Musicalmente, a sonata da infinita gratidão
Zweig diz:
“ É sempre à parte demoníaca de cada um de nós que se fica a dever tudo o que nos projecta para lá do ente individual que somos, para lá dos nossos interesses pessoais, tudo o que nos confere a sagacidade e o desejo de aventura com que nos lançamos na interrogação e nos perigos que ela comporta. Mas este demónio só é uma força amiga, favorável, enquanto a conseguimos dominar, enquanto estiver ao serviço da tensão que nos anima, ao serviço de um desejo de intensificação, de elevação; o verdadeiro perigo começa quando essa tensão salutar se transforma num excesso de tensão, quando a alma sucumbe ao impulso subversivo, ao vulcanismo do demoníaco. Porque o demónio só pode alcançar a sua pátria, o elemento que lhe é próprio, a infinitude, na medida em que destruir sem compaixão a coisa finita, terrena, em que momentaneamente fixou a sua morada..."
Na verdade, a verdade é mesmo força bacântica em nós. É a mente sem domínio sobre si, liberta da razão, solta e desenfreada como na música. Se queremos que a mente toque o espiritual, então é pô-la a encontrar o seu coro de vozes e, no silêncio, retornar ao ritmo. A mente não tem palavras, tem sons que compõem imagens improváveis, inatingíveis e indefinidas. Se quisermos ser mentais mais do que racionais, espirituais tanto quanto demenciais, escutemos o grande coro da Vida que nunca parou de cantar. Suponho que era essa a ideia de Wagner para o seu teatro: as cantoras eram mesmo só aparência. Nenhum humano pode cantar aquilo se não for já Perséfone, isto é, se já não tiver sido raptado pela Vida e já não for vivente. Aquilo não era um teatro, era o Hades. Não deve ter conseguido explicar isto, não teve palavras para o explicar. Ele que era da música e não do logos. Ele mental, demencial, demoníaco não falava com a razão. Falava já na mistura da mente com o espírito, a música, musicalmente.
O coro que canta o "Inverno" de Vivaldi é quase assim. Aquele canto é a mente e tem a arqueologia de tudo o que é universal dentro e fora de nós. Naquele coro, que ontem ouvi na e com a música de Vivaldi, a Vida sente-se e recolhe-se e expande-se e rapta-nos. Aqui é difícil escutar a mente, porque o real a desmente. E é uma luta desigual, porque a mente não pode argumentar. Só tocar. Tocar-nos até ao choro, até às nossas lágrimas sem porquê, que têm o brilho e as poeiras das estrelas ainda quentes da explosão original. Só consigo responder desta maneira ao que ouvi ontem e tenho lido sobre o desafio que foi lançado: é a razão que pergunta o que é a mente, mas a mente não vai responder. A mente está dentro da música e nos seres que combatem com o seu demónio que neles é musical e rítmico. A mente entusiasma-se não com a linguagem instrumental, mas com o instrumental musical que há em seres que falam cantando, entoando. É por isso que os mantras...
Mas desconfio que quando a razão pergunta o que é a mente, a razão está a perder o pé…e de olhar tanto para dentro do abismo, o abismo olha e chama musicalmente por ela… (Nietzsche sabia-o tão bem…) ela ainda tenta falar, mas sobrevém-lhe um imenso silêncio. Porque há sons que nos deixam mudos. Musical a mente, musicalmente nos deixamos levar sem vontade de voltar.
E, como gostaria de me perder musicalmente na sonata da infinita gratidão por todos os que seres bons, belos e puros que andam no caminho da serpente…
Não pensemos senão musicalmente ! Graças, Isabel !
ResponderEliminarCaríssima Isabel, recentemente sofri uma transformação ao ler "O efeito Mozart". A Música... Talvez seja por falta dela que somos tão pouco bons a matemática (e só usamos a matemática que serve para infernizar a nossa vida, tanto a nível privado, como colectivo)...
ResponderEliminarE todas as pessoas são parte da Sinfonia, notas aparentemente dissonantes, por vezes, mas apropriáveis por um amplexo maior.
Temos que fazer retinir as paredes translúdidas do cárcere do egotismo e do "coisismo", seu complementar.
;)
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ResponderEliminarMúsica e ritmo, eis a linguagem... Eu vou dançar para o Coro, é aí que sou pleno.
ResponderEliminarObrigado!
...e uma grande chuvada de Espírito Santo para todos!
ResponderEliminarDa música e já no Coro são seguramente vocês, que me reorientam o olhar do rosto e entoam para mente sons que lhe são afins. Fazem com ela uma afinidade electiva. O livro mais inquietante sobre música e que, por causa dos vossos comentários, me apetece reler, é o "Náufrago" de Thomas Bernhard, e apetece rever "Amadeus". Mas não é por mais nada, é só porque de cada vez que leio e vejo outra vez, vejo o que nuca li e nunca vi. É por isso que gosto muito de ver o que escrevem também: ver o insondável que toca todos de maneiras tão diversas. Obrigada por pensarem o que aquece a frieza dos dias.
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