sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

botânica das flores impossíveis



quando as línguas se tocam
as palavras são sustos antigos
incompletas e gastas
tal as solas dos sapatos dos mendigos
a própria planta dos seus pés floridos por dentro
e as almas combustidas
em fuga
rasgam espaços de luz viridificante
que só a Irmã de Bingem
tornou visível
ao liquefazer-se em canto e saudade de não ter sido
o mesmo canto que obrigou Antero a consumir-se
sui-salvando-se
partir e ficar
duas palavras sem nexo
na vida em êxtase do impossível

Ja agora

O que e um rapaz feio?

E uma miuda bonita?

E um rapaz bonito?

E um "Don Juan"?

E uma "Dona Juana"?

Pergunta tola

O que e uma miuda feia?

Pelos caminhos da reflexão

Viver
Com os meus caprichos
Quero viver
Deixar para trás
A coroa de espinhos
Simplesmente ser
Aqui, agora, mais logo
Livre prisioneiro
Dos meus caprichos
Andar na noite
Onde nada é longe
Embriagado da tua luz
Nada ou ninguém
Pedindo-me coisas
E que depois me livre
Da coroa de espinhos
Caminhando de novo sem vontade
Livre prisioneiro de mim.

O que é a motivação?

Perguntámos o que é a mente e, naturalmente, ninguém soube responder. Fizémo-lo porque, supostamente, tudo o que aqui pode encontrar provém da mente. Porém, isso mesmo provém por uma razão. Tudo, neste caso, provém porque há motivação para tal. Deveríamos então perguntar, paralelamente ao que é a mente, o que é a motivação. O que é a motivação?
a mente?
tem a mesma raiz que a palavra mentira

MENS

Carta de despedida a Paulo Feitais e aos que restam

Paulo.

Obrigada pelas flores. Eu que sou especialista em botânica deveria saber o nome destas tão belas flores, mas na realidade, o meu conhecimento é livresco, eu só conheço palavras e livros, nada mais.

Gostava que ficasses. Deixa-me, a mim, partir. Como disse noutra carta de amor, tenho medo de serpentes, e acabei por permanecer mais tempo por aqui porque tinha saudades do outro Paulo, conheci uma Margarida a despontar, cheia de vida, até uma Alice veio ter comigo ao meu jardim. Depois veio outra menina que afugentou as bruxas más da ortografia, mas elas nunca me deixam enganar ninguém. Claro que houve imensas cores - desde um luar azul à obscuridade total que me faziam aqui alongar a minha estada, mas, como sabes, a vocação das joaninhas reside no voar.

Fica aqui, Paulo, junto da tua Língua, que a minha língua não toca mais na tua. Nunca pensei que ela te assanhasse assim com uma voltagem tão elevada, mas as minhas línguas (de águas) e a tua Língua não se querem confundir. Se calhar porque precisam de espaço e tempo. Tempo, tenho-o de sobra, mas espaço - não cabemos naquilo que tu chamas Pátria, da qual te é impossível exilar. E eu sou uma exilada a tempo inteiro, profissional e amadora, acentuada gravemente pela ortografia e gramática.

Sabes, descobri a poesia com Antero. Na pura inocência, à procura de Queiroz (como se Eça de Queiroz se desvendasse numa enciclopédia), quando encontrei outro Q de quá-quá. E durante a minha adolescência descobria extasiada os seus poemas. Quando há 14 anos atrás nascia Março, lia compulsivamente "15 anos" como se Antero o tivesse escrito apenas para mim. Amei-o como amei tão poucos poetas- ou mais, ele foi o primeiro, que me ensinou a amar com a Alba. E para mim tornou-se claro: a poesia era de combate: poeta, ergue-te, perante a Ideia.

Sei que estas palavras também as viveste, do teu lado da tua Língua, nas terras fetais, ou abrasileiradamente cansadas

Eu ainda estou a tentar ser tipógrafa, para me encontrar com Michelet e lhe mostrar os poemas de um desconhecido Bettencort. Possivelmente nunca passarei desse Bettencourt, tipógrafo, emigrado, exilado à procura do sonho.

Deixa-me partir que já vou tarde. Este reino da Serpente é mais do teu mundo do que do meu. Eu tenho o descuidado o meu jardim, enebriada (ou inebriada, já não sei) convosco.

Ficou aqui o meu rasto e o meu mês de Fevereiro. Mais uma aniversário, mais um ninho a desertar. Deixa ir-me para tu /te/ vires e /te/ voltares.

Surgir! ser astro e flôr! onda e granito!
Luz e sombra! attracção e pensamento!
Um mesmo nome em tudo está escrito-....................................
Eis quanto me ensinou a voz do vento.

Antero


da tua

Joana
Mais importante do que sabermos o que é a vida, é saber viver, porque podemos ficar a vida inteira na indefinição sobre o que é a vida, mas não podemos ficar um único momento sem viver.

A mente é como um skate

A mente é como um skate. Imaginemos, agora, que somos especialistas a andar de skate e que temos connosco alguém que quer aprender a andar. Como o fazemos? Decerto não lhe vamos ensinar que o skate tem rodas, tábua, rolamentos e assim por diante, porque isso é evidente. Vamos, ao invés, dizer-lhe para que comece a andar e, cosoante a prática que demonstra, vamo-lo dirigindo. O mesmo em relação à mente e à procura de um estado mental ausente de sofrimento, portanto, satisfatório. Não vamos tentar responder a questões metafísicas sobre o que é a mente mas, ao invés, ensiná-lo a usá-la, pela prática, até que consiga atingir esse estado de satisfação. Por minha parte, ensino que a contemplação estética é um estado ausente de sofrimento e pleno de satisfação, na medida, porventura, em que nos esquecemos de todos os nossos problemas para atentar exclusivamente no objecto belo ou sublime que, inatamente, clama por atenção. Mais importante do que saber o que é a mente é saber usá-la.

Por pensar tanto no Paraíso

Por pensar tanto no Paraíso e na sua importância para cada um de nós - não seria mais que bom que vivêssemos no Paraíso, um Paraíso - é que penso que há questões mais importantes do que "o que é a mente?". Aliás, a busca do Paraíso não deixa de ser a busca do Nirvana, busca primeira e original do Budismo: não nos interessa responder a questões metafísicas mas, antes, libertar-mo-nos do sofrimento, da insatisfação. Pois o Paraíso é esse estado mental em que não há insatisfação, penso eu.

A plena tranquilidade

O Paraíso, para mim, não é uma festa, mas o lugar onde reina a plena tranquilidade. Já estive em lugares assim.

A verdade

A verdade é que acordamos, diariamente, arranjamo-nos (o que quer que isso seja...) e vamos para os nossos trabalhos, não sem antes termos um ou outro pensamento sobre o que quer que seja. Trabalhamos, almoçamos e voltamos a trabalhar. Ao fim do dia, saímos do trabalho, e procuramos um momento de repouso, que nos faça esquecer tudo o que fizemos durante o dia ou que, pelo contrário, nos permita lembrar o que ficou por fazer.

O tempo para sermos para nós próprios é, mais do que escasso, raro.

Sobram-nos as poucas horas mortas do fim do dia ou da noite, os fins de semana. A vida, de facto, não é normalmente vivida como uma festa, devido às nossas obrigações para com quem trabalhamos ou para com o que fazemos profisisonalmente. Quando penso no Paraíso, lembro-me sempre daquela parte do filme "Colateral" em que o taxista mostra à sua cliente uma fotografia que guarda e vê sempre que se sente em desarmonia com o todo de que é parte.

Para mim, o Paraíso não é uma festa, para a qual todos estão convidados, um jardim de delícias, mas apenas a realização de mim naquilo em que me quero realizar. O Paraíso é, mais do que religação, realização, na medida em que cada momento é diferente dos anteriores. É possível atingi-lo? Nem que por breves momentos. Mas mais, é possível? Penso que sim, mas ainda não cheguei lá.

Um bem haja para todos.

Bebamos mais ainda, Irmãos, bebamos !

Bom, como já vi que aquilo de que vocês gostam é de festa e copos e aquelas tretas da mente e da consciência é só pra disfarçar, aqui vai uma série de poemas do meu camarada alentejano que eu escrevi enquanto ele, uma destas manhãs, de copo na mão, já mal se aguentando de pé, os declamava à porta da taberna do Altíssimo, a tasca do Tizé. Na verdade, aquilo saía-lhe numa língua estranha, mas eu, com a ajuda do tinto e do Santo Espirro, logo os vertia para a nossa lusa língua, que é mesmo boa para estas coisas avinhadas... Depois é que foi uma maluqueira: começou aos abraços e beijos a toda a gente, a dizer que via Deus neles e em tudo e que tinha nascido há oitocentos anos no Afeganistão, mas que aqui no Alentejo é que estava bem e que tinha um nome muito grande, do qual já não me lembro, porque estava quase tão inebriado quanto ele... Acho que dizia prá aí três vezes Mohammad e depois acabava já não sei bem como... Talvez vocês, que estudam e lêem muitos livros, tenham alguma ideia... Parece que o gajo é ainda mais antigo do que eu !... O Alentejo está cheio destes fenómenos... Enfim, lá fomos agarrados um ao outro pela planície fora e acabámos a dormir debaixo dum sobreiro... É pá, mas acordei sem ressaca e só sonhei que era Deus !... O vinho do Tizé é mesmo bom ! Enquanto houver deste produto, ainda há Portugal ! O problema é que encontrá-lo é quase tão difícil como a Ilha do Encoberto... Mas o pessoal da Serpente, com jeito, há-de chegar lá !... Saúde !

Hoje tenho a taça do vinho matinal na mão
Caio e levanto-me, embriago-me
Estou ébrio e sou muito pequeno junto deste cipreste altivo
Converto-me em nada, de modo que não exista nada mais que Ele

Sei enfim que o amor se uniu a mim
E tenho esta cabeleira de mil tranças.
Se bem que ontem estivesse ébrio pela tua taça
Hoje estou de tal modo que a taça se embriaga de mim

O amante há-de estar sempre ébrio e ver-se difamado
Como extravagante, extraviado e louco.
A dor virá pela garganta quando ficarmos sóbrios
Mas enquanto estivermos ébrios que ocorra seja o que for

Esta noite que o vinho da alma é perfeito, perfeito
Copeiro é o rei e o vinho é espesso, espesso.
Os instrumentos da festa estão todos, todos
Ó corações vivos, ilícito é o sonho, o sonho

Se um só instante em meu fogo fervo
Desejo esquecer-te um só momento
Bebo um copo para afastar o pensamento
No copo assomas e nele te bebo

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Carmina Burana (Carl Orff)

Manuelinho, tu e que trouxeste o assunto a baila;-).

14. In taberna quando sumus (When we are in the tavern)

In taberna quando sumus When we are in the tavern,
non curamus quid sit humus, we do not think how we will go to dust,
sed ad ludum properamus, but we hurry to gamble,
cui semper insudamus. which always makes us sweat.
Quid agatur in taberna What happens in the tavern,
ubi nummus est pincerna, where money is host,
hoc est opus ut queratur, you may well ask,
si quid loquar, audiatur. and hear what I say.

Quidam ludunt, quidam bibunt, Some gamble, some drink,
quidam indiscrete vivunt. some behave loosely.
Sed in ludo qui morantur, But of those who gamble,
ex his quidam denudantur some are stripped bare,
quidam ibi vestiuntur, some win their clothes here,
quidam saccis induuntur. some are dressed in sacks.
Ibi nullus timet mortem Here no-one fears death,
sed pro Baccho mittunt sortem: but they throw the dice in the name of Bacchus.

Primo pro nummata vini, First of all it is to the wine-merchant
ex hac bibunt libertini; that the libertines drink,
semel bibunt pro captivis, one for the prisoners,
post hec bibunt ter pro vivis, three for the living,
quater pro Christianis cunctis four for all Christians,
quinquies pro fidelibus defunctis, five for the faithful dead,
sexies pro sororibus vanis, six for the loose sisters,
septies pro militibus silvanis. seven for the footpads in the wood,

Octies pro fratribus perversis, Eight for the errant brethren,
nonies pro monachis dispersis, nine for the dispersed monks,
decies pro navigantibus ten for the seamen,
undecies pro discordaniibus, eleven for the squabblers,
duodecies pro penitentibus, twelve for the penitent,
tredecies pro iter agentibus. thirteen for the wayfarers.
Tam pro papa quam pro rege To the Pope as to the king
bibunt omnes sine lege. they all drink without restraint.

Bibit hera, bibit herus, The mistress drinks, the master drinks,
bibit miles, bibit clerus, the soldier drinks, the priest drinks,
bibit ille, bibit illa, the man drinks, the woman drinks,
bibit servis cum ancilla, the servant drinks with the maid,
bibit velox, bibit piger, the swift man drinks, the lazy man drinks,
bibit albus, bibit niger, the white man drinks, the black man drinks,
bibit constans, bibit vagus, the settled man drinks, the wanderer drinks,
bibit rudis, bibit magnus. the stupid man drinks, the wise man drinks,

Bibit pauper et egrotus, The poor man drinks, the sick man drinks,
bibit exul et ignotus, the exile drinks, and the stranger,
bibit puer, bibit canus, the boy drinks, the old man drinks,
bibit presul et decanus, the bishop drinks, and the deacon,
bibit soror, bibit frater, the sister drinks, the brother drinks,
bibit anus, bibit mater, the old lady drinks, the mother drinks,
bibit ista, bibit ille, this man drinks, that man drinks,
bibunt centum, bibunt mille. a hundred drink, a thousand drink.

Parum sexcente nummate Six hundred pennies would hardly
durant, cum immoderate suffice, if everyone
bibunt omnes sine meta. drinks immoderately and immeasurably.
Quamvis bibant mente leta, However much they cheerfully drink
sic nos rodunt omnes gentes we are the ones whom everyone scolds,
et sic erimus egentes. and thus we are destitute.
Qui nos rodunt confundantur May those who slander us be cursed
et cum iustis non scribantur. and may their names not be written in the book
of the righteous.

Não volto



e não fico assanhado
mas as flores são do coração.
Musicalmente, a sonata da infinita gratidão

Zweig diz:

É sempre à parte demoníaca de cada um de nós que se fica a dever tudo o que nos projecta para lá do ente individual que somos, para lá dos nossos interesses pessoais, tudo o que nos confere a sagacidade e o desejo de aventura com que nos lançamos na interrogação e nos perigos que ela comporta. Mas este demónio só é uma força amiga, favorável, enquanto a conseguimos dominar, enquanto estiver ao serviço da tensão que nos anima, ao serviço de um desejo de intensificação, de elevação; o verdadeiro perigo começa quando essa tensão salutar se transforma num excesso de tensão, quando a alma sucumbe ao impulso subversivo, ao vulcanismo do demoníaco. Porque o demónio só pode alcançar a sua pátria, o elemento que lhe é próprio, a infinitude, na medida em que destruir sem compaixão a coisa finita, terrena, em que momentaneamente fixou a sua morada..."

Na verdade, a verdade é mesmo força bacântica em nós. É a mente sem domínio sobre si, liberta da razão, solta e desenfreada como na música. Se queremos que a mente toque o espiritual, então é pô-la a encontrar o seu coro de vozes e, no silêncio, retornar ao ritmo. A mente não tem palavras, tem sons que compõem imagens improváveis, inatingíveis e indefinidas. Se quisermos ser mentais mais do que racionais, espirituais tanto quanto demenciais, escutemos o grande coro da Vida que nunca parou de cantar. Suponho que era essa a ideia de Wagner para o seu teatro: as cantoras eram mesmo só aparência. Nenhum humano pode cantar aquilo se não for já Perséfone, isto é, se já não tiver sido raptado pela Vida e já não for vivente. Aquilo não era um teatro, era o Hades. Não deve ter conseguido explicar isto, não teve palavras para o explicar. Ele que era da música e não do logos. Ele mental, demencial, demoníaco não falava com a razão. Falava já na mistura da mente com o espírito, a música, musicalmente.
O coro que canta o "Inverno" de Vivaldi é quase assim. Aquele canto é a mente e tem a arqueologia de tudo o que é universal dentro e fora de nós. Naquele coro, que ontem ouvi na e com a música de Vivaldi, a Vida sente-se e recolhe-se e expande-se e rapta-nos. Aqui é difícil escutar a mente, porque o real a desmente. E é uma luta desigual, porque a mente não pode argumentar. Só tocar. Tocar-nos até ao choro, até às nossas lágrimas sem porquê, que têm o brilho e as poeiras das estrelas ainda quentes da explosão original. Só consigo responder desta maneira ao que ouvi ontem e tenho lido sobre o desafio que foi lançado: é a razão que pergunta o que é a mente, mas a mente não vai responder. A mente está dentro da música e nos seres que combatem com o seu demónio que neles é musical e rítmico. A mente entusiasma-se não com a linguagem instrumental, mas com o instrumental musical que há em seres que falam cantando, entoando. É por isso que os mantras...
Mas desconfio que quando a razão pergunta o que é a mente, a razão está a perder o pé…e de olhar tanto para dentro do abismo, o abismo olha e chama musicalmente por ela… (Nietzsche sabia-o tão bem…) ela ainda tenta falar, mas sobrevém-lhe um imenso silêncio. Porque há sons que nos deixam mudos. Musical a mente, musicalmente nos deixamos levar sem vontade de voltar.

E, como gostaria de me perder musicalmente na sonata da infinita gratidão por todos os que seres bons, belos e puros que andam no caminho da serpente…

Bebamos, Irmãos, bebamos ! (Canção de beber, para suavizar os efeitos do pensamento)

Do fundo sem fundo de Todo o Mundo vimos
Ao puro Ninguém lestos tornamos
Corações ao almo Esplendor erguidos
Néctar abunde, taças sejamos !

Da ronda do existir desprendidos
Saudade só da Grande Imensidão
Amor reúna os divididos
Amor ressuscite da mortal ilusão !

Sol e Lua, Prata e Ouro fundidos
Núpcias eternas de sábia compaixão
Adamantina folia bailemos
De delícias Jardim o coração !

Fonte de eterna juventude lesta corra
Gaia ciência do Infinito Esplendor
Dela vazios e nus nos inebriemos
Do mais puro e ardente frescor !

Corações taças ao Alto
Flamejante néctar ofertamos
Por que todo o ser livre seja
Bebamos, Irmãos, bebamos !

(in Línguas de Fogo)

Shikantaza no rio Liffey: uma leitura Zen de Ulysses de Joyce

conferência: quinta-feira, 28 de Fevereiro, às 21h30
auditório do Clube Literário do Porto
Rua Nova da Alfândega, nº 22

"Ulysses é o registo de um dia comum, o dia 16 de Junho de 1904, em Dublin. O “herói” deste dia comum é um homem comum, Leopold Bloom, e o livro é o “épico” do seu dia comum em toda a sua pequena e gloriosa banalidade. Bloom é qualquer homem a viver tudo. Realmente tudo! O método de Joyce não deixa nada de fora; este é um espectáculo da totalidade da vida. Neste relato abrangente do dia de Bloom, tudo está ao mesmo nível; para o artista, um facto não tem mais valor do que outro. Ao testemunhar tudo o que surge, Joyce pratica a equanimidade perfeita quando representa os seus personagens tais como eles são. Um antigo mestre Zen uma vez exclamou: “Que belos flocos de neve! Eles não caem num outro lugar.” De igual modo, quando lhe perguntaram numa entrevista por que o pai de Bloom era húngaro, Joyce respondeu, “Porque o é!” Joyce retrata a vida como um todo integrado e coerente, em que cada detalhe é visto tal como é, no seu lugar.

Pode ser dito que a premissa espiritual do livro é uma aceitação total da vida, uma noção fundamentalmente budista. De facto, uma prática essencial do Zen Japonês é aquilo a que se chama shikantaza, que significa literalmente “somente-sentar” ou “só sentar.” É uma prática que não utiliza nenhum suporte meditativo --- nenhum mantra, nenhum objecto de concentração, nenhuma técnica --- e que é caracterizada por uma intensa e não-discursiva atenção. Pode ser simplesmente definida como testemunhar a totalidade da vida. O autor de Ulysses, um irlandês de meia-idade exilado numa Europa do início do Século XX desfeita pela selvageria da guerra, estava de acordo com o Terceiro Patriarca do Zen, o qual escreveu, muitos séculos atrás na China antiga, “O caminho perfeito não é difícil para os que não têm preferências.” Ele também dá eco a outro provérbio tradicional do Zen: “O dharma é igual, sem alto, nem baixo.”

Sensei Amy Hollowell

O que somos nós?

Sem consciência, não haveria coisa alguma para nós, incluíndo nós. Não existimos sem consciência; porque somos pessoas e estas são principalmente consciência. Quando se opera um doente anestesiado não se está a pensar na dor que o deonte está a sentir: porque ele está inconsciente da dor que lhe está a ser incutida. Mas será que as realidades da dor e do prazer são realidades para além do ser para si? Aparentemente, não - uma dor só existe na medida em que é sentida. Assim, há todo um mundo que para existir depende da consciência, embora não saibamos quantas partes do mundo assim sejam. Algumas? Todo?

Será que o eu é algo mais do que consciência de se ser consciente?

O eu é, essencialmente, ser para si, e tudo e nada mais do que isso é eu. Penso que a coisa mais interessante, o fenómeno, nesta vida é o ser para si, na medida em que se é ele mesmo para si ou outra coisa para si. O eu tem consciência de ser eu e não de ser outro. "Eu" quer dizer que eu sou igual a mim mesmo, juntando ao que já foi dito. Posso existir ainda que esteja inconsciente; isto se me identificar com um fenómeno que é exterior à minha consciência de mim. Mas o eu é indissociável da consciência de si; é o que é mais. Quando não há consciência de si não há eu? Não há eu para nós, e eu é sempre eu para nós, não havendo, portanto eu. Resta saber se, ao longo de uma vida, há momentos em que eu não existo. Parecem haver (talvez no sono profundo) e o interessante é verificar que é sempre o mesmo eu que reaparece: eu sou sempre eu e não outro. Falta também saber se, na verdade, estamos inconscientes de nós mesmos em estados de sono profundo ou mesmo em estados de concentração em fenómenos outros, o que parece ser verdade - a consciência de si parece aparecer e desaparecer em vários momentos. Mas deixamos de ser nós próprios nesses momentos?

Será que somos sempre nós próprios? A que se refere a palavra "nós" na pergunta? O que somos nós?

Consciência da consciência, consciência pura

Os fenómenos são manifestações. De quê? Não sabemos. Só há duas vias possíveis de conhecimento: a dos fenómenos e a das suas causas que é, em última instância, de uma suposta causa única ou da coisa que são todas as coisas. Mas, para nós, todas as coisas são fenómenos; tudo nos aparece como fenómeno, incluídos nós mesmos, na medida em que "fenómeno" significa "ser para uma consciência". Dizemos, então, que nos aparecem como fenómenos, mas que podem não o ser, na medida em que podem ser algo mais, quer dizer, objectos independentes da consciência. E nós, que tipo de objecto somos? Dependente da consciência, porque o eu é uma construção mental mas, também, um eu para mim; porque eu sou o eu e isto implica consciência. É por isso legítimo perguntar-se se sempre tivemos ou teremos consciência, o que é o mesmo que existir ou se, por outro lado, existimos apenas entre os nossos nascimento e morte. São perguntas que provêm de uma mente mas, principalmente, de um eu, porque sem consciência não existiriam perguntas. A mente tem inúmeras funções, centenas. É muito fácil, evidente e simplista agrupá-las apenas em seis ou sete, porque cada uma dessas contém centenas de outras. Se pararmos para pensar sobre isso, tomando atenção sobre o que a mente está a ou o que pode fazer, descobrimos centenas de pequenas funções que vão ocorrendo. Por isso, a mente é capaz de inúmeras coisas, incluíndo pensar que poderia existir sem consciência. Mente sem eu. Talvez seja o caso dos computadores e dos robots: pensamentos sem consciência? Há algo mais importante do que isso, para nós, que é o sermos para nós, o eu; e se somos desde e para sempre nós ou se somos entre nascimentos e mortes. A própria lógica de sermos entre nascimentos e mortes, implica que somos um mesmo, mas não se sabe se há mais do que um nascimento e uma morte para cada eu. Mas o eu resume-se bem na ideia de que é o ser que é ser para si. Como tal, é consciência, mas de ser uma série de coisas, incluíndo, principalmente, um corpo e uma mente. Cada uma destas palavras contém em si inúmeras outras, que escolhemos agrupar sobre os títulos de "corpo" e "mente". E esses algos são independentes da consciência, excepto no serem para algo que tem consciência que o são. Somos tudo o que somos, conscientes ou inconscientes disso, excepto no eu que é, principalmente e quem sabe se exclusivamente, ser para si. Ser um eu é ser um ser que é para si, que tem consciência de si; é, primeiro, ter consciência de si enquanto ser consciente. Consciência da consciência, consciência pura.

Cadelinha abandonada - Ruca

Olá a todos,

Se alguém quiser e puder ficar com uma cadelinha grande e preta, chamada Ruca, cuja mãe era uma rafeira alentejana pura e o pai, pensa-se, pastor alemão, com dois anos feitos em Agosto, por favor contacte.

Tenho um vizinho que irá mandar abater a cadela dele se não encontrar quem fique com ela nos próximos dias...É infelizmente muito triste, mas há pessoas para tudo.

Se puderem reencaminhar esta mensagem, fico-vos muito grata.

Abraços,


Sónia

966454840

ou

Susana – 96694551
210179778

Cantiga de Amigo aplicada a Paulo Feitais (com Voltagem apressada)

Meu amigo, pois vós tan gran pesar
havedes de mi vos eu assanhar,
por Deus, a quen m'assanharei,
amig', ou como viverei?

Se m'eu a vós, meu amigu'e meu ben,
non assanhar, dizede-m'ũa ren:
por Deus, a quen m'assanharei,
amig', ou como viverei?

Se m'eu a vós, que amo máis ca mí,
non assanhar, se sabor houver i,
por Deus, a quen m'assanharei,
amig', ou como viverei?

Se m'eu a vós d'assanhar non houver,
siquer dõado, quando m'eu quiser,
por Deus, a quen m'assanharei,
amig', ou como viverei?

Vasco Fernandes Praga de Sandín




Volta, Paulo, Volta

EUREKA:-)!

"A mente tem seus usos limitados. Use-a. Quando você estiver trabalhando em seu escritório, não estou lhe dizendo para ser um sem-mente. Quando você estiver trabalhando em sua loja ou na fábrica,Não estou lhe dizendo para ser um sem-mente. Estou dizendo que você seja perfeitamente uma mente. Use a mente, mas não a leve por vinte e quatro horas, continuamente com você. Não se arraste nisso. Use-a como você usa uma cadeira."

E ISSO! E ISSO! E ISSO!

Muito obrigada, Luar Azul!

Acho que esta noite vou conseguir gostar um pouco mais do que vejo ao espelho;-)!

Muito obrigada tambem ao Paulo Borges:-)!

Tudo aquilo que faco nao passam de fenomenos. Nem sou eu que os faco. Apenas faco parte dos feixes de energia que sao esses fenomenos. O estudo, as investigacoes, as viagens, as festas, as jantaradas, as leituras, as inquietacoes. Tudo.

A ilusao que e o "eu" nao passa de uma interseccao desses fenomenos. Nada mais.

Estou no bom caminho?

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Das duas três

Há duas funções na mente, que se activam como gémeas e simultâneas possibilidades do seu estado natural e primordial, livre de existência e de funções: uma apenas reconhece haver fenómenos e a sua inseparabilidade disso, interagindo com eles numa espontânea sensibilidade e criatividade; a outra produz ilusões, a começar pela da existência separada de si e dos fenómenos que percepciona, continuando pela determinação de haver isto ou aquilo que se manifesta, com estas ou aquelas características, e pela tentativa de organização e gestão da sua relação com isso, movida pelo desejo e pela rejeição. Destas duas resulta uma terceira, a de encontrar os modos de regressar do exercício da segunda ao da primeira e, daí, ao primordial estado natural. A esta chama-se espiritualidade, que inclui uma ética. Cumpre-se dissolvendo-se.

Será a mente?

O comentador "ó nuno" comentou que tenho tendência para entupir o blogue com posts atrás de posts. Isso não deixa de ser verdade mas, como tudo, tem uma razão de ser: faço-o porque me surgem ideias repentinas sobre os mais variados assuntos - ultimamente sobre a mente, vida eterna, etc. - que escrevo mas que, rapidamente, se tornam obsoletas, tentando então ultrapassá-las com novas ideias, palavras, que surgem.

Penso que há um desafio, que foi lançado, neste blogue, que nos desafia a tentar dizer o que é a mente, esse objecto não identificado. E isto nem passa por ser verdade, porque se há objecto identificado é a mente, pelo menos imaginado, que, supostamente, é o conjunto de todos os estados e operações mentais que uma pessoa tem: percepções, sentimentos, memórias, raciocínios, desejos, e toda uma vasta série de processos que ocorrem através da mente, mas não sabemos se devido à mente.

É tida como algo incorpóreo que até pode ser considerado como emergindo do corpo, ou tendo alguma relação com o corpo, na medida em que onde há estados e operações mentais, há operações corpóreas, como estar no estado mental que existe quando é libertada adrenalina no corpo.

Será a mente mais do que aqueles respectivos estados e operações, como estar a lembrar ou estar a raciocionar, ou é o que eles são? Mas o que são eles? Onde é que existem; por exemplo, onde é que existe aquilo que é, para mim, minha memória, minha imaginação, meu desejo, e assim por diante? Onde é que existe o ser para mim? Na consciência, sem dúvida mas, então, perguntemos o que é a consciência e qual a sua natureza (se é corpórea, se é uma propriedade, se uma substância, se eterna ou não eterna...).

Parece-me, primeiro e talvez em último, que não é eterna, porque eu não me lembro de todo o passado. Ou será que me lembro do meu eterno passado? Há, ao fundo, uma indefinição que, provavelmente, é a não existência ou, mesmo, a existência num estado de indefinição, caótico ou, mesmo, num estado de nada, o que seria um estado de inconsciência e, por isso, não estaríamos a falar de consciência mas de algo que é e não é consciência, em momentos diferentes ou ao mesmo, porque enquanto algo é outra coisa não é consciência. Quer dizer, não há omnisciência. Mas terá havido algum momento, em cada uma das nossas consciências e, no fundo, em cada um de nós, um estado em que tínhamos plenamente consciência do que é ser eu, na medida em que a característica principal da consciência não é (ou apenas) ser sobre algo, mas ser para mim? Tive, tenho, ou terei algum momento em que tive, tenho, ou terei, plena consciência de mim próprio? Por exemplo, não tenho consciência de todo o meu passado, mas terá a minha consciência começado a ser no momento do meu nascimento ou da minha existência enquanto embrião, ou é incorpórea, eterna, imutável, e existe desde e para sempre? É que as consciências estão a mudar, mas a consciência está lá sempre, talvez, excepto, no sono profundo acerca do qual, ainda assim, se pode defender que há consciência... mas de quê? Pode ser o momento em que a alma se retira em si própria e, se se quiser, identificar esta alma com a mente que pode, ou não, estar inconsciente.

Mas, como buscadores da verdade, queremos saber as suas características, se existe sempre e assim por diante, embora pense que buscamos esse conhecimento mais por vontade de nos conhecermos do que a outra coisa e, como tal, essa busca resume-se na busca do eu, daquilo que julgamos profundamente ser, eu ou não-eu, existe ou não-existente, desejamos com ela saber o que somos realmente. Assim, é uma busca metafísica, na medida em que, nesta, deseja-se saber como são realmente as coisas. Provavelmente, podemos saber o que são certas coisas, mas há uma coisa que parece ser verdade: é que não se não soubermos a coisa una que é todas as coisas, se não descobrirmos a total unidade nelas, não sabemos o que são, para lá das aparências... Pergunta-se então - o que é tudo? Qual a coisa que são todas as coisas? E isto porque temos tendência a agrupar e a fazer depender tudo de um princípio único, que desconheço.

Será a mente?

Vou contar-vos um segredo...

Sempre que me sinto em baixo, pelas mais variadas razões, é esta música, nesta versão ao vivo, que ouço. É como se ela me transmitisse alguma coisa que sinto como verdaderia, e me permitisse fazer a catarse dos dias.

Cheheltan (2005) de Seyed Edalatpour




























"Cheheltan is a group of forty figure placed upon slate platform.(...) Cheheltan was first exhibited at the Herbert Read Gallery in Canterbury, England in October 2006. The concept of Cheheltan originates first in the journey of si-murgh in the book of Mantiq al-tayr (The Conference of the Birds) which was written by the twelfth century Persian poet, Farid ud-Din Attar. It is a conversation, a gathering and an adventure which take the protagonists to the Mountain of Qaf, a conceptual place where the possibility of the return is promised. "NA-KOJA-ABAD” provides the second source of inspiration and the framework for Cheheltan. It is a an idea which was first mentioned by Sohravardi the Twelfth century Persian philosopher, In the tale entitled " The Rustling of Gabriel's Wings," a figure appears and he is asked the question “Where he is from”, and the reply is this: "I come from Na-koja-Abad." Na-koja-Abad is a strange term. It does not occur in any Persian dictionary, and it was coined by Sohravardi himself, from the resources of the purest Persian language. It signifies the city, the country or land (abad) of No-where (Na-koja)."

in http://www.edalatpour.net/chehltan2.html

Ver tb.o ensaio de Henry Corbin Mundus Imaginalis: http://www.hermetic.com/bey/mundus_imaginalis.htm



A mente?
Eu já (o "já" é para não levar demasiado a sério) não me questiono sobre o que é a mente. Não que não considere que essa questão não deva ser colocada. Muito pelo contrário.
Mas trata-se duma questão na qual nos arriscamos a gesticulá-la no rebordo da experiência entificadora (e identificadora) da linguagem, aí mesmo onde o solo em que fundamos as razões que nos dão a consciência de sermos animais adeptos do Lógos, nos foge das plantas dos pés, plantas sem raízes, por isso utópicas e sempre a gerir desequilíbrios... Ficamos assim suspensos do abismo cuja boca calámos, primeiro com a conceptualidade Grega (para não falar do fonocentrismo adâmico, a autêntica expulsão do paraíso é o chamar nomes às coisas e aos seres vivos, nomes que se lhes colam e não os deixam surpreender-nos com a efectiva possibilidade de serem outros e vários), depois as geografias conceptuais que fecharam o Ocidente à errância e à sabedoria de querer estar sempre a principiar, de querer ser sempre principiante, ou seja, Príncipe do impossível, menino (ou menina) eterno, ao beber-se no tempo como uma emanação serpentina do a-eterno que vibra no coração mesmo da eternidade, coração evanescente e nunca existido, sempre ainda amante, na perdição de se dar e se desapossar dum si ou dum para ou dum porquê...
A mente será tudo, o que diz, o que se diz, o que faz, o que se faz, o que ama, o que se ama, o que é, o que não é, mas não é nada disto, ao mesmo tempo que não é um algo, não sendo palpável, é o que investe a palpitação do palpar, a sensação do sentir, a cognição do conhecer, a intelecção do inteligir e é a ilusão, essa carapaça diáfana que serve de invólucro à "luz" da "Iluminação", que tem que ser rasgada, aceitando a cegueira e a ignorância na escuridade de não ser um Isso (um Id) ou um Ego, uma coisa que pensa.
Um exercíco que faço muitas vezes é assumir todos os actos dos humanos (e dos seres sencientes e, também, de todas as coisas) como actos de um mim absoluto, ou seja, na aparência rasgado e disperso, feito em pedaços e sofrendo com isso. Assim a inveja, que é não me ver no outro, ou não ver o melhor de mim no outro, torna-se impossível.
O que é a mente?
Só tem sentido questioná-lo (tem "o" sentido, nela reside a propriedade do sentido) se nos atirarmos, a nós e aos mundos de que nos revestimos, de chofre, para o centro do turbilhão desta demanda abissal. Não havendo propriamente "regresso", desta viagem já não se sairá e se fosse possível sair dela, já não seríamos "nós", a egoticidade auto-instituída na separatividade, a fazê-lo.
Creio que é aqui que reside o "treino de morrer e estar morto" do Fédon. Embora o Sócrates-moscardo já não tivesse palavras para dizê-lo em toda a sua profundidade. A Cicuta falou nele com a eloquência da mais alta sofística.
E nunca saí "daqui", nem sairei. Até sempre!

O meu céu será sempre Verde



Cloud nine, 2007, por Ninguém

ainda que o luar seja azul.

O que é a mente ?

"No íntimo da essência da mente desperta totalmente pura, / não há nenhum objecto a ver ou algo que constitua uma visão - / nem o mínimo sentido de algo a observar ou de alguém observando. / Não há consciência comum que medite ou algo sobre o qual se medite. / Devido à presença espontânea, sem qualquer dualidade de objectivo e conduta, / não há o mínimo sentido de qualquer fruição a alcançar"
-Longchenpa (1308 – 1363), The Precious Treasury of the Basic Space of Phenomena, Junction City, Padma Publishing, 2001, p.43.

Gostaria de voltar a Portugal

De encontrar "um lugar ao sol" no meu querido e tão sofrido país, onde se exclui tanto, se corrompe tanto e tanto se faz sofrer a quem mais tem vontade de viver e realizar os seus sonhos ...

Adoro viajar, sou uma aventureira nata e cada dia que passa acordo profundamente agradecida por toda a aprendizagem que faço pelo mundo fora. Ser-se embarcadiç@ nas Caravelas é a melhor educação que uma pessoa pode ter. Se tivesse ficado em Portugal teria estagnado, e como disse o querido e muito saudoso Agostinho da Silva, estaria a esta hora "aborrecida da vida".

O mundo é lindo ... Cada país é maravilhoso nas suas grandezas e misérias.

No entanto, parece ainda mais tentador no desaguar do Tejo ou nas praias do Algarve, o Atlântico estendendo-se diante dos nossos olhos, numa tarde perfumada de Maio ou Junho, o nosso coração feito Caravela prestes a partir, desbravar, sorver, amar, sofrer, rir, partilhar, viver ... Ir e voltar, para partir de novo ...

Nós Portugueses não temos emenda;-) ...

O Barco Vai de Saída (Fausto)
http://www.youtube.com/watch?v=jHDgK_HoRTw&feature=related

O barco vai de saída
Adeus ao cais de Alfama
Se agora ou de partida
Levo-te comigo ó cana verde
Lembra-te de mim ó meu amor
Lembra-te de mim nesta aventura
P'ra lá da loucura
P'ra lá do Equador

Ah mas que ingrata ventura
Bem me posso queixar
da Pátria a pouca fartura
Cheia de mágoas ai quebra-mar
Com tantos perigos ai minha vida
Com tantos medos e sobressaltos
Que eu já vou aos saltos
Que eu vou de fugida

Sem contar essa história escondida
Por servir de criado essa senhora
Serviu-se ela também tão sedutora
Foi pecado
Foi pecado
E foi pecado sim senhor
Que vida boa era a de Lisboa

Gingão de roda batida
corsário sem cruzado
ao som do baile mandado
em terra de pimenta e maravilha
com sonhos de prata e fantasiac
om sonhos da cor do arco-íris
desvaira se os vires
desvairas magias

Já tenho a vela enfunada
marrano sem vergonha
judeu sem coisa nem fronha
vou de viagem ai que largada
só vejo cores ai que alegria
só vejo piratas e tesouros
são pratas, são ouros,
são noites, são dias

Vou no espantoso trono das águas
vou no tremendo assopro dos ventos
vou por cima dos meus pensamentos
arrepia
arrepia
e arrepia sim senhor
que vida boa era a de Lisboa

O mar das águas ardendo
o delírio do céua fúria do barlavento
arreia a vela e vai marujo ao leme
vira o barco e cai marujo ao mar
vira o barco na curva da morte
e olha a minha sorte
e olha o meu azar

e depois do barco virado
grandes urros e gritos
na salvação dos aflitos
estala, mata, agarra, ai quem me ajuda
reza, implora, escapa, ai que pagode
rezam tremem heróis e eunucos
são mouros são turcos
são mouros acode!

Aquilo é uma tempestade medonha
aquilo vai p'ra lá do que é eterno
aquilo era o retrato do inferno
vai ao fundo
vai ao fundo
e vai ao fundo sim senhor
que vida boa era a de Lisboa

Monstros

Ser humano: Quanto mais intelectualizado, mais ridículo e monstruoso.

Volto a casa depois de uma palestra com um conhecido sociólogo Norte-americano (vou dar um troféu áquel@ que, de entre vocês, nunca tenha ouvido falar de nenhum@ sociólog@. É sinal de saúde).

O senhor, na sua boa vontade, propôs mais um modelo para compreender a complexa realidade das dinâmicas de grupo e instituições humanas.

Dei por mim a olhar para o palestrante e para a audiência e a achar tudo ridículo, absolutamente ridículo, incluíndo eu mesma e a minha presença alí (que mal agradecida que eu sou, a sentir-me ridícula e a achar tudo ridículo na ocasião em que tenho o privilégio e a honra de ouvir o Prof. X, há tanta gente gostaria de estar no meu lugar). Quem somos nós para julgar que podemos conceptualizar, medir e prever o comportamento humano? Não fazemos mais nada do que criar consruções mentais, castelos no ar que nos aprisionam dentro das masmorras da mente e nos impedem de usufruir do mundo com plenitude ...

O senhor apresentava o seu modelo com um toque de ironia, um humor que, mesmo que sorridente e galhofeiro, não conseguia disfarçar um certo toque de tristeza.

A uma dada altura reconheceu que todos os que estavam na sala, salvo raras excepções, devem ter sido os "nerds" do seu liceu, e que continuavam alí, aos vintes e tais, trintas e tais, quarentas, cinquentas, a exorcizar a saudade dos amores de adolescentes que não tiveram, das tardes de sol que não aproveitaram, da rebeldia que não exprimiram por medo, conformismo ou pela perspectiva de recompensas dos professores, dos pais e dos futuros empregadores.

Saudade esta que motiva as tiradas cínicas que muitos universitários dão aos desportistas, estrelas de cinema, "hippies", ricaços, místicos dos quatro pontos cardeais, meninas apaixonadas, políticos, meninos libidinosos, mães-galinhas, libertinos e "bom-vivants" de toda a espécie.

E que os impulsiona a passar o resto da vida a criarem modelos mentais para justificar a sua própria existência.

Ironia esta que mal disfarçava dúvidas sobre a utilidade de todos nós enquanto intelectuais, profissionais e seres humanos.

Ache que não é coincidência que o primeiro ano de um programa de Doutouramento tem uma carga de trabalho de tal modo pesada que obriga o estudante a desistir de todos os seus interesses e reduzir a sua vida apenas ao trabalho, ao mental.

Anestesia-se os sentidos. Aliena-se o corpo. Desleixa-se a práctica espiritual.

Para que nos anos seguintes o estudante se sinta culpado quando faz outra coisa sem ser trabalhar.

E que pelo caminho produza, produza, produza muito. Viva (?) para produzir.

Só agora que cumpri a parte curricular do Doutouramento consegui obter a minha vida de volta e ganhar tempo para outros interesses. Tem sido um esforço o de não me sentir culpada quando não estou a trabalhar.

E o de olhar ao espelho e por vezes conseguir gostar um pouco do que vejo.

Este blogue tem me ajudado a recuperar a sanidade mental.

Obrigada a todos vocês por existirem.

PS - É por estas razões que uma vez escrevi neste blogue "morte aos intelectuais". Queria muito matar a "marrona" que há em mim. Nós somos uma praga. Eu sou uma praga.
No entanto, gosto de cumprir o que prometo e acabar o que faço, por isso vou terminar o Doutouramento. Depois logo se vê;-) ...

À Espreita

Orar amar chamar a dor

Cantar quebrar velar o amor


quem me chama e de onde?

O corpo estranha e mente

não é daqui quem lá está dentro


Orifício, sacrifício do olhar

Por onde espreito que não vejo

qual é a porta deste altar ?

O fio de fiar, de passar

atravessa e parte


p’ra que parte?

Pr’a que parte?

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

A Mente? ... - mente?

Não defino para não limitar a possibilidade de ser diverso ou não ser
infinitamente


O Insondável, o que imite e capta sinais?

Einstein estava certo ao formular que tudo contém Energia?

A energia produz Acção

As acções deixam marcas no Universo

Como é isto de “pensar”, alguém sabe?

O condenado aspira ao paraíso

"Gozar antecipadamente seja o que for, aqui ou alhures, é fornecer a prova de que se arrastam ainda cadeias. O condenado aspira ao paraíso; esta aspiração rebaixa-o, compromete-o. Ser livre, é desembaraçar-se para sempre da ideia de recompensa, é não esperar nada dos homens nem dos deuses, é renunciar não somente a este mundo e a todos os mundos mas à própria salvação, é quebrar dela mesmo a ideia, esta cadeia entre as cadeias"
- E. M. Cioran, "Le Mauvais Démiurge"

E tudo tem uma razão

E não fazer mal é já fazer bem, porque é difícil nunca fazer mal. É quase inimaginável uma pessoa que nunca tenha feito nenhum mal na sua vida; e é difícil imaginar uma pessoa que nunca tenha feito bem na sua vida. Se calhar o mal e o bem até são comuns, ou quem sabe se equilibrados, quem sabe... se houver uma razão para isso... de resto são-no por acaso, embora nada pareça ser por acaso, mas causado. Até que chegamos a algo que é causa de si mesmo; que está sempre a causar-se, para não haver Nada. Não há razão nenhuma para que o Nada exista. E tudo tem uma razão. Daí a primeira hipótese: há algo que está sempre a causar-se, que nunca desaparece, que está em tudo e em todo o lado, porque tudo vem daí, é tudo da Sua natureza.

Se não existisse dor física

E o Inferno e o Paraíso dependem de consciências, porque todo o mal ou bem vem a sentir-se, na medida em que se não se sentisse não era nem um nem outro... mas resta saber se podem existir Mal ou Bem Absolutos em algum momento das nossas vidas, o que não sabemos Absolutamente, mas sempre acerca de nós, considerando, por exemplo, a dor física extrema o pior mal da vida. É uma perspectiva materialista? Não, é realista, na medida em que seja que for que sonho que sonhemos o sonho é este sonho, é o que está a acontecer, nada mais. Ou haverão sensações piores? Se não existisse dor física, existiria dor de espécie alguma?

O Paraíso

Foi feita, neste blogue, uma pergunta: o que é a mente? Era suposto que começássemos, a partir daí, mas não necessariamente sempre, a investigar o que é a mente. Eu não sei o que é a mente. Vinha no caminho para casa a pensar acerca da mente, e vinha com algo que esqueci, que tem a ver com ser intuitivo, para cada um, o que é a mente, e que afinal não esqueci, que são todas aquelas operações de pensamento que fazemos, tudo o que consciencializamos, reparamos, fazemos, tudo isso é mente ou oriundo da mente. Sim, há ou parecem haver corpos, e não sabemos se as mentes estão nos corpos, se estes nas mentes - o que parece mais estranho -, bem como muitas outras perguntas: viverei para sempre? Viverei depois da morte? Perguntas muito mais pertinentes do que "o que é a mente?", muito mais pujantes. Perguntar por o que é a mente parece ser perguntar por uma evidência, na medida em que esta é altamente intuitiva para quem tem ou é uma mente, nem que em parte. Mas qual a natureza da mente? Eis uma pergunta altamente interessante, por perguntarmos se há a possibilidade de existirmos antes ou depois da vida em consciência; e isso porque temos a supor que os corpos datam de entre os nascimentos e mortes das pessoas, aparentemente incluídos. Se há algo imortal, é a mente, porque consideramos, normalmente, que somos corpo e mente, nada mais. Mas há interesse numa eternidade? Há, se desejada, uma eternidade boa - quem quer arder no Inferno? O Inferno é a possibilidade de uma eternidade má, seja ela como for. Muito mais, o Inferno é tido, se virmos bem as coisas, como o Mal Absoluto. Tudo o que for mau, se acontecer na eternidade, acontece no Inferno. O Paraíso, por sua vez, é um lugar Absolutamente Bom.

The Silent Flute


I wish neither to possess,
nor to be possessed.
I no longer covet paradise,
more important, I no longer fear hell.
The medicine for my suffering
I had within me from the very beginning,
But I did not take it.
My ailment came from within myself,
but I did not observe it
until this moment.
Now I see that I will never find the light
unless, like the candle, I am my own fuel,
Consuming myself.

Uma fábula já velha?

Ofereço-vos, amigos, uma fábula do escritor de origem afegã Idries Shah. Ele tem uma dedicatória num livro, Contos dos dervixes, que diz: "Aos meus mestres, tomaram o que foi dado, deram o que não podia ser tomado". Sempre gostei muito de esta dedicatória.

OS ILHÉUS

"O homem comum se arrepende dos seus pecados; o eleito se arrepende da insensatez deles"
(Dh'l-Nun Misri)

A maioria das fábulas contém pelo menos alguma verdade, e elas, não raro, facultam às pessoas a absorção de idéias que os modelos comuns do seu pensamento as impediriam de digerir. As fábulas, portanto, têm sido usadas pelos mestres sufistas a fim de apresentar uma imagem da vida mais em harmonia com os seus sentimentos do que seria possível por meio de exercícios intelectuais. Aqui está uma fábula sufista a respeito da situação humana, sumariada e adaptada adequadamente, como sempre deve acontecer, ao tempo em que é apresentada. As fábulas comuns de "entretenimento" são consideradas pelos autores sufistas uma forma de arte degenerada ou inferior.

Era uma vez uma comunidade ideal que vivia numa região muito distante. Seus membros não tinham temores como os que hoje conhecemos. Em lugar da incerteza e da vacilação, tinham determinação e meios mais completos de se expressar. Embora não houvesse nenhuma das tensões e pressões que a humanidade considera hoje essenciais ao seu progresso, suas vidas eram mais ricas, porque outros elementos, melhores, substituíam essas coisas. Seu modo de existência, por sua vez, era ligeiramente diferente. Poderíamos quase dizer que nossas percepções atuais são uma versão crua, provisória, das percepções reais que possuía a comunidade. Suas vidas eram reais, e não semi-vidas. Podemos chamar-lhes o povo de Al-Re.
Eles tinham um líder, que descobriu que o seu país se tornaria inabitável por um período, digamos, de vinte mil anos. Em vista disso, planejou-lhes a fuga, compreendendo que seus descendentes só conseguiriam voltar para casa depois de inúmeras tentativas. Encontrou para eles um lugar de refúgio, uma ilha cujas características se pareciam ligeiramente com as de sua terra natal. Por causa da diferença de clima e situação, os imigrantes tiveram de sofrer uma transformação, que os tornou, física e mentalmente, mais adaptados às novas circunstâncias; percepções grosseiras, por exemplo, substituíram as percepções mais finas, como quando as mãos do trabalhador manual se tornam mais calosas em resposta às necessidades do seu ofício. Com a intenção de reduzir a dor que traria uma comparação entre o estado antigo e o novo, eles foram induzidos a esquecer quase inteiramente o passado. Só ficou dele a lembrança mais vaga, embora suficiente para ser redespertada quando chegasse a ocasião. O sistema era muito complicado, mas bem ordenado. Os órgãos através dos quais o povo sobreviveu na ilha foram também transformados em órgãos de prazer, físico e mental. Os órgãos que eram construtivos em sua velha terra natal foram colocados numa espécie de inatividade provisória e ligados à lembrança vaga, preparados para sua posterior ativação.

Lenta e penosamente, os imigrantes se instalaram, ajustando-se às condições locais. Os recursos da ilha eram tais que, unidos ao esforço e a certa forma de orientação, permitiriam ao povo fugir para outra ilha, no caminho de volta ao lar original. Essa foi a primeira de uma sucessão de ilhas em que se verificou a gradativa aclimatação. A responsabilidade da "evolução" coube aos indivíduos capazes de arcar com ela. Eram, por força, apenas uns poucos porque, para a massa do povo, o esforço de manter as duas séries de conhecimentos em suas consciências revelava-se virtualmente impossível. Uma delas parecia conflitar com a outra. Certos especialistas guardavam a "ciência especial". Esse "segredo", o método de levar a efeito a transição, era nada mais nada menos do que o conhecimento das habilidades marítimas e sua aplicação. A fuga exigia um instrutor, matérias-primas, gente, esforço e compreensão. Havendo tudo isso, o povo poderia aprender a nadar e também a construir navios. A gente originalmente encarregada das operações de fuga esclareceu a todos que se fazia necessário certo preparo antes que alguém pudesse aprender a nadar ou até participar da construção de um navio.

Durante algum tempo, o processo prosseguiu satisfatoriamente. Nisso, um homem considerado, na ocasião, carecedor das qualidades necessárias rebelou-se contra essa ordem e conseguiu desenvolver uma idéia magistral: Observara que o esforço para fugir colocara um fardo pesado e, não raro, aparentemente aborrecido sobre o povo, que se mostrava, ao mesmo tempo, disposto a acreditar nas coisas que lhe contavam sobre a operação de fuga. O homem compreendeu que poderia adquirir poder e também vingar-se dos que o haviam menosprezado pela simples exploração das duas séries de fatos. Oferecer-se-ia, simplesmente, para tirar-lhes o fardo das costas, afirmando não haver fardo. E fez esta declaração: "O homem não precisa integrar a mente e treiná-la da maneira descrita a vocês. A mente humana já é uma coisa estável, contínua e consistente. Disseram-lhes que vocês precisavam tornar-se artífices para construir um navio. Pois eu lhes digo que não precisam ser artífices - não precisam de navio algum! Um ilhéu tem apenas de observar umas poucas regras simples para sobreviver e permanecer integrado na sociedade. Pelo exercício do bom senso, inato a todos, pode alcançar qualquer coisa nesta ilha, nosso lar, propriedade e herança comuns a todos!"

Tendo provocado grande interesse no seio do povo, o tagarela, em seguida, "provou" sua mensagem, dizendo: "Se houver alguma realidade em navios e em nadar, mostrem-nos navios que fizeram a viagem e nadadores que voltaram!" Era um desafio aos instrutores, que não o podiam enfrentar. Baseava-se numa suposição cujo sofisma não poderia ser detectado pelo rebanho bestificado. A verdade é que nunca tinham voltado navios da outra terra. E os nadadores, quando regressavam, eram submetidos a uma nova adaptação que os tornava invisíveis à multidão. O populacho instou para que lhe fornecessem uma prova demonstrativa. "A construção de navios", disseram os encarregados da ruga, numa tentativa de argumentar com os revoltosos, "é uma arte e um ofício. O aprendizado e o exercício dessa ciência dependem de técnicas especiais, as quais, juntas, formam uma atividade total, que não pode ser examinada por partes, como vocês estão querendo. Essa atividade contém um elemento impalpável, chamado baraka, do qual deriva a palavra 'barco' - navio. A palavra significa 'a sutileza' e não lhes pode ser mostrada." "Arte, ofício, total, baraka, tolices!", berraram os revolucionários. E enforcaram quantos artífices empenhados na construção de navios puderam encontrar. O novo evangelho foi acolhido com entusiasmo por todos os lados como um evangelho de libertação. O homem descobrira que já estava maduro! Tinha a impressão, pelo menos naquele momento, de que fora desonerado da responsabilidade. A maioria das outras maneiras de pensar foi logo absorvida pela singeleza e pelo conforto do conceito revolucionário, que passou a ser considerado um fato básico, jamais contestado por nenhuma pessoa racional. Por racional, é claro, subentendia-se qualquer pessoa que se ajustasse à teoria geral em que se baseava agora a sociedade. As idéias que se opunham aos novos conceitos foram facilmente denominadas irracionais. Todo irracional era ruim. Daí por diante, ainda que tivesse dúvidas, o indivíduo tinha de suprimi-las eu afastá-las, porque precisava ser tido por racional a todo o custo. Não era muito difícil ser racional. Bastava à pessoa aderir aos valores da sociedade. Além disso, abundavam as provas da verdade da racionalidade - contanto que as pessoas não se pusessem a pensar além da vida na ilha.

A sociedade, agora, temporariamente equilibrada no interior da ilha, parecia proporcionar uma inteireza plausível, pelo menos vista através de si mesma. Fundada na razão acrescida da emoção, fazia que ambas parecessem plausíveis. Permitia-se, por exemplo, o canibalismo com base em argumentos racionais. Descobriu-se que o corpo humano é comestível. A comestibilidade é uma característica do alimento. Por conseguinte, o corpo humano era alimento. Com a intenção de compensar as deficiências desse raciocínio, foi utilizado um artifício. Controlou-se o canibalismo no interesse da sociedade. O meio-termo era a marca registrada do equilíbrio temporário. De quando em quando alguém assinalava um novo meio-termo, e a luta entre a razão, a ambição e a comunidade produzia alguma nova norma social.

Uma vez que as habilidades necessárias à construção de navios não tinham nenhuma aplicação óbvia dentro da sociedade, o esforço poderia facilmente ser considerado absurdo. Os barcos eram dispensáveis - não havia para onde ir. As conseqüências de certas suposições podem ser levadas a "provar" as ditas suposições. É a isso que se dá o nome de pseudocerteza, a substituta da certeza verdadeira. É com isso que lidamos todos os dias, ao supor que viveremos outro dia. Mas os nossos ilhéus aplicavam-na a tudo. Dois verbetes da grande Enciclopédia universal da ilha mostram-nos como funcionava o processo:

NAVIO: Desagradável. Veículo imaginário em que impostores e enganadores asseveraram ser possível "transpor a água", o que hoje está cientificamente provado que é um absurdo. Não se conhece na ilha nenhum material impermeável à água com o qual se pudesse construir um "navio" nessas condições, sem falar na questão de saber se existe ou não uma destinação além da ilha. A MANIA DA CONSTRUÇÃO DE NAVIOS, forma extrema de escapismo mental, é um sintoma de desajuste. Todos os cidadãos se encontram na obrigação constitucional de notificar as autoridades sanitárias se acaso suspeitarem da existência dessa trágica condição em qualquer indivíduo. Veja: Natação; Aberrações mentais; Crime {Capital). Leituras: Por que os "navios" não podem ser construídos, de Smith, J., Monografia da Universidade da Ilha, número 1151.

NATAÇÃO: Repugnante. Suposto método de propelir o corpo através da água sem se afogar, geralmente com o propósito de "alcançar um lugar fora da ilha". O "estudante" dessa arte repugnante tinha de submeter-se a um ritual grotesco. Na primeira lição, tinha de deitar-se no chão e mover os braços e as pernas em resposta às instruções do "instrutor. Todo o conceito tem por base o desejo dos pretensos "instrutores" de dominar os crédulos nas épocas bárbaras.
Usavam-se as palavras "desagradável" e "repugnante" na ilha para indicar o que quer que entrasse em conflito com o novo evangelho, conhecido pelo nome de "Agradar". A intenção por trás disso era que as pessoas se agradassem dentro da necessidade geral de agradar ao Estado. O Estado passava a significar o povo todo. Não é de admirar que, desde os tempos mais primitivos, a idéia de deixar a ilha enchesse de pavor a maioria das pessoas. Da mesma forma, descobre-se um medo muito real nos prisioneiros condenados a penas demasiado longas quando se vêem na iminência de ser libertados. Qualquer lugar "fora" do local de cativeiro é um mundo vago, desconhecido, ameaçador. A ilha não era uma prisão, mas sim uma jaula de barras invisíveis, porém mais eficazes do que o seriam quaisquer barras óbvias.

A sociedade insulana foi se tornando cada vez mais complexa, e sua literatura muito rica. Além das composições culturais, havia também um sistema de ficção alegórica que mostrava o quão terrível poderia ter sido a vida, se a sociedade não tivesse se ajustado ao atual modelo tranqüilizador. Ainda assim, de tempos a tempos instrutores tentavam ajudar a comunidade a escapar. Capitães sacrificavam-se em prol do restabelecimento de um clima em que os ora escondidos construtores de navios pudessem prosseguir no trabalho. Todos esses esforços foram interpretados por historiadores e sociólogos com referência às condições da ilha, sem idéia de qualquer contato fora daquela sociedade fechada.

Produziam-se com facilidade relativa explicações plausíveis para quase tudo. Não estava envolvido nenhum princípio de ética, porque os doutos continuavam a estudar com dedicação genuína o que parecia ser verdade. "Que mais podemos fazer?", perguntavam, dando a entender, com a palavra "mais", que a alternativa poderia ser um esforço de quantidade. Ou perguntavam uns aos outros: "Que outra coisa podemos fazer?", supondo que a resposta pudesse estar em "outra coisa" - algo diferente. O seu verdadeiro problema era que eles se julgavam capazes de formular as perguntas, e ignoravam o fato de que as perguntas tinham tanta importância, em todos os sentidos, quanto as respostas. Está visto que aos ilhéus se oferecia um campo muito grande para pensar e agir dentro de seu pequeno domínio.
As variações de idéias e diferenças de opinião davam a impressão de liberdade de pensamento. Estimulava-se o pensamento, contanto que não fosse "absurdo". Permitia-se a liberdade de palavra, aliás de escassa utilização sem o desenvolvimento da compreensão, que não era levado a efeito. O trabalho e a ênfase dos navegadores teve de assumir aspectos diferentes de acordo com as mudanças verificadas na comunidade, o que lhes tornava a realidade ainda mais desconcertante para os estudantes que procuravam acompanhá-los do ponto de vista da ilha. No meio de toda a confusão, até a capacidade de lembrar-se da possibilidade de escapar podia, às vezes, transformar-se em obstáculo. A consciência emocionante da possibilidade de fuga não era muito discriminativa. Na maior parte das vezes, os ansiosos aspirantes a fujões se decidiam por qualquer espécie de substituto. Um conceito vago de navegação não poderia ser útil sem orientação. Até os mais ardentes construtores de navios em potencial tinham sido treinados para acreditar que já possuíam essa orientação. Já estavam maduros. Odiavam todos os que dissessem que eles talvez precisassem de preparação. Versões estranhas de natação e construção de navios freqüentemente excluíam, pela força do número, as possibilidades de progresso verdadeiro. Bastante censuráveis eram os advogados da pseudonatação ou dos navios alegóricos, meros mercenários, que ofereciam lições aos que ainda estavam fracos demais para nadar, ou passagens em navios que não podiam construir.

As necessidades da sociedade tinham exigido, originalmente, certas formas de eficiência e pensamento que redundavam no que se conhecia por ciência. Esse enfoque admirável, tão essencial nos campos em que tinha aplicação, acabou exorbitando do seu verdadeiro significado. O enfoque, denominado "científico" logo após a revolução "Agradar", ampliou-se até cobrir todo tipo de idéias. Finalmente, as coisas que não puderam ser contidas dentro dos respectivos limites passaram a ser conhecidas como "não-científicas", outro sinônimo conveniente de "más". As palavras eram estranhamente aprisionadas e, a seguir, automaticamente escravizadas. Na ausência de uma atitude adequada, como as pessoas que, entregues aos próprios recursos na sala de espera de um consultório, põem-se automaticamente a ler revistas, os ilhéus se absorveram na procura de substitutos da realização, que era o propósito original (e, na verdade, final) do exílio da comunidade. Alguns foram capazes de distrair a atenção, de maneira mais ou menos bem-sucedida, com atitudes principalmente emocionais. Havia séries diferentes de emoção, mas nenhuma escala adequada para medi-las. Considerava-se toda emoção "funda" ou "profunda" - como quer que fosse, mais profunda que a não-emoção. A emoção que levava as pessoas aos atos físicos e mentais mais extremos que se conheciam era automaticamente qualificada de "profunda". Em sua maioria, as pessoas costumavam escolher metas ou permitiam que outros as escolhessem para elas. Podiam consagrar-se a um culto depois de outro, ou ao dinheiro, ou à proeminência social. Algumas, por adorarem certas coisas, julgavam-se superiores a todo o resto. Outras, repudiando o que supunham ser o culto, cuidavam não ter ídolos e poder, por conseguinte, zombar com segurança de tudo o mais.

À medida que os séculos passavam, a ilha se viu juncada de destroços desses cultos. Pior do que destroços comuns, eles eram autoperpetuantes. Pessoas bem-intencionadas e outras combinaram e recombinaram os cultos, e estes voltaram a propagar-se. Para o amador e para o intelectual isso constituía uma mina de material acadêmico ou "iniciático", que dava uma reconfortante sensação de variedade. Proliferaram magníficas instalações para o gozo de "satisfações" limitadas. Palácios e monumentos, museus e universidades, institutos de saber, teatros e estádios esportivos abarrotaram a ilha. O povo, naturalmente, se orgulhava desses recursos, muitos dos quais considerava ligados, de um modo geral, à verdade fundamental, embora muito pouca gente soubesse exatamente como era isso. A construção de navios estava associada a algumas dimensões dessa atividade, mas de um jeito desconhecido de quase toda a gente. Clandestinamente, os navios desfraldaram suas velas, e os nadadores continuaram a ensinar natação. As condições na ilha não consternaram em demasia aquela gente dedicada. Afinal de contas, ela também se originara da mesma comunidade e tinha laços indissolúveis com ela e com o seu destino. Mas precisava, muito a miúdo, preservar-se das atenções dos seus concidadãos. Alguns ilhéus "normais" tentaram salvá-la de si mesma. Outros tentaram matá-la por uma razão igualmente sublime. Outros até buscaram ardentemente a ajuda dela, mas não conseguiram encontrá-la. Todas essas reações à existência dos nadadores resultavam da mesma causa, filtrada através de diferentes tipos de mentes, a saber, que quase toda a gente sabia agora em que consistia um nadador, o que ele estava fazendo e onde poderia ser encontrado.

À medida que a vida na ilha foi se tornando mais e mais civilizada, surgiu uma indústria estranha, mas lógica, consagrada a lançar dúvidas sobre a validade do sistema sob o qual vivia a sociedade. Ela logrou absorver as dúvidas acerca dos valores sociais ridicularizando-os ou satirizando-os. A atividade poderia apresentar um rosto triste ou feliz mas, na realidade, se tornou um ritual repetitivo. Indústria potencialmente valiosa, era, não raro, impedida de exercer suas funções realmente criativas. Achavam as pessoas que, tendo dado às suas dúvidas uma expressão temporária, conseguiriam, de certo modo, atenuá-las, exorcizá-las, quase aplacá-las. A sátira passou a ser considerada uma alegoria significativa; a alegoria foi aceita mas não digerida. Peças, livros, filmes, poemas, pasquins foram os meios usados para esse desenvolvimento, ainda que boa parte dele operasse em campos mais acadêmicos. Para muitos ilhéus, parecia mais emancipado, mais moderno ou progressivo seguir esse culto em lugar dos antigos. Aqui e ali um candidato ainda se apresentava a um instrutor de natação, para fazer sua barganha. E geralmente ocorria o que, na verdade, era uma conversação estereotipada
- Quero aprender a nadar.
- Quer fazer uma barganha?
- Não. Só tenho de levar minha tonelada de couve.
- Que couve?
- A comida de que precisarei na outra ilha.
- Lá existe comida melhor.
- Não sei do que você está falando. Não posso ter certeza. Preciso levar minha couve!
- Em primeiro lugar, você não pode nadar com uma tonelada de couve.
- Então não posso ir. Você chama a couve de carga. Eu chamo-lhe minha nutrição essencial.
- Suponha, como alegoria, que, em lugar de couve, prefiramos dizer "suposições" ou "idéias destrutivas".
- Levarei minha couve a algum instrutor que compreenda minhas necessidades.
Este livro fala de alguns nadadores e construtores de navios, e também de outros que tentaram acompanhá-los, com maior ou menor sucesso. A fábula não terminou, porque ainda existem pessoas na ilha. Os sufis utilizam linguagem cifrada para transmitir o que querem dizer. Mude a posição das letras do nome da comunidade original - Al-Re - e terá "Real". Talvez já tenha notado que o nome adotado pelos revolucionários - "please" (Agradar) - forma, com as letras mudadas de lugar, a palavra "asleep" (Adormecido).

Fonte: Os Sufis, de Idries Shah (1964). Ed. Cultrix

A mente é

A mente é espaço, vazio e não vazio, e tempo e eternidade.

Experiências de iluminação

Penso que, mais importante do que todas as balelas ou não balelas que tenho escrito sobre a mente, é libertá-la.

Libertá-la é, a meu ver, deixá-la suspensa numa espécie de espaço indefinido, numa ilimitação libertadora em que a sentimos respirar.

Deixá-la sonhar livremente, no espaço vazio ou não vazio, flutuando como uma leve brisa sob o carinhoso calor de um fim de tarde de Verão.

Em que se resume isto? Em viver experiências de iluminação, idílicas.

O eu é o mestre do eu

Bertrand Russell disse, a propósito da máxima cartesiana, que dela apenas poderíamos inferir que há pensamentos, mas não que há um pensador. Poderíamos afirmar o mesmo acerca do sonho (supondo, para o caso, que a realidade o é)? Que só este existe, mas não um sonhador?

Note-se que não se segue do facto de as nossas inferências serem limitadas a certas conclusões que não existam outras mais à frente, inacessíveis pelo aparelho do humano raciocínio.

Embora eu não seja muito de práticas - mea culpa, preguicite aguda -, creio que o (verdadeiro) conhecimento de algo como a mente só é possível através da introspecção, primeira pessoa, podendo depois ser transformado, se possível, em discurso verbal, provindo no entanto dessa introspecção, tal como o leite provém da vaca e não do supermercado. Quero com isto dizer que só poderá advir mais conhecimento acerca da mente se nela penetrarmos, se sobre ela nos indagarmos, e nunca de outro modo.

Neste sentido, penso que é saudável que adoptemos uma máxima budista que diz que o eu é o mestre do eu, na medida em que o conhecimento de nós mesmos - sim, supondo que existimos, ou que algo existe - só surgirá por indagação de nós sobre nós.

Hipóteses/2

Só o sonho existe. Tudo é sonho.

Hipóteses

O eu é o vívido sonho do eu. Será a mente outra que não o sonhador?

O tão almejado Paraíso

A memória é de facto uma coisa espectacular. E também a imaginação. Tudo propriedades daquilo a que chamamos mente e que, porventura, mais não é do que certas capacidades, potenciais ou actuais. Não só a memória e a imaginação são espectaculares, mas também a percepção, na medida em que é através desta que construo, vivendo-os, os Paraísos que sinto - e aí entram também os sentimentos, estéticos ou outros -, que depois recordo ou revivo já imaginando, acrescentando-lhes o sentido que a vivência presente sempre acrescenta às vivências passadas. Neste sentido, a mente é também um meio, se não o meio, de alcançarmos o tão almejado Paraíso, desejado (mais uma capacidade mental...) por todos os seres humanos ou outros dotados de consciência.

Que assim seja

Tudo o que conhecemos é mental, porque é conhecido exclusivamente através da mente. Assim, a mente é mediadora entre o eu e o mundo. Mas o que é o eu? Para mim, podendo estar errado, o eu é o equivalente àquilo a que os antigos ou outros chamam alma que, assim entendida, existe. Mas talvez esteja errado; porque talvez o eu seja o conjunto das experiências que vivo e guardo na memória, sendo esta uma parte da mente, se esta sequer as tem. Ou talvez possamos escolher, e o eu seja aquela parte de nós, se sequer as temos, que acolhemos como nossa, com a qual mais nos identificamos... passada, presente ou imaginada. Acima de tudo, mais do que sabermos o que são o eu ou a mente, penso que temos a explêndida oportunidade, porquanto estamos vivos, e a vida tem esplendorosos esgares de luminosidade, de os vivermos, experimentando-os. Que assim seja, meus amigos.

águias mentais

mas quando libertamos a mente sempre por ela passam as àguas antigas do rio
não sei porquê. Juro que não sei porquê. Juro que não quero saber.
Abraços amigos.

O que não é a mente?

Se há expressão que eu secretamente gosto é a de "doente mental". Doente da mente, Doente na mente.
Será que a mente pode estar doente?

Outro vocábulo é a mentalidade. As mentalidades. A mudança das mentalidades.

Eu sou uma doente da mentalidade. Assim me defino.

Razao, Intelectualidade e a banalidade do mal


Agradeco ao "Antony" por me ter chamado a atencao para a letra desta musica dos 'Antony and the Johnsons":

Hitler in my Heart
http://www.youtube.com/watch?v=0WFlbywF4NU

As I search for a piece of kindness
And I find Hitler in my heart

And he is whispering"
As sure as love will spring
From the Well of Blood in Vain, oh Jew!
The Well of Blood in Vain!"
La la la la la la

And I fell into a deeper precipice
With mouths of rapists
Jaws dropped down
Jaws dropped down
Jaws dropped

Don't punish me
For wanting your love inside of me
Don't punish me
For wanting your love inside of me

And I find Hitler in my heart
From the corpses flowers grow

And I find Hitler in my heart
From the corpses flowers grow

And I find Hitler in my heart
From the corpses flowers grow
Flowers grow
From the corpses flowers grow
Flowers grow

Pois cada um de nos, sem o saber, tem um "Hitler" no coracao, que pode vir ou nao ao de cima consoante as circunstancias.

Algum de voces leu um livro de Hanna Arendt intitulado "Eichmann em Jerusalem"? E sobre o julgamento de Aldolf Eichman, um alto quadro da burocracia Nazi, pelo governo Israelita.

E um livro deveras impressinante e que mostra o que pode haver de mais aterrador na mente humana e no seu uso. Lembro-me de, no ano passado, ter feito uma leitura aprofundada deste texto numa aula de Teoria Sociologica de que fui assistente. A professora com quem eu trabalhei para ministrar esse curso e uma jovem Israelita que deve ter no maximo uns 35 anos.

O que mais me impressionou no texto foi o facto de o Holocausto ter sido impossivel se nao fosse a ciencia, a tecnica e a organizacao burocratica modernas. No fundo: A racionalidade ocidental.

Eichman nao era um monstro. Nao mostrava sinais de ter perturbacoes mentais significativas. No entanto, era ele que fazia a "contabilidade" de todos os Judeus, Ciganos, Mesticos, resistentes politicos, homossexuais, Catolicos progressistas, espioes, etc. que eram enviados para os campos de concentracao. Fazia as contas de quantos seres humanos era preciso gasear e cremar por semana para manter espaco para continuar o envio de novos presos. Fazia tambem as contas de quantas minorias etnicas, resistentes e "decadentes" restavam em cada cidade e quantos comboios e quanto carvao eram precisos para os transportar.

Eichman disse que nao fez mais nada do que "obedecer a ordens". Como grande parte dos Alemaes da sua geracao, foi educado de uma forma rigida, autoritaria, hierarquica, destinada a produzir um filho e um aluno obediente que por sua vez se tornaria num empregado e cidadao obediente a autoridade, pelo simples facto de que e autoridade.

Alem do mais, Eichman nao fazia mais nada do que trabalhar com numeros. Nao via o medo e o sofrimento nos rostos dos seres humanos que eram levados em fila para as camaras de gaz. Nao ouvia os gritos lacinantes. Nao via os cadaveres amontoados. Nao os queimava.

Segundo varios autores, o que tornou possivel o funcionamento dos campos de concentracao foi o facto de ter havido uma divisao racional do trabalho entre os recrutas Nazis, de uma forma muito semelhante aos modelos Taylorista e Fordista empregado em industrias a volta do mundo. Cada recruta fazia apenas uma pequena parte do "servico". Um punha os prosioneiros em linha. Outro anotava os nomes. Outro empurrava-os para dentro das camaras de gaz. Outro fechava a porta. Outro girava a manivela que fazia o gaz entrar. Outro levava os corpos para o crematorio. Outro ligava o crematorio. E outro recolhia as cinzas.

Assim tornava-se dificil para cada "peca" na "engrenagem" desta chacina compreender toda a dimensao do que estava a fazer e assim sentir empatia pelo sofrimento de outro ser humano.

Tudo estava feito para apelar ao mental, ao lado racional do ser humano. Feito para maximizar o rendimento das capacidades mentais de cada burocrata e oficial dos campos de concentracao. Feito tambem para nao tocar de maneira nenhuma na capacidade que cada ser tem de sentir.

De facto, o sistema estava montado para anestesiar todo e qualquer sentimento.

E preciso ter em conta que todo este sistema aterrador foi montado por cientistas, intelectuais. Existiu gracas a ciencia moderna, que nos deu a penicilina, as viajens inter-continentais, o computador o blog onde escrevemos e trocamos ideias.

No entanto, o Holocausto e prova de que a razao e a ciencia podem ser usadas para o mal mais absoluto.

Uma coisa e certa: Tive o privilegio, gracas a muito trabalho e a uma generosa bolsa de estudo, de me tornar doutouranda numa universidade considerada "de topo" nos EUA. Toda a gente a quem eu falo disto diz "que privilegio. Deves estar a conhecer gente interessantissima. Sim, e verdade, estou a conhcecer gente muito interessante. E tambem a perder o que restava da minha inocencia.

Algumas das pessoas mais "inteligentes" e "intelectualizadas" que eu tenho conhecido por aqui sao tambem aquelas que tem menos capacidade de sentir empatia e de amar o seu semelhantes. Pessoas que sentem pouco. Riem pouco mas tambem quase que nao choram. Nao sentem grande prazer mas tambem nao sentem grande dor. Tal frieza permite-lhes ter um controle muito grande sobre o seu ambiente. Escolhem cuidadosamente as suas amizades e os seus amores, calculando os beneficios que lhe podem trazer e a conveniencia da sua presenca na sua vida. Sabem detruir quem quer que seja que lhes faca frente com duas ou tres palavras cortantes. Sabem fingir simpatia e interesse nos momentos certos com as pessoas certas. Tal controle sobre a sua parca capacidade de sentir leva-los-a longe neste sistema insano em que vivemos, neste sistema burocratico-racional.

Nao e uma questao cultural. Essas pessoas em quem eu estou a pensar sao ate estudantes estrangeiros, como eu.

Os EUA e os Norte-americanos, nao obstante os seus problemas (que pais e que povo nao os tem) sao um pais acolhedor e caloroso. Ja recebi de Norte-americanos expressoes de carinho e gestos de generosidade que raramente recebi de Europeus, inclusive Portugueses.

E questao das caracteristicas do sistema, e do tipo de personalidades que este constroi, premeia e catapulta para o topo. O Holocausto foi possivel nao por a grande maioria sofrer desse "deficit" de sensibilidade. Pelo contrario. Ao que parece, a maior parte dos burocratas, soldados e guardas da maquina infernal Nazi eram pessoas perfeitamente normais. Havia no entanto algumas figuras de tiopo que sofriam desse atrofiamento do sentir.

No entanto, o grnade problema nem eram as figuras de topo, mas sim a ultra-racionalidade do sistema, que fazia um ser humano perfeitamente normal participar no mais hediondo dos crimes por estar alienado da visao do "todo" para o qual os seus actos contribuem e do sofrimento humano que estes causam.

Tudo gracas a Razao, ao Progresso e a Ciencia.

Como cientista em treinamento, tambem eu alimento esta muito pouco santa trindade. Por isso e que muitas vezes, quando me olho ao espelho, nao gosto mesmo nada do que vejo.

Seguindo a deixa do Nuno, aqui vai mais uma cancao dos Coldplay (que eu adoro) e que e mesmo condizente com o tema:

The Scientist (Coldplay):
http://www.youtube.com/watch?v=V3Kd7IGPyeg

Come up to meet you, tell you I'm sorry
You don't know how lovely you are
I had to find you
Tell you I need you
Tell you I set you apart

Tell me your secrets
And ask me your questions
Oh let's go back to the start
Running in circles
Coming up tails
Heads on a silence apart

Nobody said it was easy
It's such a shame for us to part
Nobody said it was easy
No one ever said it would be this hard
Oh take me back to the start

I was just guessing
At numbers and figures
Pulling your puzzles apart
Questions of science
Science and progress
Do not speak as loud as my heart

Tell me you love me
Come back and haunt me
Oh and I rush to the start
Running in circles
Chasing our tails
Coming back as we are

Nobody said it was easy
Oh it's such a shame for us to part
Nobody said it was easy
No one ever said it would be so hard
I'm going back to the start
A palavra estraga tudo.
Quem não sabe falar baixinho, como eu, devia calar-se.
A palavra é surda, não é muda.
A palavra não escuta, a palavra impõe-se, a palavra é chata, a palavra mói.
A palavra devia ser proibida em locais públicos fechados ou abertos.
A palavra controla todos que pensam que a controlam.
A palavra é um pecado cada vez mais cometido.
A palavra deixa-se acusar por mais palavras.
A palavra até se deixa personificar por quem a diz.
A palavra quando começa nunca mais acaba, o que é um martírio.
A palavra põe-se em bicos de pés para ser maiúscula.
Ao ser maiúscula cai donde se pôs.
A palavra cheira mal, está sempre associada a um hálito.
A palavra, desesperada, preenche.

Não sou materialista

Não sou materialista, na medida em que os meus estados mentais, por exemplo sentimentos, são mais do que meros eflúvios corporais, porque são estados mentais para mim.

Neste sentido, o eu e a subjectividade, os quais acredito, não sem ponta de cepticismo, que existem, são evidências contra o materialismo. Afinal, no meu corpo, onde está o ser para mim ou o ter significado para mim?

Paz.

Tudo o que conhecemos

Tudo o que conhecemos é mental. Percepções, imaginações, sentimentos, memórias, desejos...

O substrato

O eu é o substrato da mente. A mente é o substrato do mundo. O eu é o substrato do mundo.

O eu

O eu é o que está para lá da mente.

É através da mente

É através da mente que nos apercebemos de que temos uma mente.

Mas o que é a mente?

O que é a mente? Eis uma das mais complicadas questões de todos os tempos que, porventura, terá uma das respostas mais simples de sempre. Não sei a resposta. Posso apenas tentar, de acordo com a minha experiência.

Tenho, por várias vezes, pensado sobre o eu, tendo chegado à conclusão, que aceito com cepticismo, de que é aquilo que está para lá das consciências, como que aquilo que é por elas afectado. Será a mente algo mais, um substrato (por exemplo do mundo), ou mera ferramenta?

Quando falo em consciências, falo em percepções, sentimentos, memórias, imaginações, em suma, tudo aquilo que é magicado, suponhamos, pelo eu através da mente. Assim, a mente seria mera ferramenta do eu, na medida em que é através dela que uma série de fenómenos, visíveis (como as percepções, o mundo aí fora) ou invisíveis (como os sentimentos, as memórias, as imaginações, os desejos... não obstante estes poderem ter uma face sensível), ocorrem.

Mas o que é a mente? É uma questão que deixo em aberto, na exacta medida em que não sei a resposta. Será uma plataforma, um ponto de contacto, de vivência e de capacidade de viver e de actuar, entre o eu e o mundo?

incomunicabilidade

Às vezes, ao fim do dia,
Quando as cores se agigantam,
Vibra no ar uma ausência de voz
A que nem o mar sanguíneo responde.
Como se um morto gritasse
Aqui, sem podermos ouvi-lo.
Nem a paixão mais violenta
Nos deixaria tão vazios e aterrados. Esse grito
Fixa-nos ao chão, imóveis, estarrecidos.
Depois sacode-nos, faz-nos andar, olhos fitos
Na muda impossibilidade dos outros.
Ferve dentro das coisas e das causas,
Agita-nos antes mesmo de existirmos.
Só a brisa, quando a noite vem calar o mundo
Por instantes, só a brisa
Faz adormecer a voz inaudível
E torna ridícula a questão de sabermos
Se queremos acordar.

Mente e Espírito

A Mente é o Espírito vestido,
e cada Espírito veste-se dependendo do lugar onde está,
se está frio ou calor,
com quem está, ou para onde quer ir,
ou do que quer atrair.
Dos andrajos à alta costura, passando pelo prêt à porter
é tudo uma questão de elaboração… estilo e adequação. E mentalidade.

Mas tirada a roupa,
o Espírito não se sente despido.
Apenas nu. E com um sentimento de requinte extraordinário.
É que é ele próprio o artesão e alfaiate
tecendo e cozendo a roupa que vai usar. Justamente.

Relógio da Alma

Regresso à saudade dos dias
em que olhava o véu de água
a descer do céu sem pressa
vindo duma nuvem solar
e da sua quietude obscura.

Acomodam-se no silêncio
que me escuta e compreende
essas horas dum tempo perto
do azul eterno e da sede única.

Um fio de água alisa a janela
e lá fora as árvores recordam
os meus olhares de outrora
singulares na sua fonte pura.

Descubro algumas certezas
tranquilas nos ciclos repetidos
mas novas inquietações nascem
como páginas dum livro à espera.

Os sinos dobram e não sentem
a frágil areia do ar que se agita
no seu hino continuado pela
límpida memória do riso.

Esses sons regressam da sombra
aquietam-se na manhã dormente
com suas labaredas de oiro vivo
perpetuadas na orla sábia da vida.
A mente mente.

A maior ironia é que eu ganho a vida a usá-la.

Isso quer dizer que eu ganho a vida a mentir?
Vasos que deslizam
Levam olhos às montanhas:
Os pés sabem onde pisam.

Eu não existo

Se não há mente, por que motivo nos convencem de que ela se situa na parte superior do corpo, ou seja, na cabeça, no mesmo sítio onde se encontra o cérebro?

Porque se usam, com muita frequência e indiscriminadamente, os termos "mente" e "cérebro" para designar a mesma realidade?

Porque motivo nos ensinam obsessivamente que as emoções, os sentimentos e as sensações não têm realidade própria e que só existem na "mente"? (ou será no cérebro?)

Se as emoções, os sentimentos e as sensações são impulsos electroquímicos conduzidos através do corpo por uma rede neuronal até a um centro processador chamado cérebro, qual é então a relação entre "sistema nervoso", "percepção", "sujeito que percepciona", "eu", "cérebro" e "mente"?

Se é impossível encontrar a mente, onde nasce então o ilusório "sentimento de si"? O que suporta esse sentimento feito de impulsos electroquímicos? Se é ilusório, porque parece tão real?

Porque determinados pensamentos (mente) dão origem a determinadas emoções e sentimenos (corpo)? Porque determinadas emoções e sentimentos (corpo) dão origem a determinados pensamentos (mente)?

Se o "eu" ou o "si próprio" tem origem no fenómeno da percepção (percepção de si = sensação de si = sentimento de si = consciência de si), qual a relação entre neurologia, estética, psicologia, ontologia, fenomenologia, quântica, existencialismo e Budismo? E o Amor e o sentimentalismo cristão?

Que tem a Saudade a ver com tudo isto?

Quando se fala em António Damásio, por que motivo algumas pessoas fazem uma cara muito assustada e ficam de cabelos em pé como se estivéssemos a falar do "bicho papão", e acusam escandalizadas: substancialista!

Se algumas conclusões a que chegam António Damásio e o existencialismo vão ao encontro da insubstancialidade do "si" e da doutrina da vacuidade tal como propõe o Budismo, de que estamos à espera para fazer a aproximação Ocidente/Oriente, de forma a proporcionarmos um alívio mais eficaz ao sofrimento dos seres, sofrimento esse causado pela fé, ao que parece infundada, num "eu"?