O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sábado, 8 de agosto de 2009

Luggala

Para Garech Browne

Uma e outra vez, em sonhos, regresso àquela margem. Há um vento que se levanta, uma gaivota tenta rasar os pinheiros, as ondas murmuram e rebentam ao longo da clara foice da pequena praia.
Abrindo caminho por entre juncos e caniços, saltando um riacho lamacento, aproximo-me do templo à beira de água, santuário da morte, pedra angular da tua tristeza. Fico de pé lá dentro, junto de um dos pilares do mausoléu, observo a água na taça de pedra. Quando assa a ondulação do vento, surge uma calma superfície, como um espelho ou um cristal. E nela se ergue a tua face, triste para além das palavras, triste com a aceitação de uma sequência cega, implacável. É que há três túmulos junto deste templo cinzento, de um irmão mais novo, de uma meia-irmã e de um irmão adulto, morto aos vinte e um anos. Os seus monumentos de granito de Wicklow são aqui tão naturais como as rochas dispersas, mas não há qualquer promessa de ressurreição, apenas silêncio derradeiro do lugar, a face xistosa e desfeita do cascalho, as escuríssimas águas do lago glacial.


John Montague
in Uma Luz Diferente
Quetzal Editores, 1993