quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O que é a mente ?

"No íntimo da essência da mente desperta totalmente pura, / não há nenhum objecto a ver ou algo que constitua uma visão - / nem o mínimo sentido de algo a observar ou de alguém observando. / Não há consciência comum que medite ou algo sobre o qual se medite. / Devido à presença espontânea, sem qualquer dualidade de objectivo e conduta, / não há o mínimo sentido de qualquer fruição a alcançar"
-Longchenpa (1308 – 1363), The Precious Treasury of the Basic Space of Phenomena, Junction City, Padma Publishing, 2001, p.43.

14 comentários:

  1. É um texto muito belo, mas que, a meu ver, retrata a faceta inconsciente do que poderíamos chamar, na terminologia ocidental, incondicionado ou absoluto. Ora, como sublinhou Schelling, o absoluto não é nem consciente nem inconsciente, mas está integralmente nos dois, sem se reduzir a qualquer um, visto que ele é o ponto ou elo de indiferença entre o neutro e o pessoal.

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  2. Saúdo a tua aparição na Serpente, caro Bhixma ! Quanto à tua observação, creio que a ausência de consciência dualista e intencional não implica a ausência de consciência. A meu ver, Longchenpa fala precisamente da mente desperta ("rigpa", em tibetano), que a tradição da Grande Perfeição (Dzogchen) experimenta como vacuidade irradiante, tanto mais sábia e sensível quanto mais livre da percepção de qualquer entidade real, subjectiva ou objectiva. Os textos tibetanos insistem na fecundidade consciente e compassiva do aspecto de vacuidade da mente não-dual, que articula assim o imanifestado e a manifestação. Talvez um pouco ao modo desse vínculo no absoluto schellinguiano do neutro e do pessoal, embora sem usar essas categorias.

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  3. Posso estar a interpretar mal as tuas palavras, mas parece existir uma negação - quase uma condenação - da consciência intencional e dual. Se ela se assumir como expressão única do incondicionado - o que sucede tantas vezes na vida prática - compreendo a reserva. Mas a intuição de Schelling é que o incondicionado está todo ele tanto na mente não-dual, como na dual, como ainda na indiferença entre as duas. A sua teoria das potências é a explanação dste percurso filosófico.
    p.s. é evidente que Longshenpa e Schelling não têm que pensar o mesmo... :-)

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  4. Imagino que aquilo que Longchenpa entende por "mente desperta" deva ser um estado de consciência realizado através da prática da meditação, ou seja, de algo que teve de ter o seu início numa observação directa da mente.
    Pergunto-me como é possível alguém fazer o relato de uma "experiência" que, à partida, não teve nenhum experimentador. Se na mente desperta não há nem objecto observado nem observador, então a mente desperta não pode ser designada como uma "experiência"; mas se não pode ser designada como tal, se não há nenhuma testemunha nem nada a ser testemunhado, como é possível alguém falar de algo que não foi testemunhado e de que não houve testemunha? Para que alguém possa dizer que a mente desperta é "isto", esse alguém teria que ter observado/experimentado "isso"... Mas se a mente desperta é não haver ninguém a observar e nada a ser observado, como é possível alguém poder falar de algo (mente desperta) que nunca pode ser observado/experimentado por ninguém? Resumindo: como é possível fazer uma referência verbal a algo irreferenciável, quando esse algo irreferenciável é a própria irreferencialidade, pois ninguém pode referir-se a algo que nunca é/foi observado. Se a mente desperta é não haver observador nem objecto observado, então a mente desperta não poderia existir; se "alguém" fala dela, esse "alguém" conhece-"a". Como é isso possível?

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  5. daí aquela frase, o tao que pode ser dito não é o verdadeiro tao. e apesar disso nós "sabemos" do que estamos a falar, apesar de não ter "sabor". É-se.

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  6. Caro João Beato, além da "mente desperta" transcender toda a experiência meditativa, que neste sentido é sempre uma ficção dualista, o problema é que estamos a falar de uma mente desperta com os critérios da mente dual e conceptual... É claro que a verbalização da experiência desperta, porque livre do conceito de "experiência desperta", de sujeito da mesma e de todo o conceito, não pode senão sugeri-la, traindo-a, para ser entendida pelos nossos intelectos limitados pelas noções de ser/não-ser, sujeito/objecto, etc. É claro que a "mente desperta" e quem dela fala não existem (nem não existem) ! Por isso são verdadeiros, como já dizia o nosso Antero...
    Ao Bhixma digo parecer-me que nesse sentido Longchenpa e Schelling pensam convergentemente. Somente o que a mente convencional percepciona como consciência intencional e dual (ou seja, ela mesma), não o é para a mente desperta. Para esta tudo o que emerge é "não-dual". Nesse sentido, as "contínuas percepções dualistas emergem como um jogo / manifestação ("rolpa", em tibetano) devido à energia dinâmica da consciência (desperta)" (p.59). Dualidade e unidade são os ornamentos fictícios da não-dualidade ou da vacuidade do "espaço primordial" que não é isto nem aquilo, mas que, por nada ser, se manifesta como tudo (p.5). Neste contexto, todavia, evidência manifestativa não implica existência real. Ser(mos) evidente(s) é uma coisa, existir(mos) é outra. Mas com isto já estou de novo a responder ao João Beato...

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  7. Certamente, mas por mais desperta que a mente esteja, há uma parte da subjectividade que permanece intacta, caso contrário, pensando em termos radicais, o próprio corpo desapareceria desta realidade...

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  8. Na tradição tibetana é o que é suposto poder acontecer na realização plena: a reabsorção dos elementos grosseiros do corpo no espaço primordial, sem deixar vestígio e sem passar pela morte... Possível desde que se reconheça a insubstancialidade do que se tem por "corpo" e se treine a sua dissolução e reaparição em vida, como mera emanação mágica que se utiliza para beneficiar os outros... Somos, nesta perspectiva, passes de prestidigitação, ficções e ilusões plásticas auto-animadas. Pascoaes e Pessoa viram isto muito bem. Há nas suas obras esta experiência da dissolução e recriação de si como a quinta-essência do acto poético. Falta-lhes haver integrado plenamente isso numa sabedoria e ética da libertação própria e universal.

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  9. Deixemos esse trabalho aos "pregadores da verdade".

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  10. o corpo manifesta-se sem existir, ou seja é aspecto descolado de um todo irrepresentável. mente(:) o que representa.

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  11. Como tu, que és o pior e mais hipócrita de todos, com a tua tão pensada inocência não pensante ! Antes todos os metafísicos e escolásticos de todas as mais bolorentas tradições ! Ao menos não enganam ninguém.

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  12. É verdade, lembrei-me logo dos casos de dissolução total, e até da própria ressurreição de Cristo. Sei que há alguma coisa a descobrir na relação corpo/mente, ilusão/desilusão, substância/insubstância, uma chave, uma passagem. Novos mundos, havemos de lá chegar...
    A questão que coloquei acima tinha a ver com "nous" e "gnosis", estou convencido de que é necessário criar uma nova linguagem do conhecimento, senão vamos continuar eternamente enrolados num tipo de discurso que só atrapalha, ao ponto de chegarmos à conclusão de que só o silêncio é que vale a pena...

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  13. Ó verdade, cada um é como cada qual, estamos todos no mesmo barco, estamos todos à procura de um sentido para esta existência absurda. Esforçamo-nos, tentamos, erramos, temos vontade de ajudar e de colaborar com o que temos e sabemos. Não haverá também hipocrisia e engano em ti e em todos nós? Presunção? Preconceito? Para quê um julgamento tão condenador? Achas que há alguém aqui que queira enganar intencionalmente? Nós nem existimos, somos só espelhos de espelhos...

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  14. Tens razão, não só a da diplomacia !... Às vezes levo-me demasiado a sério... Esqueço a mentira de que sou feita... Obrigado por me recordares isso !

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