O Flamingo apareceu na paisagem. E ela não reconheceu mais nada. Ela perguntou sobre a ave. Ele respondeu que o Flamingo é uma ave viajante e largou-lhe a mão. Já não perguntou mais nada. Depois ficou a ver o Flamingo, a recebê-lo na paisagem.
Uma paisagem é uma poisagem. Para o Flamingo e para ela. O Flamingo é uma ave viajante de onde? Antes de enviar o Flamingo, no seu caminho pelo rio, Deus fez-se ouvir a ler alto os poemas de Rilke e o Flamingo aprendeu a voz dos mortos. Depois da audição dos versos e da iniciação órfica à poesia como redenção ou absolução dos que ainda continuam vivos, Deus perguntou ao Flamingo que queria ele ser(?).
Olhando ainda para trás para perscrutar o vazio de Deus a acompanhá-lo, o Flamingo respondeu: quero que o meu corpo seja uma pira, uma arca, uma urna clara para os mortos que chegarem a este rio. Não uma arca dos que perderam a vida, mas daqueles que transbordam sobrevida.
Aceitando que a poesia é uma forma de educar e salvar, Deus concedeu ao Flamingo, nesse instante de breve diálogo depois da lírica audição, um corpo conforme ao pedido. Um corpo vestido de linho alvo, de linho luz para receber os passageiros puros. Poisados na paisagem, ela e o Flamingo, ficam para se reconhecerem. Ela no barco, ele no urzal. Ela espera-o, mas há outros à volta que o aguardam com mais silêncio, com mais clamor. Com mais preparação, com mais ardor. Pressentir que o Flamingo é uma ave que ouve Deus, fá-la concluir que na sua vida as paisagens são assombrosas aparições. E pensa: [talvez] para o Flamingo Deus seja audível, mas para si, Deus e os divinos são inesperadas presenças. Epifânicas companhias no esplendor mais radiante do seu estado de emudecimento, no seu estado de silenciamento encantado e cadenciado. E ouve a proximidade de Deus que estala como madeira seca num fogo que vem do Sol, que vem no vento, que é enamoramento e está na cor e no deslumbramento da percepção, na súbita experiência da excelência da visão. E sabe, ela sabe, que Deus caminha no sentido oposto ao do mundo. O mundo comunica. O divino descomunica. E por isso, nesse silêncio em que é estranha ao mundo, ela sente que Deus se aproxima dos que dizem sem mediação, sem necessidade de remediação. Deus aproxima-se dos que têm uma linguagem imediata: os que são naturais, os que são fins, os que são afins. Nesses, pensa ela, nos quais a linguagem é imediata há mais profundidade gerada pelo silêncio e também por isso mais horizonte de irradiação e expansão de círculos e focos de luz. Não é à toa que esses seres comunicam por tons, comunicam por sons. Há uma brevidade que os rasga de eternidade. Neles a luz não se afasta: trespassa-os. Dilata-os.
Ela sabe-se no rio, não se sabe o quê no rio. Uma morta esperando no rio, uma alma atravessando de barco o rio, uma alma vestida de branco, dançando nas rápidas posições do rosto branco da vela, uma alma ardendo no nascente e no poente do sol, uma alma que junto à vela reaprende a esvoaçar, a zarpar??... Não sabe. Para os seres a quem Deus parece ter dado o privilégio da pergunta, da escolha e da resposta, Deus também concedeu o dom do silêncio meditante. O gorjear, o canto e o som penetrante são formas de uma linguagem orante que é mais fecunda do que a linguagem [dita] comunicante. Ela olha o Flamingo. Não é só uma ave viajante. Atendendo ao seu poiso, acedendo à sua forma, percebe que o Flamingo é uma ave mendicante: está impedida de matar por ter escolhido salvar. Relembra, ao olhá-la com atenção amorosa, Heiner Muller, é preciso salvar do esquecimento um morto. E uma pergunta nasce e fica no silêncio com que o divino a atravessa, a absorve do mundo: onde se encontram os poetas?
Neste rio. Ouve-lhes os versos. Rumorejam como pássaros, como correntes. A atenção é o mais poderoso mecanismo de apreensão involuntária do mundo imperceptível aos sentidos. É a esse mundo que o Flamingo pertence. Também os escuta. Nota-se no andar, na forma como toca no bico para escutar a voz, as vozes. Na lentidão do andar, dentro da corrente que é torrente.
O Flamingo leu todos os poetas? Como faz o Flamingo a quem Deus leu os poemas em voz alta? Como faz o que ora, medita e salva recolhendo no seu corpo-urna, no seu corpo-arca, os que não podem ser esquecidos?
O Flamingo entoa um som, um canto e ela percebe que tudo na paisagem se anima. Do inanimado ao animado tudo ganha alento: as areias movem-se, as lamas deslizam, as urzes avivam-se, o vento afina os instrumentos da sua orquestra. Ave meditante e ave mendicante, ave sagrada que nas margens do rio se ajoelha para receber aquele que lhe chega de rosto branco e frio, de lábios fechados, de lábios lacrados, ave que sabe o caminho, o regresso. Ave álgica, nostálgica.
O que faz o Flamingo que escuta a leitura poética e é interpelado, fala e responde a Deus? O Flamingo escuta e medita. Mas o Flamingo que escuta a poesia não é apenas um perscrutador. É um mediador: aquele que escuta a poesia transporta no seu corpo os mortos, os deuses, os imortais. O Flamingo não é uma ave qualquer. Esta ave viajante alberga no seu corpo-urna, no seu corpo-pira, no seu corpo-útero os mortos que ainda vão a tempo de não haver nascido. Porque aquele que os ouve, de alguma forma, os transporta à origem e ao sem destino. Ao indireccionado. Mas ela indaga com o olhar: como faz o que medita e salva no seu corpo-arca, os que não podem ser esquecidos?
Olha ainda para trás para sentir o vazio de Deus a acompanhá-lo. Não sabe chamar por Deus. Só sabe vê-lo no invisível. Hesitante olha para os rastros. No céu há nuvens que ele vê escondidas no azul-branco. Sabe-as sílabas do céu. Ditongos plangentes nos efeitos cromáticos das cores, nos destinos ascendentes do olhar. Nas margens há caixas de arbustos, caixas que guardam música dos outros pássaros, sinais perdidos de uma linguagem panteísta, uma linguagem transcende. Nas margens há rumos, nas margens há rumores. Estremecem as pernas do Flamingo. Uma suave música determina a dança com que o Flamingo e o morto atravessam para o outro mundo. Um rumo com um rumor que o corpo reconhece como passagem para as paisagens múltiplas das vidas da alma. O ritmo, o rumo e rumor, descortina o que estava perdido, o que estava esbatido no confim ab-surdus da alma. As pernas do Flamingo balançam porque nas caixas dos arbustos estavam sons que eram dons de uma paisagem antiga.
Nas margens há segredos, nas margens há degredos. O Flamingo liberta, quando passa, o que já está desterrado. Recebe-o porque o Flamingo é uma morada. O Flamingo tem no bico uma flauta encantada de Pã, tem um dom que está na asa e tem outro que está no pé. Escreve para o futuro, escreve para o passado: escreve arqueologicamente, escreve premonitoriamente. Inspira e recorda.
Ela contempla o Flamingo como uma Ideia que a visita. Vê-o, ao Flamingo, como uma assombração que é aclaração. Vê o que este peixe-ave traz coberto com um fino linho sobre o corpo. Vê o que vem deitado no alto das pernas-colunas de Simeão. O Flamingo transporta, no rio da Memória, um morto. Alguém que já está frio e adormecido para o mundo. É esse que o Flamingo, no seu corpo de linho gaze, embala em penas brancas de silêncio e calor. E o morto segue, como o poema, imperturbável no alto dos seus pés descalços como os dos monges do deserto, no cimo das colunas de antanho. O Flamingo caminha devagar para não acordar o morto e só oferece, com desmedido cuidado, o lugar acima da Terra, o outro lugar para além do mundo que se merece e onde não se é esquecido. O seu corpo, urna, pira, altar, tem a majestade apoteótica com que no seu andar dançante o reconduz ao Uno, ao Absoluto que a alma filosófica ou compassiva conseguiu pelo abdicar, pelo renunciar, pelo silenciar na fuga e na passagem dos sinais e dos poemas. Ao caminhar, o Flamingo empresta-lhe o ritmo da vida. A nudez do morto é a sua sempre vida, a sua sobrevida. O Flamingo transporta-o ouvindo, relembrando, a sagrada poesia. Rilke e Muller nas paisagens-pautas. A este coro trágico juntam-se as vozes, as gargantas-gárgulas abandonadas nas margens. Junta-se ela. Cantora miserável dos sons difíceis. E o morto, aconchegado no corpo-túmulo do Flamingo toca na sua flauta mágica os sons do Passarinheiro, toca na sua linguagem sem Língua a fala contínua da Mãe. Os que como ela aguardam na margem, sentem que não há morte, mas uma ininterrupta vida que passa pelos sons e pelos dons. Todos sabem o refrão. A ópera ecoa e Eco não destoa. A paisagem é a aura de uma pátria. De uma paisagem poisagem. O Flamingo alado é no mundo um dos vestígios de Deus. Ela lembra-se das Histórias do Bom Deus de Rilke. O Flamingo é a mão direita de Deus. Aquela que só recria. Essa anamnese permanente, em fluxo, vem com a música, vem com a serenidade interior do mensageiro e do passageiro. Os dois estão mortos e os dois estão vivos. Ela é o Flamingo: no seu corpo moram mortos que são vivos. A tragédia do morto que foi retirado do mundo e passa, entre cânticos e lírica, de um reino resplandecente para outro mais dourado, sente-a ela. E as vozes que se ouvem não são vozes: são murmúrios, alusões, irradiações de almas entusiasmadas pela possibilidade de regresso. Quando a asa abre ela vê a mão da mãe que acena e se derrama.
O Flamingo órfico, de asas e pernas longas, conduz o cortejo com benevolência, com envolvência. Como consegue o Flamingo o que Orfeu perdeu? O Flamingo é possuído pela mania da luz não da contraluz. Extasiado e cansado, este ser da água e do ar, conduz o morto ao seu elemento, aos seus elementos saudosos. O Flamingo é o anjo da reminiscência. E esta paisagem não é senão uma poisagem: uma pintura esbatida no interior das nossas asas dobradas. Esta noite, conduzida pelo Flamingo, ela transmigrará do Jardim das Delícias para os frescos de Pompeia. Morrer é aproximar-se do perdido. Porque todos os seres são etimologias para as profundezas da alma. Passagens para o eterno que se esconde no efémero. Se ela olhar mais atentamente o Flamingo, o canto tornar-se-á pranto. Porque é nas lágrimas que os poemas chegam mais depressa aos rios. E a vida nos emudece como peregrinos.
Para a G. que junto ao rio passa como um Flamingo e me empresta a asa e a pena suave com que lhe escrevo sobre as paisagens da alma. Por ela ser uma paisagem, uma poisagem para as almas que são pranto mais do que espanto. Por ela ter pedido, no diálogo com os deuses, ou com Deus, o mesmo que o Flamingo e nos amar e fazer recordar.
Uma paisagem é uma poisagem. Para o Flamingo e para ela. O Flamingo é uma ave viajante de onde? Antes de enviar o Flamingo, no seu caminho pelo rio, Deus fez-se ouvir a ler alto os poemas de Rilke e o Flamingo aprendeu a voz dos mortos. Depois da audição dos versos e da iniciação órfica à poesia como redenção ou absolução dos que ainda continuam vivos, Deus perguntou ao Flamingo que queria ele ser(?).
Olhando ainda para trás para perscrutar o vazio de Deus a acompanhá-lo, o Flamingo respondeu: quero que o meu corpo seja uma pira, uma arca, uma urna clara para os mortos que chegarem a este rio. Não uma arca dos que perderam a vida, mas daqueles que transbordam sobrevida.
Aceitando que a poesia é uma forma de educar e salvar, Deus concedeu ao Flamingo, nesse instante de breve diálogo depois da lírica audição, um corpo conforme ao pedido. Um corpo vestido de linho alvo, de linho luz para receber os passageiros puros. Poisados na paisagem, ela e o Flamingo, ficam para se reconhecerem. Ela no barco, ele no urzal. Ela espera-o, mas há outros à volta que o aguardam com mais silêncio, com mais clamor. Com mais preparação, com mais ardor. Pressentir que o Flamingo é uma ave que ouve Deus, fá-la concluir que na sua vida as paisagens são assombrosas aparições. E pensa: [talvez] para o Flamingo Deus seja audível, mas para si, Deus e os divinos são inesperadas presenças. Epifânicas companhias no esplendor mais radiante do seu estado de emudecimento, no seu estado de silenciamento encantado e cadenciado. E ouve a proximidade de Deus que estala como madeira seca num fogo que vem do Sol, que vem no vento, que é enamoramento e está na cor e no deslumbramento da percepção, na súbita experiência da excelência da visão. E sabe, ela sabe, que Deus caminha no sentido oposto ao do mundo. O mundo comunica. O divino descomunica. E por isso, nesse silêncio em que é estranha ao mundo, ela sente que Deus se aproxima dos que dizem sem mediação, sem necessidade de remediação. Deus aproxima-se dos que têm uma linguagem imediata: os que são naturais, os que são fins, os que são afins. Nesses, pensa ela, nos quais a linguagem é imediata há mais profundidade gerada pelo silêncio e também por isso mais horizonte de irradiação e expansão de círculos e focos de luz. Não é à toa que esses seres comunicam por tons, comunicam por sons. Há uma brevidade que os rasga de eternidade. Neles a luz não se afasta: trespassa-os. Dilata-os.
Ela sabe-se no rio, não se sabe o quê no rio. Uma morta esperando no rio, uma alma atravessando de barco o rio, uma alma vestida de branco, dançando nas rápidas posições do rosto branco da vela, uma alma ardendo no nascente e no poente do sol, uma alma que junto à vela reaprende a esvoaçar, a zarpar??... Não sabe. Para os seres a quem Deus parece ter dado o privilégio da pergunta, da escolha e da resposta, Deus também concedeu o dom do silêncio meditante. O gorjear, o canto e o som penetrante são formas de uma linguagem orante que é mais fecunda do que a linguagem [dita] comunicante. Ela olha o Flamingo. Não é só uma ave viajante. Atendendo ao seu poiso, acedendo à sua forma, percebe que o Flamingo é uma ave mendicante: está impedida de matar por ter escolhido salvar. Relembra, ao olhá-la com atenção amorosa, Heiner Muller, é preciso salvar do esquecimento um morto. E uma pergunta nasce e fica no silêncio com que o divino a atravessa, a absorve do mundo: onde se encontram os poetas?
Neste rio. Ouve-lhes os versos. Rumorejam como pássaros, como correntes. A atenção é o mais poderoso mecanismo de apreensão involuntária do mundo imperceptível aos sentidos. É a esse mundo que o Flamingo pertence. Também os escuta. Nota-se no andar, na forma como toca no bico para escutar a voz, as vozes. Na lentidão do andar, dentro da corrente que é torrente.
O Flamingo leu todos os poetas? Como faz o Flamingo a quem Deus leu os poemas em voz alta? Como faz o que ora, medita e salva recolhendo no seu corpo-urna, no seu corpo-arca, os que não podem ser esquecidos?
O Flamingo entoa um som, um canto e ela percebe que tudo na paisagem se anima. Do inanimado ao animado tudo ganha alento: as areias movem-se, as lamas deslizam, as urzes avivam-se, o vento afina os instrumentos da sua orquestra. Ave meditante e ave mendicante, ave sagrada que nas margens do rio se ajoelha para receber aquele que lhe chega de rosto branco e frio, de lábios fechados, de lábios lacrados, ave que sabe o caminho, o regresso. Ave álgica, nostálgica.
O que faz o Flamingo que escuta a leitura poética e é interpelado, fala e responde a Deus? O Flamingo escuta e medita. Mas o Flamingo que escuta a poesia não é apenas um perscrutador. É um mediador: aquele que escuta a poesia transporta no seu corpo os mortos, os deuses, os imortais. O Flamingo não é uma ave qualquer. Esta ave viajante alberga no seu corpo-urna, no seu corpo-pira, no seu corpo-útero os mortos que ainda vão a tempo de não haver nascido. Porque aquele que os ouve, de alguma forma, os transporta à origem e ao sem destino. Ao indireccionado. Mas ela indaga com o olhar: como faz o que medita e salva no seu corpo-arca, os que não podem ser esquecidos?
Olha ainda para trás para sentir o vazio de Deus a acompanhá-lo. Não sabe chamar por Deus. Só sabe vê-lo no invisível. Hesitante olha para os rastros. No céu há nuvens que ele vê escondidas no azul-branco. Sabe-as sílabas do céu. Ditongos plangentes nos efeitos cromáticos das cores, nos destinos ascendentes do olhar. Nas margens há caixas de arbustos, caixas que guardam música dos outros pássaros, sinais perdidos de uma linguagem panteísta, uma linguagem transcende. Nas margens há rumos, nas margens há rumores. Estremecem as pernas do Flamingo. Uma suave música determina a dança com que o Flamingo e o morto atravessam para o outro mundo. Um rumo com um rumor que o corpo reconhece como passagem para as paisagens múltiplas das vidas da alma. O ritmo, o rumo e rumor, descortina o que estava perdido, o que estava esbatido no confim ab-surdus da alma. As pernas do Flamingo balançam porque nas caixas dos arbustos estavam sons que eram dons de uma paisagem antiga.
Nas margens há segredos, nas margens há degredos. O Flamingo liberta, quando passa, o que já está desterrado. Recebe-o porque o Flamingo é uma morada. O Flamingo tem no bico uma flauta encantada de Pã, tem um dom que está na asa e tem outro que está no pé. Escreve para o futuro, escreve para o passado: escreve arqueologicamente, escreve premonitoriamente. Inspira e recorda.
Ela contempla o Flamingo como uma Ideia que a visita. Vê-o, ao Flamingo, como uma assombração que é aclaração. Vê o que este peixe-ave traz coberto com um fino linho sobre o corpo. Vê o que vem deitado no alto das pernas-colunas de Simeão. O Flamingo transporta, no rio da Memória, um morto. Alguém que já está frio e adormecido para o mundo. É esse que o Flamingo, no seu corpo de linho gaze, embala em penas brancas de silêncio e calor. E o morto segue, como o poema, imperturbável no alto dos seus pés descalços como os dos monges do deserto, no cimo das colunas de antanho. O Flamingo caminha devagar para não acordar o morto e só oferece, com desmedido cuidado, o lugar acima da Terra, o outro lugar para além do mundo que se merece e onde não se é esquecido. O seu corpo, urna, pira, altar, tem a majestade apoteótica com que no seu andar dançante o reconduz ao Uno, ao Absoluto que a alma filosófica ou compassiva conseguiu pelo abdicar, pelo renunciar, pelo silenciar na fuga e na passagem dos sinais e dos poemas. Ao caminhar, o Flamingo empresta-lhe o ritmo da vida. A nudez do morto é a sua sempre vida, a sua sobrevida. O Flamingo transporta-o ouvindo, relembrando, a sagrada poesia. Rilke e Muller nas paisagens-pautas. A este coro trágico juntam-se as vozes, as gargantas-gárgulas abandonadas nas margens. Junta-se ela. Cantora miserável dos sons difíceis. E o morto, aconchegado no corpo-túmulo do Flamingo toca na sua flauta mágica os sons do Passarinheiro, toca na sua linguagem sem Língua a fala contínua da Mãe. Os que como ela aguardam na margem, sentem que não há morte, mas uma ininterrupta vida que passa pelos sons e pelos dons. Todos sabem o refrão. A ópera ecoa e Eco não destoa. A paisagem é a aura de uma pátria. De uma paisagem poisagem. O Flamingo alado é no mundo um dos vestígios de Deus. Ela lembra-se das Histórias do Bom Deus de Rilke. O Flamingo é a mão direita de Deus. Aquela que só recria. Essa anamnese permanente, em fluxo, vem com a música, vem com a serenidade interior do mensageiro e do passageiro. Os dois estão mortos e os dois estão vivos. Ela é o Flamingo: no seu corpo moram mortos que são vivos. A tragédia do morto que foi retirado do mundo e passa, entre cânticos e lírica, de um reino resplandecente para outro mais dourado, sente-a ela. E as vozes que se ouvem não são vozes: são murmúrios, alusões, irradiações de almas entusiasmadas pela possibilidade de regresso. Quando a asa abre ela vê a mão da mãe que acena e se derrama.
O Flamingo órfico, de asas e pernas longas, conduz o cortejo com benevolência, com envolvência. Como consegue o Flamingo o que Orfeu perdeu? O Flamingo é possuído pela mania da luz não da contraluz. Extasiado e cansado, este ser da água e do ar, conduz o morto ao seu elemento, aos seus elementos saudosos. O Flamingo é o anjo da reminiscência. E esta paisagem não é senão uma poisagem: uma pintura esbatida no interior das nossas asas dobradas. Esta noite, conduzida pelo Flamingo, ela transmigrará do Jardim das Delícias para os frescos de Pompeia. Morrer é aproximar-se do perdido. Porque todos os seres são etimologias para as profundezas da alma. Passagens para o eterno que se esconde no efémero. Se ela olhar mais atentamente o Flamingo, o canto tornar-se-á pranto. Porque é nas lágrimas que os poemas chegam mais depressa aos rios. E a vida nos emudece como peregrinos.
Para a G. que junto ao rio passa como um Flamingo e me empresta a asa e a pena suave com que lhe escrevo sobre as paisagens da alma. Por ela ser uma paisagem, uma poisagem para as almas que são pranto mais do que espanto. Por ela ter pedido, no diálogo com os deuses, ou com Deus, o mesmo que o Flamingo e nos amar e fazer recordar.
Descomunica comunicando... como o faz o nosso corpo... e no amor.
ResponderEliminarÉ a fronteira que une, é a oposição que junta... criando a vida.
ResponderEliminarA sequência do mundo não é feita à toa. A gestação parece longa, mas bem mais longo será o fruto da criação.
ResponderEliminarIsabel,
ResponderEliminarJá estive nesse rio. Escutei-o. Não precisei de encostar o ouvido à "pira dos mortos" do seu corpo e da sua alma orante. Estive na arca branca... com um lenço de seda branca, acenei aos mortos transbordantes de luz. O futuro trouxe-me até aqui para morar ou poisar, na "poisagem" da sua sinfonia. Afundo-me nela e ardo em luz branca no fundo das águas, onde está a rosa de espinhos roubada pela Serpente que está para além de Deus, e é Deus para além.
Uma borboleta brança trouxe a voz de Sophia e as águas foram oceano e cantaram e contaram as histórias de a.mar em tom maior... E a sua escrita é pluma de flamingo,leve como uma carícia, suave como uma memória que faz o flamingo chorar e cantar.
E se me perguntassem o que queria ser. Eu queria ser, talvez, a saudade de mim a lê-la a si.
Flamingo vem de flama?... pequena chama? ;)
ResponderEliminarOnde é que o Mário apanhou este flamingo? Foi no Alentejo?
ResponderEliminarCurioso
ResponderEliminarnem vou ter que perguntar ao Mário. Mas posso já dizer: não foi no Alentejo. Este não foi aí. Foi num não-lugar.
Anita
não vem de flama. Mas inflama. Este flamingo inflama e é lindo. Foi o meu sobrinho e eu que o encontrámos ou ele nos encontrou aos dois. A ti também. Assim o espero. Um sorriso para ti. E este levou-nos até ao Mar Portuguez (como também gostas de escrever) como gostas e lá ficámos a falar e dizer com o coração Pessoa.
Saudades
Somos poisadas nesse rio. E conhecemos os que voam. Eles vêm ter sempre connosco e são eles que nos lêem às duas. Uma voz como a sua é que me embalaria. Hoje vi a borboleta branca. Falei com ela e disse leva-me ao quarto azul da Saudades e lá bordaremos os poemas em almofadas de linho para elas cantarem de noite.
Um sorriso imenso por tão belo texto.
ResponderEliminarSou silenciosa... Não tenho voz, não tenho palavras, transporto-as apenas porque sou mensageira, porque sou ponte ... e, hoje, só trago um Abraço para ti, Isabel. Recebe-o com todo o meu carinho.
ResponderEliminarencantado com a beleza deste texto. ela habita esse não-lugar do flamingo.
ResponderEliminarse rilke pudesse comentar o texto o que diria?
G.
ResponderEliminare recebo esse abraço promanado da Graça e envolvo-te nos meus braços cintas de luz. Quero dizer Cindas de luz. E depois repouso. Poisagem no alto de tão compassivo ser.
Anónimo
eu não sei o que Rilke diria. Mas que pensa que ele diria? O desafio da sua extraordinária pergunta pode ser lançado aos dois. A sério vou pensar nele, mas gostava que pensasse nele também. Na pergunta há sempre uma janela de que se já vê alguma coisa. Fico à espera. Obrigada pelas palavras e pela pergunta.
:)
ResponderEliminareu vou esperar que a Isabel comente, parece-me que conhece muito bem rilke. voltarei aqui mais vezes
ResponderEliminarAnónimo
ResponderEliminardemoro, às vezes, a responder. Mas tentarei escutar Rilke para falar consigo. Para falarmos os três. Rilke fala com os anónimos. Eu também.
Vamos ver se não o decepciono. Obrigada por me ter lido.
volto para ler os sons que a Isabel escutar de rilke e para agradecer.
ResponderEliminarMas os sons demoram...
ResponderEliminarA Saudade e a Distância...
E o medo. O medo.
:)