domingo, 1 de novembro de 2009
O Colégio Militar – uma polémica sem sentido
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Só há relativamente pouco tempo o mundo acordou para o flagelo das crianças-soldado. Um pouco por toda a parte em que a insanidade campeia sob a forma da mais inane barbárie, crianças de tenra idade são arrancadas ao seio das suas famílias para serem usadas como soldados. A geografia da abominação é difícil de circunscrever, mas as mentes que cultivam a sanidade não terão dificuldade em apreender-lhe os contornos e a reconhecer-lhe mesmo os traços mais sujeitos à erosão, posto que o esquecimento de que o sentido da História deve advir do respeito pela dignidade humana, em todas as suas instâncias, é o principal agente responsável pela desumanidade em que vivemos neste mundo globalizado e sujeito ao império da indiferença e da estupidez, outro nome para a economia sem valores humanos nem valia espiritual.
Em qualquer Burundi que se preze colocar crianças de 10 anos num colégio interno gerido de acordo com as normas militares, pode ser visto como um exemplo de boa pedagogia, ou de ‘ensino de excelência’. Mas não num país que queira estar à altura duma missão histórica (vamos, por momentos fechar os olhos, fazer muita força e tentar dar sentido a isso sem termos que arcar com despesas de lavandaria) ligada à fraternidade e à expansão da Cultura emancipadora, tal comportamento cavernícula só pode ser objecto do mais intenso repúdio.
As instituições pretéritas devem merecer o nosso respeito. E esse respeito deve consubstanciar-se na busca de formas cada vez mais humanas de construção de sociedade. É preciso não esquecer que a sociedade é uma criação colectiva, a principal criação cultural, na qual devem ser envolvidos todos os indivíduos, num esforço para diminuir a exclusão e a marginalidade. E esse esforço deve centrar-se, acima de tudo, na educação. E não devemos esquecer que a par da marginalidade dos ‘miseráveis’, dos deserdados, há a marginalidade dos privilegiados, dos ‘herdeiros’, daqueles que cultuam uma falsa aristocracia assente no ter e no poder do dinheiro.
E num Estado como o português que tutela um sistema educativo submetido aos seus imperativos constitucionais, a Escola Pública deve ser considerada uma instituição de excelência e a sua estruturação deve ser paradigmática no que se refere ao funcionamento das instituições de ensino, de acordo com os valores fundamentais da civilização (ou seja, da emancipação do humano face a qualquer tipo de tirania ou usurpação) e, também, com os princípios da mais válida pedagogia – e aqui é preciso não esquecer a investigação que se faz nessa área e que mostra à saciedade que modelos de organização escolar como o do Colégio Militar (para não falar das outras escolinhas de militares de palmo-e-meio, nenhuma delas inofensiva) contrariam tudo o que contribui para um desenvolvimento equilibrado e humanamente integrado da Pessoa.
Uma instituição pública de ensino, ainda por cima tutelada por dois ministérios, mesmo que cobre os encarregados de educação, mensalidades astronómicas para a bolsa do comum dos cidadãos, não pode funcionar de acordo com os princípios que presidem ao funcionamento do Colégio Militar. A haver colégios de excelência, numa sociedade democrática e civilizada deveria ser para contribuir para a igualdade de oportunidades e a promoção da justiça social.
Uma instituição destas deveria ser privada. Penso que qualquer grupo social pode criar instituições de ensino e lembro aqui as ordens religiosas que mantêm colégios de elite que perpetuam as desigualdades, mesmo quando o seu ideário as deveria colocar em linha com os pobres e a luta contra a pobreza. Desde que cumpram a Constituição e a legislação do Estado português, são livres de o fazer. Cabe ao Estado contrabalançar este desequilíbrio, fazendo uma redistribuição da riqueza virada para a promoção da Pessoa desde a mais tenra infância.
Quem quiser criar os seus filhos num colégio ‘disciplinador’ que o faça, mas em instituições sem capitais públicos. E a matriz militar deve ser própria da instituição militar, pelo que qualquer instituição de ensino, pública ou privada, destinada a menores deve estar fora dessa matriz – o militarismo não é próprio para crianças e adolescentes. Esse aleijão axiológico deve até ser progressivamente extirpado da nossa sociedade e essa deveria, também, ser uma meta a abraçar pelo mundo e, também, pelo mundo lusófono – a extinção dos exércitos, a promoção duma civilização da Paz.
Pode ser impossível alcançá-lo no quadro da geopolítica, mas dentro da Escola esse deve ser o horizonte. A Escola deve ser o Império do Espírito Santo – ou seja, a liberdade criadora, capaz de abraçar o mundo com uma onda de pureza. Mas, infelizmente o Mestre Agostinho só serve para foguetórios e para fomento, em muitos casos, da egolatria. Há que pensá-lo a fundo. Mas isso será, para nós, uma Perdição. Quem aceita fazer-se ao mar?
Um ensino demasiado centrado nas competências cognitivas, sem um enquadramento sócio-emocional das crianças e dos adolescentes (a família é o principal agente de socialização e a instituição social mais apropriada ao fomento do crescimento sadio das crianças – veja-se, a este propósito as investigações de Harlow, e de outros psicólogos e pedagogos, que demonstram que até os primatas não humanos carecem de afecto para o seu desenvolvimento), não é adequado.
O ser humano necessita de afecto para crescer e viver à altura da sua vocação suprema: o ser humano entre humanos. A educação do futuro deve assentar na compaixão e na busca de sentido. Não na sujeição cega à autoridade e à criação de uma auto-imagem junto das crianças e adolescentes assente num conjunto de coordenadas de discriminação e de rejeição da dignidade de cada um dos seres humanos.
A sociedade não é uma caserna. E o amor maternal, paternal e filial são um cimento que nenhum sucedâneo pode substituir, nem um ‘graduado’ que dá o comprimido à noite com a mesma dedicação com que dá a lambada ou o castigo. Os pais é que devem estar à cabeceira dos filhos. E as mães.
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2 comentários:
Paulo,
O mundo não é de facto para nós uma "caserna". Essa não pode deixar indiferente quem entende que o afecto é essencial para o crescimento espiritual e humano de cada um de nós.
A educação pela arte, a criação de bem e de beleza não se dá com a obediência de hierarquias e modelos que procuram, pela severa disciplina, prender a liberdade às normas de um comportamento a tudo avesso a livre expressão e crescimento da mente em todas as direcções, sem restrições sociais ou outras divisões por "castas" ou "custas"...
Um abraço, Paulo.
NEM MAIS!!!
Um beijo!eu
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