O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Pollock para A.

Quando tu falas A., Pollock pinta. Começas com o olhar triste, acendes o cigarro, poisas o copo e soltas as palavras. Em ti as palavras não são signos, são movimentos e linhas, são borrões, são colorações, são febres, são calores, são erupções, e as cores mancham-nos o cérebro. Não se pensa o que tu dizes, vemos o que tu dizes, ruborizamos as cores com que dizes. A., quando falas a neve cai como nalgumas pinturas e há rios que correm para dentro de nós e não há tema, há implosão, há explosão, há deflagração. Há sequência não há encadeamento, há impulso, não há ordem, há reverberação não há consolidação. Há entusiasmo não há encomiasmo. É por isso que ouvir-te falar é ver Pollock a pintar. Quando tu falas Pollock não precisa de esperar pela catedral. Há uma catedral. A catedral do deus desordenado, do deus perdido atrás das formas, do deus hesitante do sentido, do deus que tem memórias aprisionadas no espaço e no tempo. E, largados por ti à porta da catedral, a uma catedral só com porta e sem paredes, sem altar e sem sacrifício, tu perguntas, como num conto de Kafka, como se abre a porta (?).
E eu não sei. Sabes por que não sei? Porque a porta da catedral és tu. E tu não és um livro para uma leitora, és um cometa, e o teu rosto branco tem uma cauda branca como não há lembrança de outro assim dentro dos céus da minha memória e eu fico à distância a receber o infinito que a porta suspende mas não contém. É por isso que, sendo uma porta, me ofereces o deserto por onde passam mais vezes os cometas de que o deus desordenado se esquece, quando desenha nas formas que desconhece as pontas das estrelas, e a luz lhe escapa não apenas em velocidade, mas em fuga. Depois olhas-nos e ouvimos Bach dentro das sombras entardecidas do teu olhar. Passam anjos de Rilke no ar, invisíveis mas tangíveis, e um deles pede que te leia alto um poema para descansares as mãos e o ritmo abrandar à porta da tua catedral sem rosácea, porque inundada da luz com que no deserto o sol rasga os olhos e os fecha para o oriente da vida insuspensa atrás de tudo e em tudo.

Esta noite, depois de discutir e partir algumas garrafas contra as paredes de madeira, de gritar para soltar o seu daimon, A. e Pollock vão conversar comigo junto à porta por onde passa um rio e um pescador, sentado e cego, desenha movimentos que são de Agosto e são Deus. A. olhará para mim e eu vê-la-ei em simultâneo no céu do verão, na tela de Pollock e nos movimentos do pescador. A tem escondido no rosto um cometa. E eu vejo-o/a e sinto a proximidade dos deuses. Depois fecho os olhos e oiço as vozes misturadas de Holderlin e Rilke. E a vida é um quadro secreto para revelar aos que encontramos ou reencontramos.



4 comentários:

Unknown disse...

Se tiver paciência, gostava de saber o que lhe significa "catedral"..

Anónimo disse...

Ana podes tratar-me por tu. Não sou tão velha quanto o Manuelinho ...estou a brincar com o Manuelinho mas a falar a sério contigo.

Combino assim contigo (se é que posso tratar-te por tu...penso pelo que li até agora, que não levarás a mal): escrevo depois um texto sobre a "catedral", mas hoje não, cheguei agora de viagem e estou exausta. Mas, imediatamente é também um título de um dos quadros de Pollock, para quem pintar era um ofício não diferente de "construir uma catedral." Obrigada pela pergunta, obrigada por teres percebido bem o fundo em que nasce A.
Recebe um grande sorriso meu.
Pode ser?
Desculpa ser tão pobre na resposta...

Unknown disse...

Pode, fico à espera da sua catedral, ou, de si...

Unknown disse...

Ops... não está fácil, fico à espera da tua catedral, de Ti.