutoras do mesmo estado de insatisfação e carência que pretendem superar.
Revolucionário, o pensamento social, político e económico de Agostinho decorre naturalmente da sua espiritualidade e da sua ética. Pensador da libertação, em todos os homens e seres, da sua auto-oprimida natureza divina, idealiza o regresso das sociedades humanas à comunhão cósmica, vê na política uma oportunidade de descentramento ético e de progresso na santidade, proclama a necessidade de se ultrapassar a propriedade capitalista ou socialista, de coisas, pessoas ou de si próprio, numa experiência de despojamento total, segundo uma assunção laica do modelo evangélico, franciscano e monástico. Todavia, a par da tentativa de ser o primeiro exemplo desta realização, e atento à necessidade de um gradual progresso colectivo para este fim, exorta à participação activa nos desafios e tarefas da vida política, fora porém das estruturas partidárias, as quais, resultando, como adverte na designação de “partidos”, da fragmentação e da parcialidade, limitadas pela ideologia e o apetite do poder, pela incompreensão e ódio ao adversário e pela demagogia, considera tenderem sempre a sacrificar o bem comum a interesses particulares.
Na áurea linhagem dos grandes poetas e profetas do destino universal de Portugal que foram Luís de Camões, António Vieira e Fernando Pessoa, Agostinho da Silva desenvolve uma das dimensões mais apaixonadas do seu pensamento e vida como intérprete criativo da história e da cultura lusófonas. Colhendo daqueles uma noção de Portugal como ideia metafísico-religiosa, e de Jaime Cortesão a inspiração joaquimita e franciscana do culto popular do Espírito Santo e dos Descobrimentos – fundada numa heterodoxa inquietação religiosa laica e pré-nacional, que remontaria ao priscilianismo - , Agostinho assume o espaço da língua e da cultura lusófonas como o de uma vocação messiânica reveladora de um mais fundo sentido do universal e do divino e mediadora da criação de uma comunidade planetária onde se harmonizem e transcendam as oposições ideológicas, nacionais, culturais e religiosas. Inspirador da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), entendeu o mítico Quinto Império como a fraternidade universal futura que, apenas utópica porque virtual, se poderia realizar mediante uma conjunção do mundo lusófono e ibero-americano e sua aproximação à África e ao Oriente, oferecendo um modelo mental e convivencial alternativo ao fim de ciclo da civilização europeia e norte-americana, entendido como a verdadeira e final queda do Império Romano. Em particular, o papel fundamental de Portugal na Europa, após a haver levado ao mundo, seria agora o de inverter o processo, trazendo a ela a diversidade das culturas, paradigmas e sabedorias planetárias, convertendo-se na porta de “novas invasões bárbaras” que venham afinal insuflar uma nova vitalidade humana e espiritual no ainda demasiado autocentrado Velho Mundo, provocando-lhe uma metamorfose redentora do iminente esgotamento e catástrofe.
Pensador religioso e místico, que opta por fazer do mundo o seu mosteiro após ter estado na iminência de entrar na vida monástica, Agostinho não o via oposto ao pleno uso da razão, e sobretudo ao novo paradigma científico surgido com a física quântica, nem ao profundo sentido do concreto exemplificado por Santa Teresa de Ávila, que estudou, tal como São João da Cruz. Na convergência do neoplatonismo grego e cristão, do não-dualismo oriental (mormente taoista e budista) e da mística universal, o Deus agostiniano é o inefável, o uno ou o absoluto onde se unificam e superam todos os contrários: o “Nada que é Tudo”. É dele que a consciência, a história e a civilização se cindem com a saudade do regresso à paz da não diferenciação entre sujeito e objecto. É dessa cisão e do medo assim gerado que a religião e as religiões se originam como busca de religação do que foi separado. Em termos da linguagem trinitária cristã e do paracletismo ecuménico onde vislumbra o único catolicismo (universalismo) autêntico, de que o cristianismo seria apenas uma das faces, esse absoluto é o Espírito Santo, inovadoramente pensado como metafisicamente anterior às duas outras pessoas da Trindade, Pai e Filho, que superiormente unifica como figuras da sua manifestação e re-velação. Deus anónimo, patente nas miríades de heterónimos do universo, mas radicalmente oculto, ou só experienciado no silêncio da união mística, o nada e tudo ser funda o mais amplo ecumenismo, onde religiões, ateísmo e agnosticismo expressam igualmente aspectos parciais dessa verdade inapreensível. O que torna Agostinho um dos mais ousados e insuperados pioneiros do tão actual diálogo inter-cultural e inter-religioso, elevado a um sentido trans-confessional. Pois o que mais importa é que cada um descubra e frua, por vias próprias, a sua essencial identidade com esse mesmo absoluto: “Crente é pouco sê-te Deus / e para o nada que é tudo / inventa caminhos teus” (Quadras Inéditas).
Profeta porque visionário, vive um presente já apocalipticamente transfigurado pela deslumbrante visão da Presença-Ausência eterna. Precursor e bandeirante espiritual de um mundo a desvelar, em si já manifesto mas ainda oculto nas divinas entranhas do possível para as consciências mais alienadas, escravas e desatentas, é nessa condição que anuncia à comunidade dos homens a iminência, em função da sua disponibilidade, de um estado onde poderão cessar enfim todas as lutas e contradições do espírito e da história. Reino divino ou Idade de Ouro, nele desaparecerão as ilusórias antinomias entre céu e terra, natural e sobrenatural, tempo e eternidade, contemplação e acção, homem, mundo e Deus. Mostrando um acolhimento subtil da influência de Joaquim de Flora, considera que à relação entre senhor e servo, na Idade do Pai, e à relação entre irmãos, na Idade do Filho, sucederá, na Idade do Espírito, e superando a própria mensagem de Cristo, uma última revelação: aquela que, inobjectivável porque não exterior, só pode advir da relação mais íntima, profunda e secreta de cada um consigo próprio. Se a Idade Antiga durou até à Idade Média, e se esta dura até hoje, o que funda a Idade Nova e porventura última é esse inaparente desvelamento do nosso intemporal e universal fundo divino. “Metanóia” ou “samadhi”, é essa experiência de transcensão da cisão sujeito-objecto que verdadeiramente une o Oriente e o Ocidente. Mais do que em movimentos sociais ou culturais, é nela que reside a verdadeira e definitiva Revolução, inauguradora dos “tempos de ser Deus”.
Agostinho da Silva impõe-se hoje como referência incontornável da cultura lusófona, do debate de ideias e, sobretudo, da busca de mutação da vida e da consciência que, numa encruzilhada crítica e dramática da civilização e da aventura humana, pode promover um novo Renascimento integral e planetário.
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