domingo, 31 de agosto de 2008

Mensagem lacónica

Dead Can Dance - Black Sun.mp3 -



Que nome se dá à ausência de saudade?
Que lugar é esse tão próximo que não recordas a morada?
Algures, num ponto misterioso fundeado em ti, sentes augúrios de regresso.
Momentos há em que o sentes perto, tão perto... Sentes-lhe o embriagante pulsar penetrando-te em vagas ardentes que te chamam num cicio familiar e mesmo assim ininteligível; é uma mensagem telegráfica poluída com ruídos difusos, de vozes e sons de mundos onde passaste sem te demorar.
Respiras! O ar alonga-se em cavidades, trilha escadas no poço sem fim.
Ah! No fundo de ti o charco lamacento aquieta-se, a lama acomoda-se num leito espesso; é húmus fértil que as sementes, anteriores à palpabilidade da terra, esperavam para poderem germinar. Largada quase imersa, nessa poça opalina, a corrente pesada, enferrujada, conduz o teu olhar ao grilhão ancestral que jaz ancorado mas arrombado. Ferropeia de boca escancarada grita sem voz o hino ao silêncio, desabrolha campos inteiros de almas transparentes que ascendem como suspiros. O ar rarefaz-se e demora-se em ascendência; exala perfumados cânticos mudos de êxtase, exulta não por ti mas pelas mil glebas, intrinsecamente irmãs, libertas e floridas. Sentes a leveza de ser alígero sem ser alado, incomensurável, infinito e abrangente...
Ah! Aí tudo vibra arrebatado, desdobra-se orgástico e tu és tudo desmascarado de forma, limites, fronteiras e conceitos. A frase incompreensível que desde eras remotas sibilava na tua mente ribomba num clarão refulgente.
Ah! Expiras, vais onde só podes repousar por mero instante. Lacónica é por ora, a extensão desse vasto lugar; porém a profecia fica gravada: A qualquer momento hás de regressar.

sábado, 30 de agosto de 2008

Ainda o canto de Gabriela LLansol

Fotografia de Olivier Taugourdeau

Entrei na casa. Deixei a brisa beijar a cortina de renda e o seu reflexo no soalho mover-se devagar. A porta dava para uma terraço e o terraço para uma larga praça e a praça dava para o mar. Assim, as sílabas claras elevadas até ao terraço formavam um bailado com as nuvens que subiam até ao ouvido da casa. A cor que se desprendia das flores do chá fazia efeitos de luz no fundo da chávena fumegante. Saboreei o momento de paz e não escrevi nessa linha fumegante. Encostei o ouvido ao pensamento para ouvir a voz dos mortos. Nos dedos de Gabriela poisou uma borboleta branca, tão leve que apenas se sentiu na sombra da parede. Ouvi. No andar de baixo, o meu pai desenhava pássaros num papel minúsculo.

Maria Sarmento -2002

«Estou bem onde escrevi; estou melhor onde hei-de escrever; o presente é este movimento que se dirige para duas portas opostas e as abre, de escuro a claro, para o mesmo lugar onde já se acende a centelha que ondulará, finalmente, à mais ligeira aragem»

«Esta casa, nos meus olhos que recolhem o último detalhe com a consciência do primeiro momento mais além, fez-se sempre de uma totalidade, e muitíssimas parcelas; a totalidade era a luz, caminho envolvente quando eu descansava aqui; essa luz tinha uma individualidade física tão doce que eu não sentia nenhuma distância entre mim e o que a escrita louvava.»

Gabriela Llansol

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Águia Azul




"Eu presevero com o fim de criar

Transcendendo a mente

Selo a saída da visão

Com o tom cósmico da presença

Eu sou guiado pelo poder da autogeração"



"Tenho a energia e o poder de atravessar a terra para recordar e despertar tudo o que sou"

Rainbow




“SOMEWHERE OVER THE RAINBOW,
SKYS ARE BLUE
AND THE DREAMS THAT YOU DARE TO DREAM
REALLY DO COME TRUE”



O arco-íris deixa o meu coração
Mais tranquilo e
Torna os sonhos realidade.
Mesmo que não seja a minha realidade
Mesmo que esses sonhos não sejam os meus.

7 Cores que o sol e a chuva transformam
Num arco-íris colorido gigante
Que nos abraça
A cada vez que surge
No céu.

Um abraço mágico e
Raro. Gostoso de se sentir apenas no olhar.
E, inevitavelmente, bem no fundo do meu coração.

Para SEMPRE
Um “para sempre” ETERNO
Como aquilo que procuro e nunca encontro…
Para que nunca se resuma à felicidade
Aquilo que eu vivo ou sinto.

era bem o fim de um sonho


(Gabriela Llansol - in memoriam)

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Só perguntaste para saber...
É claro.
Fizeste muito bem.
Há criaturas que perguntam
para não saber.
Fernando Pessoa
in Quaresma, Decifrador

Amazonas e Poetas

Sempre ouvi dizer que as Amazonas são corajosas guerreiras. Não conheci nenhuma. Garantem-me que não há quem se lhes assemelhe em bravura. As pedras que retiram com esforço do leito do rio ganham vida em contacto com o ar. Depois de moldadas, o animal ou o objecto que delas se forma solta o seu poder e sortilégio. Os homens temem-nas. Elas correram mundo no seu tempo e espalharam-se pelos continentes, por ilhas, junto da água, as amazonas fortificaram, pois é com esse elemento que tonificam e apuram todos os seus poderes. São filhas da mudança, do vento, e com ele cavalgam sempre em busca. O que buscam essas mulheres? O que as faz travar vigorosas batalhas e cuidar-se para que o seu corpo seja são e forte? Como fazem para sobreviver sozinhas? Que culpa expiam? Embelezam-se para a Festa das Rosas e perseguem a sua presa com tamanha coragem e beleza, que a culpa transforma em misto de medo e desejo os homens que as avistam. Sabem-se unidas pela força da abdicação e do inconformismo. Criaram uma sociedade à parte. De que abdicam estas mulheres temíveis? Abdicam de ser rainhas. Abdicam da sombra. Querem a luz e a coroa. Vão em busca do amante para a festa das rosas, essas mulheres temíveis. Mas não é a Rosa que buscam, tão só o filho delas. O filho da Rosa para criar e entregar ao mundo que lhes foi usurpado – Talvez estas mulheres não existam mesmo, e sejam a forma materializado do medo e da culpa – Só de uma coisa essas guerreiras não abdicam, a coisa da maternidade. E essa grande causa as mantém unidas. São cada vez menos raras as mulheres guerreiras, as amazonas. Dizem que, quando a pedra do rio ou a pedra da lua se transforma em serpente, se tornam invencíveis. Só são vulneráveis ao Amor. Só ele as faz perder batalhas. O amor cego e a paixão violenta são simultaneamente a sua maior fragilidade e a causa da sua invencível determinação para a vitória. É dessas águas agitadas que retiram a sua força de vencedoras. Sujeitas à cegueira do amor, algumas delas têm caído por terra e deposto as armas. E as armas das amazonas são talhadas e afiadas com extremo cuidado e sabedoria.
Dizem-me que está mal e que pecaram essas mulheres, por não aceitarem o seu destino. Não digo que sim nem que não. Não sou guerreira. As minhas armas são a compaixão e a benevolência. Digo que em qualquer sociedade todos os papéis são necessários e que a ordem e a hierarquia deveria surgir sempre da sensatez, da sabedoria e da bondade. Nisto acredito. Os poetas, os filósofos, os místicos serão sempre como as Amazonas. Em vez de armas, soltam as palavras e elevam o coração, e andam sozinhos pelas estradas e caminhos. Por vezes, nem sabem o que buscam... Caminham sós, para onde os leva o vento, ou uma ideia perdida. Mas, mais cedo ou mais tarde, terão que escolher. Se não forem banidos pela sociedade organizada, onde pertencem e não pertencem, onde estão e não estão. Pois que vivem em duplo, a vida se encarregará de expulsar um deles, ou fazê-lo exilado por vontade própria. Quando se vive em duplo, a realidade é e não é. Não há certezas. E não há lugar para a incerteza e para a dúvida, em nenhuma sociedade conhecida. Têm que se amputar de uma parte de si, os poetas à solta, os verdadeiros filósofos, os místicos de todas as crenças. Permanecendo íntegros, serão desintegrados e deportados. Por vezes, parecem indiferentes aos factos reais, estes seres que levam como sinal, uma estrela ou uma rosa. Mas não se julgue precipitadamente que são dementes ou iludidos: errantes, estrangeiros, mendigos, parecem ser. Nem belos como as amazonas são. Insignificante é a sua aparência. Sabem que não existem sem questionar ou sonhar. Sabem-se condenados. Às vezes ganham mundo e desaparecem, outras vão atrás de causas e tornam-se revolucionários e abdicam e partem de novo, engolindo vento à procura do que deixaram. Nunca se sentirão satisfeitos. Como as amazonas, parecem perigosos, mas mais do que elas têm as suas fragilidades. Amam a pátria, mas a sua pátria fica longe. Amam o Amor, mas nisso se tornam cavaleiros insaciáveis, pois o amor tem longos braços. Não podem ser negociantes, os poetas e as Amazonas, pois tampouco abdicam de princípios de honestidade e lealdade. Serão o que são e o que não são. Trocam os pés ao andar e desaparecem tragados pelo pó, como malteses. Parecem bêbados, com um pé na realidade que vai com eles e o outro a querer ficar.
E os filhos do mal, os traiçoeiros, os ambiciosos, os sedentos de poder? Qual o seu lugar na sociedade? O seu papel é enorme. É predominante. São os protagonistas de uma história virada do avesso que andamos a viver há muito tempo. Não há na realidade tipos sociais. Há pessoas. Quem disse que um poeta não pode ser guerreiro e místico e filósofo? Quem disse que uma Amazona não pode cuidar dos seus filhos amá-los e separar-se deles para que sejam pais, filhos e irmãos de todos? Quem disse que quem é guerreiro, não pode cultivar rosas, e amá-las, antes ou depois da batalha? Quem disse que há castas puras e tipos sociais definidos a régua e a castigo? Quem diz que se nasce e morre com certezas acerca do nosso papel social na vida e acerca da vida? Creio, do que conheço, que não há tipos sociais puros e que para além do que sonhamos há ainda o que somos e vice-versa, e não sabemos o que somos, tão só o que sonhamos. Homens e mulheres, guerreiros, negociantes, vigaristas, mentirosos, filósofos, poetas místicos e crentes, governados e governantes, súbditos e vassalos; admiradores e admirados. Tudo tipos mistos, humanos. O meu sonho não é de castas. O meu reino é dos simples. O rio dos poetas não corre por nenhum objectivo. Corre. A minha utopia não é só uma ideia. Temos todos a obrigação de respeitar e cuidar. E já percebemos que só pode ser Rei aquele que, por exemplos, palavras e obras está mais próximo do Pai. Aceita a bondade como coroa, a fraternidade como ceptro e o silêncio e a sabedoria como escudos contra as injúrias e a ignorância. Não podemos esquecer que o reinado é uma ilusão e estamos aqui de passagem. E às vezes estamos só de viagem ou nem sabemos se cá estamos e o que é esse “cá estar”. Porque não é Rei quem quer, nem quem nasceu fidalgo e nobre, mas quem ouve do seu povo aclamação e se deita não convencido de si, mas convencido que ainda pode fazer melhor, pela Pátria e pela Frátria. Reinar é semear. E quem se convence é vencido. A impotência dos deuses não escapa ao Fado. E do Fado, nem humanos nem deuses conhecem os propósitos.

Para o Paulo Feitais, para ele saber que o seu coração está na Serpente e que tenho Saudades do futuro que corre para o passado. Para uma princesa que está no rio a moldar uma pedra em forma de coração a sangrar.

Menina Da Lua

"Leve na lembrança
A singela melodia que eu fiz
Pra ti, ó bem amada
Princesa, olhos d'água
Menina da lua
Quero te ver clara
Clareando a noite intensa deste amor
O céu é teu sorriso
No branco do teu rosto
A irradiar ternura
Quero que desprendas
De qualquer temor que sintas
Tens o teu escudo
O teu tear
Tens na mão, querida
A semente
De uma flor que inspira um beijo ardente
Um convite para amar"
Maria Rita
Composição: Renato Mota

"Só se vê bem com o coração..."

(Para quem conseguir ver bem é o Platero no seu monte a regar as suas rosas... as suas, ele) :)

terça-feira, 26 de agosto de 2008

organicidade cartográfica polimorfonuclear


A lei da raridade anunciada está instalada

desde confins saturnos das bujigangas

e, circula como o cancro em combustão

onde fluímos através de dilúvios em suplício

que, vistos deitados duma enfermaria,

são sim escarpas inóspitas de lampejante

intensa gratidão a cem mil metros de altitude.


Somos carapaus a ferver na panela do

lago vulcânico da nossa diversão de ginseng,

aproximamo-nos como quem não quer a Coisa

para que nos conceda sua cirurgia mais frondosa,

congela-se o cometa aí mesmo, atravessando

esse pináculo de densa fricção interior.


É dúbia a vontade e jamais justa, não basta

atrelar o malévolo ao Greenpeace sádico de

nossa alma não partilhável, é preciso ansear

e insistir com os indígenas que desrespeitamos,

libertando-nos da biologia da auto-censura para

nos perdermos a extrapolar o espírito enxuto.


Tudo é mais linear do que nunca será,

escrevo entretantos o que te contradiz a gana,

transpiro monóxido de carbono quando

tão podre me sinto, ninguém pretendo ajudar,

minha roupa dilata e vou exercitando

o impulso de exteriorizar cada desperdício;


somos, jamais sóbrios, ansiãos quadrúpedes

constrictos ao vértice que ouvidos inventam,

matinais parcas dimensões diagnosticáveis

estão a analisar-vos caladas, vêem o consumo

com que humanos se socorrem;

decididas

ilusões inscritas de importância, pululamos

entre elas e devoramos cada magnólia como

mais um pensamento escoado que encadeia.


Torno-me em muco para prescrutar narinas

de tragédias ou gargalhadas aquis imortais,

somos amontoados de sentimentos dignos de

se confrontarem em demenos que esgares eternos,

atravessando-me com sílabas doentias relato

o que prescrevo e transformo-me em história.


Nunca aprendi a andar de bicicleta

e em Amesterdão vai-me fazer falta,

quando lá tamborilar na tontura do crack

quilometrando experiências criminosas e

ofensa agressiva a standarts económicos que

geram falências familiares e reabilitação anal:

intermináveis pés-de-atleta imunes ao nexo.


in quimicoterapia 2004

O vivo sossego dos "beijos merecidos da Verdade"

"Deus criou-me criança, e deixou-me sempre criança. Mas por que deixou que a Vida me batesse e me tirasse os brinquedos, e me deixasse só no recreio, amarrotando com mãos tão fracas o bibe azul sujo de lágrimas compridas? Se eu não poderia viver senão acarinhado, por que deitaram fora o meu carinho? (...)
E tudo espera, aberto e decorado, o Rei que virá, e já chega, que a poeira do cortejo é uma nova névoa no oriente lento, e as lanças luzem já na distância com uma madrugada sua. (...)
Surge dos lados do oriente a luz loura do luar de ouro. O rastro que faz no rio largo abre serpentes no mar.

Dominámos outrora o mar físico, criando a civilização universal; dominaremos agora o mar psíquico, a emoção, a mãe temperamento, criando a civilização intelectual."
Bernardo Soares, "Livro do Desassossego"

A Apaziguadora


Milenares as noites baixam sobre os dias
Os seus ombros nus
Cobertos pelo brilho finíssimo da lua;
O arco das suas costas reflecte
O olhar branco da luz,
Arco-íris do sonho;
As suas asas, gastas de poeira estelar,
São o que de mais belo o universo viu.

Por isso, ó noite única, sempre antiga e nova,
Única e plural,
No universo plural e único!
Ó noite, colo de todas as preces,
Vem sentar-te junto da minha fogueira!
Vem aquecer as tuas asas húmidas de milhares de invernos;
Frias de gelos milenares,
Gastas de atravessar montanhas e ventos.
Vem, ó noite! junta-te ao fogo da minha imaginação e apaga
A febre dos meus olhos, derramando neles os colírios das águas
Que trouxeste da montanha.

Por isso, carinhosa enfermeira do Além,
Cuidadora dos aflitos; mãe dolorosa dos simples;
Mátria de seios escuros, complementar ao mamilo do Sol que tudo deixa ver,
Até a cegueira.
Tu que "que tira (s) mundo ao mundo",
Ó apaziguadora, minha irmã que abres uma estrada de ausência
Onde também eu escureço e esbato os contornos da existência
Tu que me visitas, ritual e inevitavelmente;
Tu que atiras para dentro dos meus sonhos
Toalhas frescas que me tiram a febre do rosto...
E te afastas silenciosa como apareceste,
Ó guardadora da aurora que te guardas dentro de mim
E afagas os meus cansaços;
E trazes nos braços pulseiras de estrelas e pó lunar
Para guardar no frasco do veneno que não mata e adormece...
E fazes desaparecer a ânsia dos que anseiam;
Tu que fazes com que a espada brilhante seja sombra
Imagem esbatida onde repousas a cabeça e te coroas
Para todo o sempre rainha dos desolados, peito manso dos desditosos;
Dor sorvida do peito dos poetas.
Também por ti me desfolho
E atiro em todas as direcções o meu ser perdido em ti.

Milenares, os teus gestos pausados,
As tuas lágrimas purificadas,
A tua longa cabeleira negra
Debruada de miríades de luzes;
Sublime o teu perdão,
Serena a tua face límpida;
Por isso te entrego o lume das palavras
Para que o poema te finja
E te coroe, Mãe
Da minha inquietação atenta.

Milenares as noites em que te fundes numa só
Estreita e pálida mão que refrescas os cabelos
Com o orvalho da tua concha de alimento de nada
E apagas a luz sem a ferir, suavemente
Como um choro lento de mulher, um veio de água que corre para dentro
Da alma sedenta dos homens que morrem
E levam no teu olhar o grande consolo da eterna suavidade.

Ave Mãe-Mar

"Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti.
Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito,
Mágoa externa da Terra, choro silencioso do Mundo.
Mãe suave e antiga das emoções sem gesto,
Irmã mais velha, virgem e triste, das ideias sem nexo,
Noiva esperando sempre os nossos propósitos incompletos,
A direcção constantemente abandonada do nosso destino,
A nossa incerteza pagã sem alegria,
A nossa fraqueza cristã sem fé,
O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem êxtases,
A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência de fracos,
A nossa vida, ó mãe, a nossa perdida da vida...

... não sei ser humano, conviver
DE DENTRO da alma triste com os homens meus irmãos na terra.
Não sei ser útil mesmo sentindo ser prático, ser quotidiano, nítido...
(...)
Por isso sê para mim materna, ó noite tranquila...
Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu que és a paz,
Tu que não existes, que és só a ausência de luz,
Tu que não és uma coisa, um lugar, uma essência, uma vida,...
Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos,
E sê frescor e alívio, ó noite, sobre a minha fronte...

Tu, cuja vinda é tão suave que parece um afastamento,
Cujo fluxo e refluxo de treva, quando a lua bafeja,
Tem onda de carinho morto, frio de mares de sonho,
Brisas de paisagens supostas para a nossa angústia excessiva...
Tu, palidamente, tu, flébil, tu, liquidamente,
Aroma de morte entre flores, hálito de febre sobre margens,
Tu, rainha, tu castelã, dona pálida, vem...
(...)
Ah, sê materna!
Ah, sê melíflua e taciturna
Ó noite aonda me esqueço de mim
Lembrando...
(...)
Quando eu abandonar o meu ser como uma cadeira donde me levanto
Deixar atrás o mundo como a um quarto donde saio,
Abandonar toda esta forma, de sentidos e pensamento...
Como uma capa que me prenda,
Quando de vez minha alma chegar à superfície da minha pele
E dispersar o meu ser pelo universo exterior,
Seja com alegria que eu reconheça...
um sol... na antemanhã do meu novo ser."
Álvaro de Campos

A primavera no verão, e o chico...

Flor da idade
(Chico Buarque)

A gente faz hora, faz fila na vida do meio-dia
Pra ver Maria a gente almoça e só se coça e
só se roça e só se vicia
A porta dela não tem tramela
A janela é sem gelosia
Nem desconfia
Ai, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor
Na hora certa a casa aberta, o pijama aberto a família, armadilha
A mesa posta de peixe deixa um cheirinho da sua filha
Ela vive grudada no sucesso do rádio de pilha, que maravilha
Ai, o primeiro copo, o primeiro corpo o primeiro amor
Vê passar ela como dança balança avança e recua
A gente sua a roupa da cuja se lava no meio da rua
Despudorada, dada, a danada agrada andar semi-nua e continua
Ai, a primeira dama, o primeiro drama o primeiro amor
Carlos amava Dora, que amava Lia, que amava Léa,
que amava Dora, que amava Rita, que amava Dito,
que amava Rita, que amava Dito, que amava Rita, que amava
Carlos amava Dora, que amava Pedro, que amava tanto,
que amava a filha, que amava Carlos, que amava Dora, que
amava toda quadrilha,
Que amava toda quadrilha
Que amava toda quadrilha
Que amava toda quadrilha

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

O Flamingo

O Flamingo apareceu na paisagem. E ela não reconheceu mais nada. Ela perguntou sobre a ave. Ele respondeu que o Flamingo é uma ave viajante e largou-lhe a mão. Já não perguntou mais nada. Depois ficou a ver o Flamingo, a recebê-lo na paisagem.
Uma paisagem é uma poisagem. Para o Flamingo e para ela. O Flamingo é uma ave viajante de onde? Antes de enviar o Flamingo, no seu caminho pelo rio, Deus fez-se ouvir a ler alto os poemas de Rilke e o Flamingo aprendeu a voz dos mortos. Depois da audição dos versos e da iniciação órfica à poesia como redenção ou absolução dos que ainda continuam vivos, Deus perguntou ao Flamingo que queria ele ser(?).
Olhando ainda para trás para perscrutar o vazio de Deus a acompanhá-lo, o Flamingo respondeu: quero que o meu corpo seja uma pira, uma arca, uma urna clara para os mortos que chegarem a este rio. Não uma arca dos que perderam a vida, mas daqueles que transbordam sobrevida.
Aceitando que a poesia é uma forma de educar e salvar, Deus concedeu ao Flamingo, nesse instante de breve diálogo depois da lírica audição, um corpo conforme ao pedido. Um corpo vestido de linho alvo, de linho luz para receber os passageiros puros. Poisados na paisagem, ela e o Flamingo, ficam para se reconhecerem. Ela no barco, ele no urzal. Ela espera-o, mas há outros à volta que o aguardam com mais silêncio, com mais clamor. Com mais preparação, com mais ardor. Pressentir que o Flamingo é uma ave que ouve Deus, fá-la concluir que na sua vida as paisagens são assombrosas aparições. E pensa: [talvez] para o Flamingo Deus seja audível, mas para si, Deus e os divinos são inesperadas presenças. Epifânicas companhias no esplendor mais radiante do seu estado de emudecimento, no seu estado de silenciamento encantado e cadenciado. E ouve a proximidade de Deus que estala como madeira seca num fogo que vem do Sol, que vem no vento, que é enamoramento e está na cor e no deslumbramento da percepção, na súbita experiência da excelência da visão. E sabe, ela sabe, que Deus caminha no sentido oposto ao do mundo. O mundo comunica. O divino descomunica. E por isso, nesse silêncio em que é estranha ao mundo, ela sente que Deus se aproxima dos que dizem sem mediação, sem necessidade de remediação. Deus aproxima-se dos que têm uma linguagem imediata: os que são naturais, os que são fins, os que são afins. Nesses, pensa ela, nos quais a linguagem é imediata há mais profundidade gerada pelo silêncio e também por isso mais horizonte de irradiação e expansão de círculos e focos de luz. Não é à toa que esses seres comunicam por tons, comunicam por sons. Há uma brevidade que os rasga de eternidade. Neles a luz não se afasta: trespassa-os. Dilata-os.
Ela sabe-se no rio, não se sabe o quê no rio. Uma morta esperando no rio, uma alma atravessando de barco o rio, uma alma vestida de branco, dançando nas rápidas posições do rosto branco da vela, uma alma ardendo no nascente e no poente do sol, uma alma que junto à vela reaprende a esvoaçar, a zarpar??... Não sabe. Para os seres a quem Deus parece ter dado o privilégio da pergunta, da escolha e da resposta, Deus também concedeu o dom do silêncio meditante. O gorjear, o canto e o som penetrante são formas de uma linguagem orante que é mais fecunda do que a linguagem [dita] comunicante. Ela olha o Flamingo. Não é só uma ave viajante. Atendendo ao seu poiso, acedendo à sua forma, percebe que o Flamingo é uma ave mendicante: está impedida de matar por ter escolhido salvar. Relembra, ao olhá-la com atenção amorosa, Heiner Muller, é preciso salvar do esquecimento um morto. E uma pergunta nasce e fica no silêncio com que o divino a atravessa, a absorve do mundo: onde se encontram os poetas?
Neste rio. Ouve-lhes os versos. Rumorejam como pássaros, como correntes. A atenção é o mais poderoso mecanismo de apreensão involuntária do mundo imperceptível aos sentidos. É a esse mundo que o Flamingo pertence. Também os escuta. Nota-se no andar, na forma como toca no bico para escutar a voz, as vozes. Na lentidão do andar, dentro da corrente que é torrente.
O Flamingo leu todos os poetas? Como faz o Flamingo a quem Deus leu os poemas em voz alta? Como faz o que ora, medita e salva recolhendo no seu corpo-urna, no seu corpo-arca, os que não podem ser esquecidos?
O Flamingo entoa um som, um canto e ela percebe que tudo na paisagem se anima. Do inanimado ao animado tudo ganha alento: as areias movem-se, as lamas deslizam, as urzes avivam-se, o vento afina os instrumentos da sua orquestra. Ave meditante e ave mendicante, ave sagrada que nas margens do rio se ajoelha para receber aquele que lhe chega de rosto branco e frio, de lábios fechados, de lábios lacrados, ave que sabe o caminho, o regresso. Ave álgica, nostálgica.
O que faz o Flamingo que escuta a leitura poética e é interpelado, fala e responde a Deus? O Flamingo escuta e medita. Mas o Flamingo que escuta a poesia não é apenas um perscrutador. É um mediador: aquele que escuta a poesia transporta no seu corpo os mortos, os deuses, os imortais. O Flamingo não é uma ave qualquer. Esta ave viajante alberga no seu corpo-urna, no seu corpo-pira, no seu corpo-útero os mortos que ainda vão a tempo de não haver nascido. Porque aquele que os ouve, de alguma forma, os transporta à origem e ao sem destino. Ao indireccionado. Mas ela indaga com o olhar: como faz o que medita e salva no seu corpo-arca, os que não podem ser esquecidos?
Olha ainda para trás para sentir o vazio de Deus a acompanhá-lo. Não sabe chamar por Deus. Só sabe vê-lo no invisível. Hesitante olha para os rastros. No céu há nuvens que ele vê escondidas no azul-branco. Sabe-as sílabas do céu. Ditongos plangentes nos efeitos cromáticos das cores, nos destinos ascendentes do olhar. Nas margens há caixas de arbustos, caixas que guardam música dos outros pássaros, sinais perdidos de uma linguagem panteísta, uma linguagem transcende. Nas margens há rumos, nas margens há rumores. Estremecem as pernas do Flamingo. Uma suave música determina a dança com que o Flamingo e o morto atravessam para o outro mundo. Um rumo com um rumor que o corpo reconhece como passagem para as paisagens múltiplas das vidas da alma. O ritmo, o rumo e rumor, descortina o que estava perdido, o que estava esbatido no confim ab-surdus da alma. As pernas do Flamingo balançam porque nas caixas dos arbustos estavam sons que eram dons de uma paisagem antiga.
Nas margens há segredos, nas margens há degredos. O Flamingo liberta, quando passa, o que já está desterrado. Recebe-o porque o Flamingo é uma morada. O Flamingo tem no bico uma flauta encantada de Pã, tem um dom que está na asa e tem outro que está no pé. Escreve para o futuro, escreve para o passado: escreve arqueologicamente, escreve premonitoriamente. Inspira e recorda.
Ela contempla o Flamingo como uma Ideia que a visita. Vê-o, ao Flamingo, como uma assombração que é aclaração. Vê o que este peixe-ave traz coberto com um fino linho sobre o corpo. Vê o que vem deitado no alto das pernas-colunas de Simeão. O Flamingo transporta, no rio da Memória, um morto. Alguém que já está frio e adormecido para o mundo. É esse que o Flamingo, no seu corpo de linho gaze, embala em penas brancas de silêncio e calor. E o morto segue, como o poema, imperturbável no alto dos seus pés descalços como os dos monges do deserto, no cimo das colunas de antanho. O Flamingo caminha devagar para não acordar o morto e só oferece, com desmedido cuidado, o lugar acima da Terra, o outro lugar para além do mundo que se merece e onde não se é esquecido. O seu corpo, urna, pira, altar, tem a majestade apoteótica com que no seu andar dançante o reconduz ao Uno, ao Absoluto que a alma filosófica ou compassiva conseguiu pelo abdicar, pelo renunciar, pelo silenciar na fuga e na passagem dos sinais e dos poemas. Ao caminhar, o Flamingo empresta-lhe o ritmo da vida. A nudez do morto é a sua sempre vida, a sua sobrevida. O Flamingo transporta-o ouvindo, relembrando, a sagrada poesia. Rilke e Muller nas paisagens-pautas. A este coro trágico juntam-se as vozes, as gargantas-gárgulas abandonadas nas margens. Junta-se ela. Cantora miserável dos sons difíceis. E o morto, aconchegado no corpo-túmulo do Flamingo toca na sua flauta mágica os sons do Passarinheiro, toca na sua linguagem sem Língua a fala contínua da Mãe. Os que como ela aguardam na margem, sentem que não há morte, mas uma ininterrupta vida que passa pelos sons e pelos dons. Todos sabem o refrão. A ópera ecoa e Eco não destoa. A paisagem é a aura de uma pátria. De uma paisagem poisagem. O Flamingo alado é no mundo um dos vestígios de Deus. Ela lembra-se das Histórias do Bom Deus de Rilke. O Flamingo é a mão direita de Deus. Aquela que só recria. Essa anamnese permanente, em fluxo, vem com a música, vem com a serenidade interior do mensageiro e do passageiro. Os dois estão mortos e os dois estão vivos. Ela é o Flamingo: no seu corpo moram mortos que são vivos. A tragédia do morto que foi retirado do mundo e passa, entre cânticos e lírica, de um reino resplandecente para outro mais dourado, sente-a ela. E as vozes que se ouvem não são vozes: são murmúrios, alusões, irradiações de almas entusiasmadas pela possibilidade de regresso. Quando a asa abre ela vê a mão da mãe que acena e se derrama.
O Flamingo órfico, de asas e pernas longas, conduz o cortejo com benevolência, com envolvência. Como consegue o Flamingo o que Orfeu perdeu? O Flamingo é possuído pela mania da luz não da contraluz. Extasiado e cansado, este ser da água e do ar, conduz o morto ao seu elemento, aos seus elementos saudosos. O Flamingo é o anjo da reminiscência. E esta paisagem não é senão uma poisagem: uma pintura esbatida no interior das nossas asas dobradas. Esta noite, conduzida pelo Flamingo, ela transmigrará do Jardim das Delícias para os frescos de Pompeia. Morrer é aproximar-se do perdido. Porque todos os seres são etimologias para as profundezas da alma. Passagens para o eterno que se esconde no efémero. Se ela olhar mais atentamente o Flamingo, o canto tornar-se-á pranto. Porque é nas lágrimas que os poemas chegam mais depressa aos rios. E a vida nos emudece como peregrinos.


Para a G. que junto ao rio passa como um Flamingo e me empresta a asa e a pena suave com que lhe escrevo sobre as paisagens da alma. Por ela ser uma paisagem, uma poisagem para as almas que são pranto mais do que espanto. Por ela ter pedido, no diálogo com os deuses, ou com Deus, o mesmo que o Flamingo e nos amar e fazer recordar.

domingo, 24 de agosto de 2008

Ser Homem é ser Poeta da Natureza

"Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
...
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...

Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!..."
Alberto Caeiro

Grande Mário Viegas.

sábado, 23 de agosto de 2008

O Vazio da Página


Uma página branca é a síntese ardente de todas as possibilidades.
Para o poeta é um poço, vertigem, mergulho no espelho
De múltiplas faces. Um alfabeto radioso, a chuva na varanda!

O poeta olha o branco do seu olho no branco imaculado da folha
Sente tremer o papel. Desvia o olhar. Lá fora há um mundo intranquilo
A mulher move-se e curva-se devagar na folha em branco do muro.

Começa a chover. O poeta guarda as palavras, dobra-as devagar,
Protege-as dos ventos fortes e o seu rosto chove vazios de mundo.
Uma vez ainda o vazio parece explodir. Não é nada. É só o silêncio

A riscar a distância e a estranheza da sombra dos dedos pausados
À espera de florir. A varanda dá para as letras, escorre por elas
A água transparente das pontes. O poeta afunda-se na página em cascata.

Mudo de excesso o mundo recolhe-se para dentro da folha, poente.
O vento fechou a porta e a mulher dobrou a página do muro. Cega.

do tempo

Rosto calmo
Rosto rugas
- rios de rugas –
Sem margens
Sem limites
(cordas)
Rosto Música
Rostro
Povich

Foto de Fernando Moital

Toda a realidade é um excesso...

Este poema consome-me toda a alma... - e tudo nasce e existe do excessivo amor.

"Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora,
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.

Cada alma é uma escada para Deus,
Cada alma é um corredor-Universo para Deus,
Cada alma é um rio correndo por margens de Extremo
Para Deus e em Deus com um sussuro soturno.

Sursum corda*! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito,
Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos
Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho
E funde em Noite o Mistério o Universo Excessivo!
Sursum corda! Na noite acordo, o silêncio é grande,
As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam
Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos
Que as vê como vagos vultos nocturnos na noite negra.
Sursum corda! Acordo na noite e sinto-me diverso.
Todo o Mundo com a sua forma visível do costume,
Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,
Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.

Sursum corda! Ó Terra, jardim suspenso, berço
Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva!
Mãe verde e florida todos os anos recente,
Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal,
Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adónis
Num rito anterior a todas as significações,
Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales!
Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões,
Grande voz acordando em cataratas e mares,
Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança,
Em cio de vegetação e florescência rompendo
Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso
À tua própria vontade transtornadora e eterna!
Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados,
Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones,
Mãe caprichosa que faz vegetar e secar,
Que perturba as próprias estações e confunde
Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!

Sursum corda! Reparo para ti e todo eu sou um hino!
Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica íntima
Volteia serpenteando ficando com um anel
Nevoento, de sensações reminiscidas e vagas,
Em torno ao teu vulto interno túrgido e ferveroso.

Ocupa toda a tua força e de todo o teu poder quente
Meu coração a ti aberto!
Como uma espada trespassando meu ser erguido e extático,
Intersecciona com o meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,
Teu movimento contínuo, contíguo a ti-própria sempre.

Sou um monte confuso de forças cheias de infinito
Tendendo em todas as direcções para todos os lados do espaço,
A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une
E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim
Não passem de mim, não quebrem meu ser, não partam meu corpo,
Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira
Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,
Para além de sóis de outros sistemas e dos astros remotos.

Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo.
Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,
No vasto chão supremo que não estão em cima nem em baixo
Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos
Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.

Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima,
Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo
De chamas explosivas buscando Deus e queimando
A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,
A minha inteligência limitadora e gelada.

Sou uma grande máquina movida por grande correias
De que só vejo a parte que pega nos meus tambores,
O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis,
E nunca parece chegar ao tambor donde parte...

Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito
Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si,
Cruzando-se em todas as direcções com outros volantes,
Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço
Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus.

Dentro de mim estão presos e atados ao chão
Todos os movimentos que compõem o universo,
A fúria minuciosa e... dos átomos
A fúria de todas as chamas, as raivas de todos os ventos,
A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam,
E a chuva como pedras atiradas de catapultas
De enormes exércitos de anões escondidos no céu.

Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio
De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.

Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos
Sobrevive-me em minha vida em todas as direcções!"
Álvaro de Campos

|*significa em latim "corações ao alto".|

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Mestre Eckhart e Budismo tibetano


Palestra de Paulo Borges sobre "Mestre Eckhart e Budismo tibetano"

25 de agosto, segunda-feira, às 20 horas

São Paulo, R. Dr. Paulo Vieira, 363 - Sumarezinho (perto da estação Vila Madalena do metrô).

Being free

"No desires, no goal, no seeking, no thoughts,
neither obtaining, nor rejecting, nor grasping, nor letting go,
being free."

Master Taisen Deshimaru

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Ler é dar de beber à alma

O Leitor Real é o que se torna naquilo que lê, é o que lê amando a escrita e o escritor que vê por detrás dela, ao encarná-lo, porque quem se alimenta de leite não é o que pensa nele, nem mesmo quem para ele olha, mas quem o bebe: quem sacia a alma lendo é quem se esquece de si e renasce de novo, relembrando a sua natureza infinita.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008


@ convento de cristo, tomar

O supremo pensar é amar

O mundo físico é obra do metafísico amor, por isso, pensar, como fenómeno metafísico, também só pode acontecer amorosamente. Qualquer pensamento que aconteça fora deste contexto trai-se a si mesmo.
O pensamento humano só acontece para que se reconheça o Amor e a re-criação. Só? E que mais se pode querer? E se é só disso que ele é capaz, tudo o mais é com a natureza, e somo-la sem a pensar, por ser ela a matéria do nosso amor, esse mesmo que nos dilui o pensamento no sentimento, o sonho na realidade, a noite no dia, o tempo na eternidade.

O verdadeiro conceito humano nasce da concepção, a qual caminha para a perfeição...











A ciência Real é o Amor.

terça-feira, 19 de agosto de 2008




Passei a fazer parte de um lindo quadro
pintado de verde esp'rança,
misturado com tons de alegria
e ilusão clarinha.



Para todos vocês, que só podiam ser vocês*

Ser Universal

Quando falo e sou eu, não falo e sou pelos outros, mas por mim, sendo que eu já sou os outros, não preciso, nem me é possível, tornar-me naquilo que eu já sou. O dia existe sendo a noite, assim, eu existo sendo os outros, pois os outros eram já o que eu era antes de me revelar. Não há oposição, há apenas revelação do que antes já havia - como no desenvolvimento de um feto ou da semente de uma planta.
Tudo o que existe hoje no mundo existe desde o princípio, a passagem do tempo está apenas a revelar o que encoberto ainda há, até que totalmente se descubra e se crie como ser universal que é.
A Terra, como Plan-e-ta que cresce, desenvolve-se naturalmente, por si, e como ela o ser humano, ao ser uno com ela. A influência do consciente -i-solado- do Homem sobre si próprio é igual à do consciente da flor sobre si mesma, que, como não o tem, é nenhuma.

Anotações*

Sim, hoje regressei ao sonho
da morte como outra invenção,
talvez como a única verdade dentro deste equívoco.
Diego Doncel

Sei que o primeiro verso não principia o poema. Que o primeiro verso não é a síntese anterior de outra coisa mais. Não anuncia, não vem primeiro, nem tão-pouco fica. Talvez transite porque trespassa primeiro o verso segundo e vai depois na esperança do mesmo. É qualquer coisa triste. Por isso todo o poema é contínuo, porque passa por uma linha desaparecida no seguimento das palavras que encontra, está para além de si mesmo, é a sua própria invisibilidade, o seu próprio desaparecimento. Talvez queira ser simplesmente tudo. Ser sem explicar. Ser sem si mesmo. Ser como o poeta sem seu próprio destino. Ser assim desaparecido e escrever apenas mais um poema, um último primeiro verso na solidão de ser apenas um. Ser tudo o que fica e tudo o que vê desaparecido, deixado ir. É uma existência sem explicação. Por isso o poeta escreve o poema na posição excepcional de ser todo o mundo pronunciado. Por isso fica caído nas palavras que encontra enquanto pensa, enquanto espera. E espera apenas as palavras, porque todas elas são todos os anúncios possíveis de uma só unidade que se desprende. E tudo se desprende enquanto escreve o primeiro verso. Tudo faz uma só existência em movimento em seu próprio pensamento, em seu próprio desaparecimento. Não foge mais das palavras, vivem puras em si para sempre em criação, e passam juntos, seguem tão móveis como se estivessem mortos, tão inúteis como se estivessem vivos, às vezes em silêncio, mortos e acompanhados. E o nada surge no encanto geral de tudo, e o poeta parece morto, trespassa também, meio acordado no claro-escuro do seu pensamento, com os olhos postos não se sabe bem em que visão, pois ele vê em cada canto o horror de tudo, em cada horror o encanto de tudo, e leva uma vida lenta, restituindo o que não conhece, o que tão certamente desconhece. E esquece a mentira, olha vago para ela. Para a vida. E esquece também a literatura. Esquece toda a poesia que conhece. Talvez queira ser sem explicar. Procura os cemitérios. Procura as igrejas. As planícies e a morte que nelas passa e que nunca chega a percorrer. As pedras puras. As casas puras. A idade pura. A sua própria loucura tão pura como o seu próprio nascimento. A essência de quem procura. E diz: estou morto. E vê a sua loucura tão certa como a altura de toda a devastação. A loucura em redor da escrita. E vê a loucura entrançada na cabeça das crianças puras. A loucura tão pura como elas, desprendendo-se, agitando os lados da sua inteligência. A loucura agarrando-se-lhe nas palavras, a loucura profunda de sentir depois, de viver depois, de ser depois entre a penumbra, caído, louco, desaparecido, morto. Porque o poeta quer a máxima visão de todas as loucuras imagináveis e por gritar. Vê sua mãe a olhar para ela. O seu sangue menstrual. Envelhece no seu sangue. Enlouquece também. Procura a Mulher. A mais bela diferença a inspirar felicidade. E decorrem as frases em redor do útero de ambos. Vão juntos. Vão sempre juntos como quem procura o repouso de um movimento. O poeta tornou-se poético, numa vida tão pura como qualquer outra. Uma vida da qual se desprendeu também. Perdido, longe, só, morrendo agora, tão novo e invisível na mais pura liberdade da poesia que escreveu. O primeiro verso não tem desígnio, como o poeta não sabe para onde vai, e enquanto os mortos vão receando a solidão, e os vivos se fazem desaparecer, os corpos vão sendo engolidos à procura de nascerem também.
*Publicado primeiro aqui.

Canção da noite no baloiço


Para a Anita, esta canção de pernas para o ar, no baloiço do tempo que vai a girar, vai o Sol e a Lua...

Ontem à tardinha era quase dia e a noite suspendeu
Os olhos à procura do som que ainda havia, na noite vazia.
Entre estrela e canto, entre a serra e o mar se perdeu
O vaso onde, à tardinha, era tarde para o dia, e a voz se perdia
E a estrela guardada na arca do vento estremecia. Era o ar, era o dia

A girar as girândolas, as estrelas e as rosas de toucar
A canção da noite cantada, suspensa num lenço
De arder e de rir. Havia canções para quando o tempo
Viesse outra vez libertar a noite que vazia ria
Sem chegar nem partir nem faltar nem cair do chão do ar

Diadema de ouro suspenso na coroa da criança nascida
Ontem à tardinha, quase noite, quase dia, oculto havia
Pendurado na lua um baloiço de luz que a noite vinha
Empurrar como um berço, ao tempo. A mãe sonhava:
Ai que linda infanta que vai a voar, a soltar os sopros

Para lá da roseira que havia na casa, na casa suspensa
Na barca do tempo. Roseira de cantos virados para o mar
Caminhos de neve de pés azulados, na tarde dormente
Dos gestos cansados, rosados de amar. Ai que linda rosa
Que tarda em chegar, vem no pó da noite que deita o luar.

Ai que bela noiva para o dia noivo, que pé tão rosado
Que a fada madrinha dançará na noite da tarde tardinha
Que já cá chegou e esperou pela noite entrada na vinha
Da tristeza alegre da cara que tinha a coroada rainha
Fada que dormia, veio soprar-lhe o dia no jardim sonhado.

Anjos e Rosas

Para o Paulo Feitais que tem com este e outros anjos uma (re) ligação especial.
Para o Platero que tão bem sabe cuidar do seu jardim.

Anda um anjo no meu sonho de mim, em puro cobre
Ensina-me a dormir e a conhecer os caminhos do vento
Tem as asas forradas de ouro velho e chora, o pobre!
Por ter comigo um pacto que dura mais que o tempo.

O Amor que me tem não tem ouvido o sino e a voz
Anda calado o anjo de cobre e rendas de bordar
Em cima da toalha a rosa secou no deserto a sós
A perseguir, mudo, a flor que mesmo seca há-de brotar

Que areias do deserto, ilhas do sul e cumes de montanha
Não sobrevoamos nós, tristes aves em voos de saudade!
Cinzas que a tarde colhe, pó, jornais, pedaços de lenha

Para o fogo que um dia havemos de habitar. Enfim, nós dois,
O anjo e eu, assim desentendidos trocamos receitas e olhares
Para que a névoa teça em fios finos a luz dos seus colares.

A saga do Homem-formiga

O ser humano
é um animal domesticado,
vive no grande circo do mundo
como leão enjaulado.
Não haverá ele de ser chato?...
Chato é pouco!
A comichão de estar
fora do corpo
atordoa-lhe o sentido...
como o formigueiro nos pés
que se levantam no ar.
Ser homem-formiga
em vez de poeta-cigarra
fá-lo viver fora de casa,
como trabalhador vagabundo
perdido da própria alma.

O Homem-filho entrou
em oposição
com a Mãe-Terra
e nessa guerra
se deixou
sem mais questionar
o seu porquê,
sem querer descobrir
a única via que lhe interessa,
a de a ela de novo se unir
e então viver a vida a sér-io,
ser mãe e filho de pleno direito,
cantar a vida de peito aberto,
ser criança livre
e poeta a tempo inteiro...
eterno.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

noivos e disfarce

o noivo - verde - está na perifria à espera do encontro. ( na parte superior da rosa, junto ao ramo)

se atentar com cuidado não vai deixar de o descobrir.

Romeu e Julieta?

Tristão e Isolda?

Pedro e Inês?

dê largas ao seu espírito criativo. divague

disfarce

a roseira é a mesma
a rosa é que se faz habitar por um gafanhoto .......côr-de-rosa.

que espera um companheiro, um cumplíce, um amante verde - que há-de vir da folhagem verde.

vai ver

ROSAS


rosa - a meu ver bonita - prisioneira de tentáculos de abóbora.
não vai haver competição. talvez complementaridade:

a rosa é suportada pelo elo elástico da abóbora, dando-lhe em troca a sua graciosidade indiscutível

Para a Anita (ainda Pessoa)




"Se não fosse o sonhar, o viver num perpétuo alheamento, poderia, de bom grado, chamar-me um realista, isto é, um indivíduo para quem o mundo exterior é uma nação independente.
Mas prefiro não me dar nome, ser o que sou com uma certa obscuridade e ter comigo a malícia de me não saber prever.
Tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, pois não sendo mais, nem querendo ser mais, que um espectador de mim mesmo, tenho que ter o melhor espectáculo que posso.
Assim, me construo a ouro e sedas, em salas supostas, palco falso, cenário antigo, sonho criado entre jogos de luzes brandas e músicas invisíveis."


Fernando Pessoa

Quando me dedicaram este texto, numa fita de final de curso, há uns anos atrás, guardei-o no coração.
Agora, dedico-o à Anita*

De novo...

"De novo traz as aparentes novas
Flores o Verão novo, e novamente
Verdesce a cor antiga
Das folhas redivivas.
Não mais, não mais dele o infecundo abismo,
Que mudo sorve o que mal somos, torna
À clara luz superna
A presença vivida.
Não mais; e a prole a que, pensando, dera
A vida da razão, em vão o chama,
Que as nove chaves fecham
Da Estige irreversível.
O que foi como um deus entre os que cantam,
O que do Olimpo as vozes, que chamavam,
Escutando ouviu, e, ouvindo,
Entendeu, hoje é nada.
Tecei embora as, que teceis, grinaldas.
Quem coroais, não coroando a ele?
Votivas as deponde,
Fúnebres sem ter culto.
Fique, porém, livre da leiva e do Orco,
A fama; e tu, que Ulisses erigira,
Tu, em teus sete montes,
Orgulha-te materna,
Igual, desde ele, às sete que contendem
Cidades por Homero, ou alcaica Lesbos,
Ou heptápila Tebas,
Ogígia mãe de Píndaro."
Ricardo Reis

Frutos

"Frutos, dão-os as árvores que vivem,
Não a iludida mente, que só se orna
Das flores lívidas
Do íntimo abismo.
Quantos reinos nas mentes e nas cousas
Te não talhaste imaginário! Tantos
Sem ter perdeste,
Sonhos cidades!
Ah, não consegues contra o adverso muito
Criar mais que propósitos frustrados!
Abdica e sê
Rei de ti mesmo."
















"Os deuses e os Messias que são deuses
Passam, e os sonhos vãos que são Messias.
A terra muda dura.

Nem deuses, nem Messias, nem ideias
Me trazem rosas. Minhas são se as tenho.
Se as tenho, que mais quero?"
Ricardo Reis

domingo, 17 de agosto de 2008

Antes de ti...

"Antes de ti era a Mãe Terra escrava
Das trevas súperas que da alma nascem
E caem sobre o mundo...

A realidade ao mundo devolveste
Que haviam os cristãos fechado na alma
E as portas reabriste
Por onde aurora o carro

Ou Febo* guie e os dois irmãos celestes
Quando no extremo mastro à noite luzem,
Mais valham que um luzeiro
Na ponta de um pau seco.

Restituíste a Terra à Terra. E agora
És parte corporal da própria terra,
(...)
Erras nas sombras frias,
Mas ao ouvir-te os povos com que auroras
Do abismo os íncolas as tristes frontes
Erguem e sentem deuses
Caminhar pelas sombras.

E eis que de nova luz o abismo se enche
E um céu raia a cobrir o absorto fundo
Da fauce misteriosa
Que traga o mal(1) do mundo(2)."
Ricardo Reis

|*Febo, "brilhante, luminoso, era o deus romano equivalente ao grego Apolo. Irmão gémeo de Diana, também conhecida por Ártemis, e também filho de Júpiter com Latona. Personificava a luz, era o deus das músicas, e o mais belo de Roma."
var. (1) fim, (2)vida|

A pérola da Terra

No Teu poema




No teu poema
existe um verso em branco sem medida,
um corpo que respira em céu aberto,
janela debruçada para a vida.

No teu poema
existe a dor calada lá no fundo,
o passo da coragem em casa escura,
e aberta uma varanda para o mundo.

Existe a noite,
O riso e a voz perfeita, a luz do dia,
a Festa da Senhora da Agonia e o cansaço
do corpo que adormece em cama fria.

Existe um rio,
a sina de quem nasce fraco ou forte,
o risco, a raiva, a luta
de quem cai ou que resiste,
que vence ou adormece antes da morte.

No teu poema
existe o grito e o eco da metralha
a dor que sei de cor mas não resigno
e os passos inquietos de quem falha.

No teu poema
existe um canto-chão alentejano
a rua e o pregão duma varina
e um barco a soprar a todo o pano.

Existe um rio,
o canto em vozes juntas, vozes certas
canção de uma só letra
e um só destino a embarcar
no cais da nova nau das descobertas.

Existe um rio,
a sina de quem nasce fraco ou forte,
o risci, a raiva, a luta
de quem cai ou que resiste
que vence ou adoremece
antes da morte.

No teu poema
existe a esperança acesa atrás do muro,
existe tudo mais que ainda me escapa...
E um verso em braco à espera do futuro...


José Luis Tinoco

O Nosso regresso cantado por Sophia...

"Quando eu morrer
voltarei para buscar os instantes
que não vivi junto do mar.


Como ondas do mar dançam em mim os pés do teu regresso.

Há muito que deixei aquela praia
De grandes areais e grandes vagas
Mas sou eu quem na brisa respira
E é por mim que espera cintilando a maré vasa.

No mar passa de onda em onda repetido
O meu nome fantástico e secreto
Que só os anjos do vento reconhecem
Quando os encontro e perco de repente

O mar azul e branco e as luzidias
Pedras – O arfado espaço
Onde o que está lavado se relava
Para o rito do espanto e do começo
Onde sou a mim mesma devolvida
Em sal espuma e concha regressada
À praia inicial da minha vida.

De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

Casa branca em frente ao mar enorme,
Com o teu jardim de areia e flores marinhas
E o teu silêncio intacto em quem dorme
O milagre das coisas que eram minhas.

Não há fantasmas nem almas,
E o mar imenso, solitário e antigo,
Parece bater palmas.

Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.

Reino de medusas e água lisa
Reino de silêncio luz e pedra
Habitação das formas espantosas
Coluna de sal e círculo de luz
Medida da Balança misteriosa

Vem do mar azul o marinheiro
Vem tranquilo ritmado inteiro
Perfeito como um deus,
Alheio às ruas.

O sol rente ao mar te acordará no intenso azul
Subirás devagar como os ressuscitados
Terás recuperado o teu selo, a tua sabedoria inicial
Emergirás confirmada e reunida
Espantada e jovem com as estátuas arcaicas
Com os gestos enrolados ainda nas dobras do teu manto"
Sophia de Mello Breyner Andresen

Em Noite de Eclipse parcial...

Ontem à tardinha a lua nasceu sobre esta rocha
Impura sobre um mundo inexpurgado.
O homem e seu campanheiro pararam
Para descansar perante a heróica altura.


Friamente o vento caiu sobre eles
Em muitas majestades de som:
Eles que tinham deixado o sol de chama caprichosa
Em busca de um sol de fogo mais intenso.
(...)


Ficção Suprema, Wallance stevens
(tradução de Luísa Campos)

sábado, 16 de agosto de 2008

Nação

Em homenagem ao Poeta baiano Dorival Caymmi que acordou hoje do seu sonho...

"Dorival Caymmi falou prá Oxum
Com Silas* tô em boa companhia
O céu abraça a terra, desagua o Rio na Bahia

Jeje minha sede é dos rios
A minha cor é o arco-íris, minha fome é tanta
Planta flor irmã da bandeira
A minha sina é verde-amarela feito a bananeira
Ouro cobre o espelho esmeralda
No berço esplêndido
A floresta em calda manjedoura d'alma
Labarágua, Sete Queda em chama
Cobra de ferro, Oxum-maré, homem e mulher na cama. (...)"
João Bosco

|*poeta brasileiro|
São Salvador
Terra de Nosso Senhor...


não confundir:

1 - matar a fome ao povo

2 - matar o povo à fome

húmido e quente

os bébés de mama
têm cheiro
a frutos tropicais:

manga?
mamão?
maracujá?

todos talvez:
fruta-pão
banana
sementes de cacau

a frutos tropicais
sob o calor húmido
de Luanda
ou de Macau

O Homem Real será filho do Mar da Terra

O corpo dos animais como o Homem nasce da Mãe-Terra através da ligação estabelecida pelo mar, assim, será através da união do mar da Terra com o mar formado pela também união de homem e mulher que ocorrerá o nascimento do ser humano real, quando o corpo dos pais representar plenamente o corpo-Terra.

Iemanjá, Rainha do Mar

Esta noite sonhei

Sonhei que o meu cavaleiro andante viajava pelas dunas
e que me procurava em cada pôr-do-sol…





Viajou milhares e milhares de anos
O caminho era este, a estrada era outra…





Na baínha do casaco trazia um presente para me oferecer





Rosas esculpidas pelo vento e pelo tempo.
Rosas secas, pétalas fósseis guardadas desde o princípio dos tempos





No meu sonho o céu era branco como cal e tinha muitas estrelas coloridas
Outras vezes, o céu era sustentado por colunas muito altas





Havia muitas portas, quase todas de um azul bonito











Um dessas portas esperava, entreaberta, que eu entrasse
Mas eu não entrei.




Escondi-me no alto do minarete
De uma das janelas parecia que se via o infinito
O que parece não acabar nunca. Mas não era o infinito


Era o deserto que me chamava
Era aquele alaranjado que me dizia que fosse, que me dizia que sim
O horizonte da cor do deserto é assim…





Estarrecida, contemplei a beleza e a grandiosidade
que é estar perante aquela areia macia
que nos envolve em todo o redor…
E, em silêncio, ouvir aquelas palavras que a natureza nos diz
quando se mostra assim nua, despida de tudo.





E o Sol desceu…




E a Lua subiu…
Num ritual que se repete pelos séculos dos séculos
Numa sequência de luz e de escuridão iluminada





Nesses momentos,
Há miragens que nos chegam…
Como se fossem espíritos anciãos
Dispostos a dançar connosco uma dança de lua cheia e de fogueira acesa
E nos acenam num adeus.





Acordei.


(leia-se: voltei)