sábado, 23 de agosto de 2008

Toda a realidade é um excesso...

Este poema consome-me toda a alma... - e tudo nasce e existe do excessivo amor.

"Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora,
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.

Cada alma é uma escada para Deus,
Cada alma é um corredor-Universo para Deus,
Cada alma é um rio correndo por margens de Extremo
Para Deus e em Deus com um sussuro soturno.

Sursum corda*! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito,
Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos
Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho
E funde em Noite o Mistério o Universo Excessivo!
Sursum corda! Na noite acordo, o silêncio é grande,
As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam
Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos
Que as vê como vagos vultos nocturnos na noite negra.
Sursum corda! Acordo na noite e sinto-me diverso.
Todo o Mundo com a sua forma visível do costume,
Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,
Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.

Sursum corda! Ó Terra, jardim suspenso, berço
Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva!
Mãe verde e florida todos os anos recente,
Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal,
Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adónis
Num rito anterior a todas as significações,
Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales!
Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões,
Grande voz acordando em cataratas e mares,
Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança,
Em cio de vegetação e florescência rompendo
Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso
À tua própria vontade transtornadora e eterna!
Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados,
Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones,
Mãe caprichosa que faz vegetar e secar,
Que perturba as próprias estações e confunde
Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!

Sursum corda! Reparo para ti e todo eu sou um hino!
Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica íntima
Volteia serpenteando ficando com um anel
Nevoento, de sensações reminiscidas e vagas,
Em torno ao teu vulto interno túrgido e ferveroso.

Ocupa toda a tua força e de todo o teu poder quente
Meu coração a ti aberto!
Como uma espada trespassando meu ser erguido e extático,
Intersecciona com o meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,
Teu movimento contínuo, contíguo a ti-própria sempre.

Sou um monte confuso de forças cheias de infinito
Tendendo em todas as direcções para todos os lados do espaço,
A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une
E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim
Não passem de mim, não quebrem meu ser, não partam meu corpo,
Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira
Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,
Para além de sóis de outros sistemas e dos astros remotos.

Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo.
Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,
No vasto chão supremo que não estão em cima nem em baixo
Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos
Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.

Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima,
Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo
De chamas explosivas buscando Deus e queimando
A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,
A minha inteligência limitadora e gelada.

Sou uma grande máquina movida por grande correias
De que só vejo a parte que pega nos meus tambores,
O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis,
E nunca parece chegar ao tambor donde parte...

Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito
Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si,
Cruzando-se em todas as direcções com outros volantes,
Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço
Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus.

Dentro de mim estão presos e atados ao chão
Todos os movimentos que compõem o universo,
A fúria minuciosa e... dos átomos
A fúria de todas as chamas, as raivas de todos os ventos,
A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam,
E a chuva como pedras atiradas de catapultas
De enormes exércitos de anões escondidos no céu.

Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio
De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.

Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos
Sobrevive-me em minha vida em todas as direcções!"
Álvaro de Campos

|*significa em latim "corações ao alto".|

7 comentários:

  1. Parece ridículo colocar, é da novela "Pedra sobre Pedra" da minha infância, mas não nega à partida o que...

    Pedras Que Cantam
    "Quem é rico mora na praia
    mas quem trabalha nem tem onde morar
    Quem não chora dorme com fome
    mas quem tem nome joga prata no ar

    Ô tempo duro no ambiente,
    ô tempo escuro na memória,
    o tempo é quente
    E o dragão é voraz....

    Vamos embora de repente,
    vamos embora sem demora,
    vamos pra frente
    que pra trás não dá mais

    Pra ser feliz num lugar
    pra sorrir e cantar
    tanta coisa a gente inventa,

    mas no dia que a poesia se arrebenta
    É que as pedras vão cantar"
    Fagner

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  2. Em maré de canções e rosas, esta música acompanha-me desde pequena...

    Rosa-dos-Ventos
    Chico Buarque

    "E do amor gritou-se o escândalo
    Do medo criou-se o trágico
    No rosto pintou-se o pálido
    E não rolou uma lágrima
    Nem uma lástima para socorrer
    E na gente deu o hábito
    De caminhar pelas trevas
    De murmurar entre as pregas
    De tirar leite das pedras
    De ver o tempo correr
    Mas sob o sono dos séculos
    Amanheceu o espetáculo
    Como uma chuva de pétalas
    Como se o céu vendo as penas
    Morresse de pena
    E chovesse o perdão
    E a prudência dos sábios
    Nem ousou conter nos lábios
    O sorriso e a paixão

    Pois transbordando de flores
    A calma dos lagos zangou-se
    A rosa-dos-ventos danou-se
    O leito do rio fartou-se
    E inundou de água doce
    A amargura do mar
    Numa enchente amazônica
    Numa explosão atlântica
    E a multidão vendo em pânico
    E a multidão vendo atônita
    Ainda que tarde
    O seu despertar"

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  3. Aliás, eu queria era dizer outra - mas essa também era... A que eu queria era...

    Chico Buarque, Sonho Impossível

    "Sonhar mais um sonho impossível
    Lutar quando é fácil ceder
    Vencer o inimigo invencível
    Negar quando a regra é vender
    Sofrer a tortura implacável
    Romper a incabível prisão
    Voar num limite provável
    Tocar o inacessível chão
    É minha lei, é minha questão
    Virar este mundo, cravar este chão
    Não me importa saber
    Se é terrível demais
    Quantas guerras terei que vencer
    Por um pouco de paz
    E amanhã este chão que eu deixei
    Por meu leito e perdão
    Por saber que valeu
    Delirar e morrer de paixão
    E assim, seja lá como for
    Vai ter fim a infinita aflição
    E o mundo vai ver uma flor
    Brotar do impossível chão"

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  4. Esta é a ANITA! That's my girl!

    Só alberga boa poesia e boa música quem tem um coração com muitas pontas. Não preciso de contar segredo nenhum. Tu vais chegar lá.


    Recebe o meu agradecimento pela beleza que hoje aqui derramaste.

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  5. Ó mas eu gosto tanto que me contem segredos...

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