segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Fim do Ano, Ano Novo

Todos se preparam para celebrar o ficar tudo na mesma. Quem será a cada instante meia-noite e, num espanto de badaladas e saúdes suspensas, num roçagar de sedas pela atenção, lento e súbito strip-tease da banalidade de haver mundo ?
Por abrir
por parir
por chegar
a partir
pedaço a pedaço
asa a asa
taça da última ambição
a boiar
o cheio do nada
sem chão
sem céu
só mar
amplexo que se transborda
sem si
sem outros
só vertigem
o impossível
de braços abertos
a banhar-se de sol
quando de manhã há manhã
e mais nada

domingo, 30 de dezembro de 2007

Sede

Se a tua sede é maior que tudo, com ela te saciarás. Pois que é em ti a sede senão a Fonte que ainda se não sabe ?

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Agora o bicho está praticamente morto. Creio que vai mesmo morrer. Enquanto isto, a rapariga cai redonda no chão cansada de correr numa fuga além dos seus limites; o jovem entra num pânico surdo ao perder o curso do caminho na floresta enquanto a noite se instala; o rapaz com a alma cheia de infinito tem por fim um orgasmo com a mulher que julgava amar, vira-se para o outro lado e adormece interrogando-se se verdadeiramente a ama; a outra rapariga, que esperava o amado com olhar expectante através da janela, recebe a notícia de que morrera e nunca mais o poderá ver chegar; enquanto que a outra diz convictamente odiar aquele que ama e ele diz amá-la com a mentira nos olhos, deixando-a revolta em lágrimas que escorrem fáceis pelo rosto, enquanto que uma outra rapariga, em que a inteligência e a estupidez se confundem, distante no espaço e no mesmo momento de todos os outros, troca o aconchego do lar para se lançar às feras sem grande preparação mas com uma estranha coragem que é de algum modo um suicídio. Em simultâneo, aquela mulher madura de olhar sereno e tão fundo como a vastidão do mar que tem diante de si, liberta-se das vestes, solta os longos cabelos e deixa-se desaparecer como coisa singular por entre o mar infinito. Agora que todas as vozes se calaram e todas as mãos se abriram deixando cair o que avidamente seguravam, fica o "eterno murmúrio das ondas" que se elevam numa ambição de serem únicas acabando rendidas como metáfora da inesgotável ilusão de existir.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Balada do depois

Nem sim
nem não
apenas a alvura espessa
da escuridão
que as almas em espirais
de fumo e ilusão
adormenta
a visão suja
e pardacenta
de ter a vida
como coisa emprestada
a boiar sem as estrelas
ou o bolinar do sol
por entre a mordência dos dias
só a antevisão da roupa suja
depois das horas gretadas
de insatisfação
e do retorno das manhãs iguais
com chuva ou sem chuva
com nevoeiro ou sem nevoeiro
com solidão ou sem solidão
quando o mar de ser homem
está chão
e os ventos do Sul
já não são chamamentos
para a perdição
de não ter amarras
valerá a pena
dizer sim ou não?
Ao Paulo Borges


Segredam mistérios
Eternamente
Renascidos num
Porto sagrado de espirais.
Estrelas de amor cristalinas
Navegam no Nada e aí
Tecem sua luz altíssima,
Esplendor vivo que cintila.

Em rosas líquidas,
Marés serpentinas,
Pérolas de espuma,
Lemes silenciosos e
Utopias radiosas,
Mergulha um doce Silêncio
Avivado pelo Sonho em chama,
Desejoso de avistar no Instante
A Eterna Sabedoria Infinita.


Pluma Alada

Elogio ao que é incomensurável no amigo e no mestre

Abro a página do blog. Atordoo-me com a veemência das palavras, com a sua declaração sobre o tempo, sobre os tempos do seu autor: o seu passado e o seu futuro, o seu sem tempo porque caminhante no horizonte do eterno e viajante expectante do mundo órfico por onde passou, pois que sabe escrever poemas cheios daquela beleza que dói e põe as lágrimas a bailar nas palavras e as torna líquidas como se elas regressassem ao rio da memória e à voz daqueles que as proferiram na origem. Apetece abrir os braços e gritar, gritar “que lindo é o poema!” “Que liiiiindo….!”E, depois fechar a sua beleza na alma e suportar com ele, o poema, o desamor pela vida que em certos instantes tolhe a alma, nos fecha as mãos e a permanência afectiva com os outros e com as coisas! Se dizê-lo, gritando, que “é lindo!” bastasse para o elogiar…e o guardar, ou o ter escrito na interioridade das pálpebras fechadas para o lermos no silêncio e no murmúrio do que chega no zénite das coisas múltiplas do acontecer e da vida! Mas não basta! O poema é tão intenso e flamejante que alberga a voz de um profeta e do deserto, o fulgor da luz incendiada do Sol nessas planícies de ninguém, ou consegue a música especial que devem conseguir vales e vales de canas de bambu quando o vento as toca para se escutar com mais instrumentalidade e arte. Este poema é um canto que mal sei ler, muito menos cantar. Porque eu gosto de cantar mas não sei cantar. Aprendo a ler quando o poema vem de uma voz que nunca escutei mas esperei. Mas este poema canta, canta e faz chorar. Este poeta, que tenho o prazer de escutar na voz dos poemas, e na voz em torno dos poemas, quando ensina os versos da dor, do amor, da sombra e do Sol, canta depois de Eurídice, e depois das experiências mágicas de tudo querer ser e poder ser, por se despir das ilusões e dos véus, dos sentidos estratificados nas coisas e nas palavras e, porque gosta das pontes e das passagens, dos versos e dos hinos que drapejam nos movimentos inauditos das bandeiras que se agitam na sua alma. Às vezes, quando o olho e o vejo sereno, o escuto, sim, sobretudo se o escuto, penso que ele deve ser da mesma matéria, da mesma pedra das Cariátides na Acrópole e deve fazer com as mãos aquilo que elas fazem com as pernas: segurar o mundo, a torrente imperante da vida, receber com a mesma aparente serenidade o que é avassalador, o Diónisos que o visita na tremura dos instantes, os estrangeiros, sejam eles humanos, deuses ou astros que recebe e acolhe nas janelas Rilkeanas da sua alma. E o desassossegam com uma flauta, com a sonoridade panteísta que o agita até aos confins do corpo. Por isso canta e dança se o visitante interior, e não o convite externo, o desafia à experiência. E empresta a alma e o corpo ao que é inacessível ao habitual e ao momento. Canta, dança e conspira. É um filho predilecto de Diónisos e recebe-o porque sente compaixão pelo seu sofrimento, porque se compadece pelas diferentes configurações da dor em todos os seres. O deus retribui e abraça-o no anel da vida. Paulo Borges toca mais do que os outros a alma do mundo, está em anelo com ela, e não apenas com a sua, e chama-a com chama quando pensa ou medita, versifica e se diversifica. E brilha, irrompe como essas mulheres na escuridão da nossa alma para relembrar o essencial: só o que estremece deixa ver o que de incomensurável passa por nós. Faz de nós a ponte. O daimon, que nos visita e traz o sem nome agarrado à experiência fecunda do mistério de haver ser e mais do que ser, faz nele morada. O daimon, que o faz ir do material ao inefável, da sombra ao Sol, como Ícaro, chama-o pelos seus dons e ele responde sem medo. E, como elas, permanece em pé, trespassado de memórias como um “pelourinho petrificado” e sorri expandindo-se sobre nós como as cores. Tingindo o sagrado, o inolvidável o silencioso, o imaterial da nossa vida interior e falante. Ele que é de todas as cores e com muitas cores, se calhar porque o índio pele vermelha ainda brinca nele, e ele, nas planícies selvagens aguarda a verdade com a mesma solenidade com que as crianças experimentam a poderosa aquiescência ao que mimam. Ele que é de todos os dons, porque brinca nas línguas de fogo do espírito santo e escreve com as suas mãos, aneladas pela beleza e pelo invisível, na sarça-ardente que faz e desfaz os rostos dos que em torno desse fogo divino contam e recontam as passagens sobre o grande rio da memória e da morte. E, porque se entretém a pensar como se atravessasse com um grito selvagem a grande passagem pela vida e pelos vivos e nos convidasse, a todos, a jogar ao indeterminado e ao sublime que ele persegue nas cores e nos dons. No veludo macio com que cobre o nosso frio do mundo, escrevendo e convidando todos para a sua inspirada conspiração a favor do que está por vir e é porvir. Hoje, vestida pelo pano nobre do que li e ele escreveu, aceitei o papel de escrever tudo como senti sem medo e sem limitação. Hoje não fui Cassandra nem Ofélia, fui Penélope e aventurei-me na leitura dos sinais, dos signos e dos jardins que recebo. Ora, não será também verdade que as rosas dizem sem porquê aos jardineiros eleitos que semeiam ideias pelos montes e montanhas de Zaratrusta e do Peloponeso? As palavras mais belas devem ter cheiro como as rosas, devem guiar os passos daqueles que não temem a neblina e são cavaleiros do quinto império…assistiram espiritualmente ao milagre isabelino do manto das rosas e devem saber o truque e o passe mágico de alimentar a nossa fome com pão e rosas, porque as rosas, como sabia Silesius, são o pão do espírito que promete a passagem para o Paraíso.

Isabel Santiago

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Baudelaire - O Gato II (Les Fleurs du Mal)






LE CHAT


-I


Dans ma cervelle se promène,
Ainsi qu'en son appartement,
Un beau chat, fort, doux et charmant.
Quand il miaule, on l'entend à peine,


Tant son timbre est tendre et discret;
Mais que sa voix s'apaise ou gronde,
Elle est toujours riche et profonde,
C'est là son charme et son secret.


Cette voix, qui perle et qui filtre,
Dans mon fonds le plus ténébreux,
Me remplit comme un vers nombreux
Et me réjouit comme un philtre.


Elle endort les plus cruels maux
Et contient toutes les extases;
Pour dire les plus longues phrases,
Elle n'a pas besoin de mots.


Non, il n'est pas d'archet qui morde
Sur mon coeur, parfait instrument,
Et fasse plus royalement
Chanter sa plus vibrante corde,


Que ta voix, chat mystérieux,
Chat séraphique, chat étrange,
En qui tout est, comme en un ange,
Aussi subtil qu'harmonieux!


-II


De sa fourrure blonde et brune
Sort un parfum si doux, qu'un soir
J'en fus embaumé, pour l'avoir
Caressée une fois, rien qu'une.


C'est l'esprit familier du lieu;
Il juge, il préside, il inspire
Toutes choses dans son empire;
Peut-être est-il fée, est-il dieu?


Quand mes yeux, vers ce chat que j'aime
Tirés comme par un aimant,
Se retournent docilement
Et que je regarde en moi-même,


Je vois avec étonnement
Le feu de ses prunelles pâles,
Clairs fanaux, vivantes opales,
Qui me contemplent fixement.




Charles Baudelaire - O Gato (Le Chat)


Viens, mon beau chat, sur mon coeur amoureux;
Retiens les griffes de ta patte,
Et laisse-moi plonger dans tes beaux yeux,
Mêlés de métal et d'agate.

Lorsque mes doigts caressent à loisir
Ta tête et ton dos élastique,
Et que ma main s'enivre du plaisir
De palper ton corps électrique,

je vois ma femme en esprit. Son regard,
Comme le tien, aimable bête,
Profond et froid, coupe et fend comme un dard,

Et, des pieds jusques à la tête,
Un air subtil, un dangereux parfum,
Nagent autour de son corps brun.

Didier Super - Y'en a des biens

http://www.dailymotion.com/video/xl48r_yen-a-des-bien-didier-super_fun

Les Arabes, c'est comme les lesbiennes et les drogués,
Les romanos, comme les artistes et les putes,
Les handicapés, c'est comme les lèpreux et les noirs,
Les clochards, c'est comme les pédés et certains jeunes,

Y'en a des bien, y'en a des biens, Y'en a des bien, y'en a des biens biens biens,

Les psychiatre bien dans leur têtes, c'est comme le père Noel,
Les vieilles catholiques, c'est comme celles qui avortent,
Celles qui auraient dû le faire, c'est comme la mère Bush,
Le pape et ses copains, c'est comme certaines marques de capotes,

Y'en a des biens, allez, y'en a des biens, on chante !
Y'en a des biens, y'en a des biens biens biens

Les homosexuels refoulés, c'est comme les militaires,
Les alcooliques et les dépressifs, comme les policiers,
Les gros chefs d'entreprise, c'est comme les mecs qui vont aux putes,
Les gais curés intégristes, c'est comme les pédophiles,

Y'en a des biens, y'en a des biens, allez,Y'en a des biens, y'en a des biens biens biens,

Mais quand même, desfois, y'en a y font chier...

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Ó tu, sublime puta encanecida

Ó tu, sublime puta encanecida,
que me negas favores dispensados
em rubros tempos, quando nossa vida
eram vagina e fálus entrançados,
agora que estás velha e teus pecados
no rosto se revelam, de saída,
agora te recolhes aos selados
desertos da virtude carcomida.

E eu queria tão pouco desses peitos,
da garupa e da bunda que sorria
em alva aparição no canto escuro.
Queria teus encantos já desfeitos
re-sentir ao império do mais puro
tesão, e da mais breve fantasia.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 22 de dezembro de 2007

A Noiva

Primeiro momento


Manhã de Agosto, dia claro, ao som do Hino Nupcial de Mahler surge a noiva no interior da catedral gótica de imponentes ogivas em que o som e as formas se exaltam, se elevam, como quem põe o pé na outra margem da vida. Já tudo mudou na superfície do mundo, mas a noiva continua a ir de branco, fina e trémula, espantosamente feminina. Perseguirá talvez o mesmo sonho secular das mulheres. Irá colocar-se ao lado do noivo menos voluptuoso cujo alinhamento recto lhe servirá de fundo para lhe aumentar ainda mais a sinuosidade e a graça e a olhará com um sorriso e um brilho nos olhos, como se voltasse a sentir aquele momento único de ímpar qualidade em que o mundo fragmentado e dual se desfez num beijo fundo. Foi aquele momento o impulso para esta cena. Talvez agora o selvagem se tivesse tornado mais domesticável, capaz de se adaptar à ordem do mundo e porque assim deve ser, só deste modo será aprovado por Deus e pelos homens. Aproxima-se pé ante pé com os sapatos mais altos do que é habitual, apertados porque eram novos, desconfortáveis porque assim são todas as coisas das mulheres que por vezes parece que nasceram para andar encarceradas em formas, com vocação para o sacrifício, porque se não for assim serão mais pessoa e menos mulher, menos flor, menos brisa, menos “ornamento do mundo”, menos objecto de desejo ou sei lá o quê. Cada passo aproximava-a do “sim” - “sim, estou certa”, “sim, é ele que amo”, “ sim, até que a morte nos separe”,” na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até aos últimos dias da nossa vida...” - , da jura de lealdade e exclusividade. Mesmo que o fogo se extinga terá que permanecer a armadura da lealdade, a dignidade da palavra, porque o casamento é a expressão da consistência do amor, a objectividade visível do mesmo. Mas nos seus olhos pulsava uma secreta vocação para o excesso, a atracção para o erro que desconcerta a tradição e perturba a ordem dos conceitos pré-estabelecidos da sociedade, sempre ameaçados por uma corrente de intensa vida, livre e imprevista, que se evade dos mesmos e anseia pelos limites, os deliciosos venenos que quase sempre envenenam e raras vezes curam.
Foi no momento do voto, quando tinha que dizer o “sim”, que a sua mão se desprende da dele, deixando cair a aliança de ouro que ressoou no chão de granito da catedral e, parecendo ter asas, virou costas a toda uma assembleia que ficara atónita, por momentos muda e gelada num colapso provocado por um corte súbito de uma corrente feita de matéria emocional, de princípios morais e ideais sólidos. Numa corrida voltou a sair por onde entrara na direcção daquela luz solar que contornava a enorme porta entreaberta da catedral. Viu-se deslizar por estradas num carro, depois com cabelos ao vento num barco, até se encontrar com o homem cuja imagem interior que dele transportava lhe dera a coragem de tamanha ousadia. Estava sentado no chão contemplando o horizonte aberto de um fim de tarde cuja luminosidade, prestes a esvair-se, reflectida no olhar, lhe acentuava a força da alma, a vida concentrada que os olhos deixavam transparecer. Um estilo meio informal, em equilíbrio consigo mesmo, mas em desequilíbrio com o mundo, mais as suas ideias de compostura - cabelos longos desalinhados. Ela aproximou-se, ambos se olharam no fundo dos olhos e sentiram o turbilhão de vida, um alvoroço, uma espécie de felicidade intensa como se estivessem a tocar trémulos o âmago de todas as coisas. Sentiam-se invadidos por uma força e uma fragilidade, uma solidez e um desabamento, uma timidez e uma ousadia interceptada por uma ameaça de morte misturada com uma incomensurável plenitude. As suas bocas tocaram-se num ímpeto louco como o primeiro momento de um envolvimento crescente e toda aquela manifestação física de lábios unidos, línguas que se envolviam e misturavam, imprimia uma crescente força ao corpo e uma capacidade heróica à alma. Ele trazia uma camisa de aspecto meio gasto que ela suavemente, a disfarçar a intensidade selvagem e pouco suave que lhe corria no sangue, foi abrindo de forma a sentir o seu tronco masculino e quente. As suas mãos, como água que penetra em todos os recantos e frestas, como labaredas de fogo crepitante, deslizavam no sentido descendente até perceberem a sua enorme pujança, a sua dureza essencial, o que lhe acentuava o fervor e a deixava possuída por um clima desconcertante. Força primeira de toda a existência que lhe dava uma ânsia de aprofundar mais a experiência. Deixava-se ir naquele fervor com uma tremenda concentração que a fazia esquecer o passado ou a ideia de futuro. O seu corpo emitia fluidos quentes que as mãos dele também percebiam. Naquele momento ambos coincidiam. Desejavam o mesmo, estavam plenamente ali, naquele momento único que decerto gostariam que não tivesse fim, embora para ele se precipitassem. Mas, antes de se deixar ir na direcção para onde todos os ventos ferozmente a arrastavam, numa ambição pelo cume da vida, olha-o mais uma vez nos olhos como a comunicar sem palavras toda aquela plenitude que transbordava e lhe desejaria expressar e que estava inscrita no jeito como mordia o lábio inferior direito e mostrava aqueles olhos reluzentes de raça felina como a dizer sem necessidade de palavras as diferentes formas com que gostaria de se expressar. Porém, neste olhar que se pretendia audaz e penetrante, percebe que é o mesmo homem que abandonara no altar, a mesma fisionomia. Ficando por momentos nesta confusão, abre os olhos. A manhã impunha-se pelas frestas da janela semi-fechada em que o chilrear dos pássaros era a introdução do dia claro de Agosto. Acordara no seu quarto de sempre. Sentiu a sua humidade íntima como um vestígio do que não era, ao mesmo tempo que consciencializava que tinha sido um sonho. Era mesmo o dia do seu casamento. O último dia que dormia naquela cama daquela forma tão habitual.

Segundo momento


Levantou-se, estendeu o corpo esbelto, flexível e, dirigindo-se à janela, permite que a luz da manhã invada aquele aposento de traços femininos em tons claros. Dirige-se para um espelho oval, grande, que parecia condizer com a sua cama larga e alta e, assim ainda como que a despertar progressivamente, contempla a sua figura e consciencializa-se daquele dia, o dia do casamento. E ali, num frente a frente com a sua imagem, não pode deixar de perceber a sua postura insegura e quase cobarde num esforço de invocar uma convicção que não possuía. Não havia razão para achar que poderia não dar certo. No fim de contas conhecia-o tão bem, tiveram um namoro de quatro anos, compartilharam imensos momentos felizes. Conhecendo-se nos bancos da Faculdade tinham a mesma idade, juventude, alguns gostos semelhantes. Ele para ela era como um braço ou uma perna. Daquelas coisas que nem pensamos em valorizar em demasia porque nunca nos faltou mas, se as perdêssemos, sentiríamos por certo a falta. A sua presença na sua vida era uma constante. Saia com ele quase todas as noites e quase todas as noites dormia ali naquele quarto da casa da família. Quando não estavam juntos estavam mesmo assim comunicáveis, trocavam mensagens por telemóvel e muitas vezes bastava dar um toque para anunciar que estavam no pensamento. Admirava-lhe a inteligência, o sentido prático e empreendedor e o apoio que lhe brindava nas alturas mais críticas. Apesar disto, não podia escapar à sua própria sombra como uma dualidade que sentia dentro de si, uma posse que ameaçava toda a intenção de ordem e compostura, ameaça devastadora da harmonia e de um conceito de felicidade ideal. Vivia muita vezes a abafar esse grito, esse rasgo terrífico. O melhor seria não pensar demais e entreter-se com as coisas belas e simples da vida. Já Susana, uma das suas melhores amigas, que casara o mês passado, estava tão feliz, nervosa, cintilante! Interrogava-se sobre o motivo que a impedia de estar assim também: certa, convicta, expectante. Algum dia se viu uma noiva, assim jovem, que não estivesse feliz? Algum dia se viu uma jovem nesta situação que não tivesse imensos projectos de construir uma vida a dois, um lar, um refúgio? Fugir do altar?! Abandoná-lo, ele que sempre sonhara com uma família que lhe fora subitamente negada na infância e idealizava o riso e o choro das crianças a correrem pela casa! Borratar de lágrimas os rostos carregados de maquilhagem das senhoras que decerto não perderiam aquela ocasião para exibir o melhor dos seus trajes, os decotes, as lantejoulas, as transparências, os laços. Ofuscar o brilho nos olhos daquela gente toda que continuava a acreditar numa felicidade que nunca vivera, embora tentassem. Traumatizar o seu noivo, ser uma filha non grata. Arrepiava-se só de pensar naquele sonho, na fuga e nas consequências nefastas da mesma. Olhou-se melhor, mudando a posição da cabeça, e ensaiou uma sorriso de noiva. Queria que os seus olhos reluzissem assim como os de Susana. Convencia-se que se assim não era se atribuía ao facto de ter acabado de acordar mas que, com o passar do dia, ficaria mais resplandecente. Tudo melhoraria com a ajuda do rimel, o eyeliner. Ficaria perfeita, expressiva. O seu vestido branco assentava como uma luva e os sapatos, os mesmos do sonho, mais pareciam uma daquelas fantasias ancestrais e inolvidáveis da história da Cinderela. Todos os argumentos positivos estavam porém entrecortados por outras cenas. O que efectivamente estava diante de si era o reflexo da sua imagem espelhada, de onde realçavam os olhos trespassados por lágrimas como uma nuvem que ofusca o sol, ao que não podia ser indiferente. Pensava nos seus pais. Relação duradoira, resistente ao tempo e às tendências da sociedade actual, mas no jeito de se olharem passava aquela subtil indiferença e no trato uma inimizade íntima . Talvez não conseguissem viver mais um sem o outro, mas nada daquilo tinha a ver com fascínio, encantamento. O mesmo parecia passar-se com muitas outras pessoas que conhecera. Por tudo isto teria coragem de dizer “não”, de argumentar perante todos a sua decisão tardia, porém sincera. Subiria ao púlpito e falaria para todos com a força da sua alma que amava vivenciar a elevada inspiração do mundo, a comunhão do júbilo e da tristeza, do frio e do calor, como o crepúsculo dos mais exaltados sentimentos humanos. Que amava toda aquela torrente de vida que advém da existência do outro e do sonho que ele suscita, da sua realidade e irrealidade, e que assim, com aquele projecto, tudo aquilo perderia a graça. Diria mesmo que tudo o que é fascinante e belo jamais poderia ser agarrado tal como os pássaros cuja beleza só é perfeita ao voar livres no céu infinito. Mas agarrar o voo e minimizar o céu... Aproveitaria a ocasião para uma catarse que traria à luz tudo o que pensara e sentira ao longo de todo este tempo, ao ponto de comover até às lágrimas os convidados e fazer de tudo aquilo uma experiência íntima comum. Dir-lhes-ia que não podia ser indiferente ao imenso tédio que transparecia nos seu olhos como um arrefecimento da vida e que, se algum dia cresceram em posses e construções visíveis e sólidas, esse crescimento não estava a ser acompanhado pela força de uma liberdade maior e de uma vida mais autêntica. Sim, preferia viver toda aquela tensão entre a realidade e o sonho, o conhecido e o desconhecido. Teria a coragem para dizer que não se deixaria transformar em esposa como alguém que se possuiu e mete no bolso, dando aquela sensação de segurança que não é segurança mas morte, em que o beijo já não é fundura mas futilidade e o corpo já não é tentação mas lugar-comum. Deixaria cair aquele vestidinho branco, símbolo de pureza e de uma virgindade que já não tinha e abrir-se- ia ao mundo com o coração ardente sem cadeia nem entraves nem hábitos formatados, sem porém se deixar corromper pela vida. Em vez de esposa transformar-se- ia numa cortesã nas artes do amor. Seria a mulher inesquecível de uma noite com o dom de transformar o desejo no mais puro sentimento religioso, em ânsias de infinito. Faria que até os homens mais inseguros elevassem os seus falos ardentes com toda a imponência e a dignidade a que têm direito e sentissem a sua natureza singular ardente bem viva. Desapareceria depois, mas dela ficaria sempre uma memória viva que não era ela mas uma vida maior que a sua passagem desvelou, uma possibilidade outra. Caminharia nas chamas, na noite, viveria com s feras sem porém se deixar esmagar. Sem porém deixar que o seu brilho se ofuscasse nem as suas asas ganhassem bolor . Cavalgaria os animais mais ferozes. Apaixonar-se-ia por todos e por ninguém. Nenhuma paixão a poderia verdadeiramente abalar. Nenhuma a levaria ao altar, no entanto todas teriam aquele sumo da vida como aquela luz arrancada do caos. Neste momento os seus olhos mostravam-se mais intensos e ferozes. Um brilho rebelde e lágrimas revoltas desprendiam-se deles. Nisto volta a compor-se e afasta as lágrimas do rosto de forma meio desajeitada com as mãos. Acalma-se mais uma vez e percebe a irrealidade de tudo o que lhe passa na cabeça. Que não havia qualquer necessidade de drama, que este é o destino normal da maior parte das pessoas, a normalidade da vida, e que não existe nenhum homem a não ser ele a quem se sinta ligada e que tudo nela era sonho, excesso de imaginação inadequada à vida tal como ela era. Ninguém sabia ao certo deste imaginário pois aparentemente era inexpressiva, de uma simplicidade que tocava a timidez. Rosto fino, delicado, olhos esverdeados cujo fulgor momentâneo pareceria em determinados momentos romper a tendência geral e destapar o rasgo rebelde que trazia dentro de si, que tão bem sabia compor com a sua habitual inexpressão que mais parecia um levantar voo do concreto ocultando uma vida que libertava a sós consigo própria...

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

À Queima-Roupa

I - Todo o desejo visa o Infinito. Morre e ressuscita de o não atingir.

II - O Infinito trespassa o mundo nos sexos corações incendiados dos amantes.

III - Mal dos amantes que se não penetram até ao Infinito.

IV - Vestida do mínimo indispensável para ficar nua, a Terra atrai a si o Céu com um falo em chamas.

V - Amo-te tanto que nem céu nem inferno me separariam de ti. Nenhum deus criaria o mundo se em nós houvesse reparado.

VI - Superar o desejo pelo seu incêndio extremo. Volver o fogo em luz. E partir para o que nunca deixámos.

VII - Perdemos a memória do que é. E reencontramo-la nas pausas do nosso desejo louco do que não existe.

VIII - A sociedade de espectáculo, produção e consumo vive do desejo que desperta, alimenta e frustra. O Marketing e a Publicidade excitam-no o mínimo indispensável para o entreterem e prenderem neste circo de escravos das coisas irreais. Ai de nós todos se ele ganha asas ! Arriscamos despertar do sonho de haver falta !

IX – Nunca se escutou Camões, o que cantou não a Fé nem o Império, não o encontro de culturas, mas a “expedição” de Eros “Contra o mundo rebelde, por que emende / Erros grandes que há dias nele estão, / Amando cousas que nos foram dadas, / Não para ser
amadas, mas usadas” (IX, 25). O que cantou a redenção do mundo pela conformidade do masculino e do feminino na Ilha dos Amores, a plenitude do amor sensual e sexual pela qual se abre a divina visão, o messianismo erótico de uma nova raça andrógina de deuses humanos e homens divinos. Ninguém o escuta. Crucifica-se Eros na pornografia e nessas outras obscenidades que são o intelecto, o poder e as honras, o sucesso e a riqueza. O que faz avançar a civilização, a ciência e a miséria. As câmaras de gás da alma. Mas Eros ri e voa. E quem na cruz fica, exangue e triste, és tu !

X - A civilização é a fuga da Ilha dos Amores. E a sua única Terra Prometida é o extermínio.

XI - Somos sempre mais do que tudo o que possamos imaginar desejar.

XII - Dá tudo. Verás que nada te falta.

XIII - Dá e sê tudo. E sobretudo liberta-te da ilusão de teres e seres.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Castoriades: Para escapar da miséria psíquica


O que se requer é uma nova criação imaginária, de uma importância sem precedentes no passado, uma criação que ponha no centro da vida humana outras significações, e não apenas a expansão da produção e do consumo, que proponha objetivos de vida diferentes, e que possam ser reconhecidos pelos seres humanos como valendo a pena. {...} É essa enorme dificuldade que temos de enfrentar. Deveríamos querer uma sociedade na qual os valores econômicos deixasse de ser centrais, ou únicos, em que a economia fosse colocado no seu lugar, como simples meio de vida humana e não como seu fim último, uma sociedade na qual se renunciasse a essa corrida alucinada em direção a um consumo cada vez maior. Isso é necessário não só para evitar a destruição definitiva do meio ambiente terrestre, mas também, e sobretudo, para escapar da miséria psíquica e moral dos homens contemporâneos.



Cornelius Castoriades,
La montée de l'insignifiance
A ascenção da insignificância
Imagem: Bruno Cecim

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Selo

Acima de todos os céus há um Céu oculto
e selado com o Selo do Santo.
Zohar
O Livro do Esplendor

Kafka: Impaciência & Paraíso

'Por impaciência fomos expulsos do Paraíso,
por impaciência não retornamos a ele.' Franz Kafka/DESENHOS

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Canto-te... [fragmento]

"[...]

Canto-te tudo o que desliza e dança no rio do mundo
as auroras súbitas e as noites precoces
as rosas que florescem sobre os túmulos
as fontes que brotam nas grutas do coração
a murmurar sob a pele de estarmos aqui
os pressentimentos jovens de um despertar maduro
os sinais inequívocos do medo vencido
o drapejar da bandeira de todas as vitórias

Canto-te o diáfano manto da melancolia
a triste alegria que desponta das brumas
a morte que vem nas crinas do vento
a chamar-nos para a cinza dos dias
e o ébrio rompante que a tudo trespassa
o heróico canto que do imo do peito brota
e de eterno início em grinaldas sagra
o oiro jovem dos peitos inflamados

Canto-te estas coisas que entre nós pulsam
estes esplendores esta pujança este viço
tudo isto que se não sabe e nos emudece
num espanto que sobe das entranhas
a tremeluzir no uivo dos ventos
nos labirintos que pela terra serpenteiam
no segredo dos jardins mais íntimos
nas rodas vivas que no corpo giram
e imortal o transmudam

Canto-te tudo isto
pois tudo isto é o que nos soergue e nutre
tudo isto é o trono onde reinamos
olhos nos olhos
irados e doces
gentis e feros
unidos e separados
a dançar para além de sermos alguém
e a vestir todas as formas do possível

Assim te celebro no encanto de tudo o que nos envolve
ó tu que invoco do fundo maior que o real
ó tu que despontas, de ouro e prata coroada
adamantina, de mistério ungida,
ó Inigualável !

[...]"

- fragmento de um terma evocativo do jogo sagrado de Yeshé Tsogyal e Guru Rinpoche, oculto na terra de Oddyana, na língua das dakinis, pela força da saudade de um obscuro escriba entrevisto numa colina sobre o Tejo e traduzido em portuguesa língua na manhã do dia 6 de Dezembro de 2007

Doar

Doar, a Guenádi Aigui:
De que te vestes e do que te despes/ Sonho: caminho no campo/ Daquele que antes passa não verás nem rastro
doar o centeio negro à claridade das manhãs o que sustenta um homem contra as tempestades não sabe ao certo do que ele é feito e no que se desfaz partes estão sempre desmoronando coisas estão sempre deixando de ser no corredor de ossos O Clarão e mais um filho é devolvido à relva O pavilhão de trevas Quase nunca é preciso soprar as cinzas dos olhos ninguém vem retribuir à terra a água colhida na palma da mão tu não avanças mais cantando
há a impossibilidade da semente vir a se tornar uma floresta sem ressentimentos tu não avanças mais cantando sem notar a caridade dos dias com o direito de ocultar todo horizonte com uma elevação de lágrimas Mas se sabia, desde os primeiros sinais, que não vieram, que os ventos varreriam a terra, cavando, até expor aos nossos olhos as esmeraldas deste funeral as esmeraldas deste funeral o centeio negro à claridade das manhãs já foi doado, e embora vozes se erguessem não deixaste O Doador de Sombras esses clamores vagos clarões Nem nuvem vã desceu até teus olhos os calcanhares com que pisaste o canto dos que se erguiam em bando em defesa dos dias e o leito de sombras foi armado lá onde
do Alto semeamos ossos As doações o que sustenta um homem contra as tempestades não sabe ao certo do que ele é feito e no que se desfaz Ah de quem foi este pé que se recusa a dar um passo ah essas mãos trêmulas depostas aos nossos pés Do Alto, semeando ossos As doações nós nos dizíamos Eis o beber a seiva derramada O Pontilhão Escuro está cantando ao vento: um dia a água do corpo correrá ao contrário, vindo ao teu encontro, e tuas aves serão feitas de terra Eis o beber a seiva derramada ah de quem foi este pé que se recusa a dar um passo Mas a criança há de nascer mais antiga sob um sol de cinzas se desfazendo sobre nós partes estão sempre desmoronando somos, em nós, as doações recentes, as recém-nascidas doações estão sonhando, indo para o mais antigo Campo de Miragens nu O Doador de Véus E o mais antigo desmorona aos nossos pés se se recusam a dar um passo antigo se tudo passa, o lentamente, em nós coisas estão sempre deixando de ser Se as Fontes imóveis de repente cantassem em nós ah, as cantantes caladas oh se cantassem de repente A verdade é que o pé tateia o limo a mão espera o líquen dos afagos E tudo bem silenciosamente Este desejo é longo quando passo através da opaca cintilância Ah, a Opaca cintilância desses filhos mortos semeados pela relva quando passo no corredor de ossos
um olho ainda cintila a Lã que ama o fogo sem balir O Clarão o fogo-fátuo destas fontes Eis o beber a Seiva, a seiva derramada A água do corpo não correrá ao contrário em nós tremia um mineral profundo e mais um filho é devolvido à relva quando menos se esperava tanto espanto A Voz soluça entre gorjeios Quem sabe a santidade ser O osso leve de um filho devolvido à Relva O pavilhão de trevas está se abrindo
Dobrados diante dele joelhos de fruta Para colher a melhor flor da estação, quantas sementes esperando a Seiva lenta, aguardando um pranto Quase nunca é preciso soprar as cinzas dos olhos Quase nunca é preciso lançar ossos no abismo Estamos sempre dispostos a temer as manhãs estamos sempre nas manhãs, tremendo ninguém vem retribuir à terra a água Colhido na palma da mão tem um abismo É essa a fonte do coração oco entre miragens Tomo, de ti, a tua mão na minha Estas ruínas ficam bem caladas quando passo doar o centeio negro à caridade das manhãs
Se doendo sem dOr partes se dando: Do Corpo do poema em si, ao fora de si, ao Que?m buscando Em sonhos, a Margem brandamente escurecida sem o direito de ocultar a caridade dos dias mas com direito a vislumbrar todo o horizonte velado, a Elevação de Lágrimas Fonte do coração, do Oco entre miragens as esmeraldas neste funeral As esmeraldas deste funeral

Vicente Franz Cecim
Viagem a Andara oO livro invisível
Belém. Amazônia. Brasil







segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Beber a vida num trago, e nesse trago
Todas as sensações que a vida dá
Em todas as suas formas, boas, más,
Trabalhos e prazeres, e ofícios,
Todos lugares, viagens, explorações
Crimes, lascívias, decadências todas.

D'antes eu queria
Embeber-me nas árvores, nas flores,
Sonhar nas rochas, mares, solidões.
Hoje não, fujo dessa ideia louca:
Tudo o que me aproxima do mistério
Confrange-me de horror. quero hoje apenas
Sensações, muitas, muitas sensações,
De tudo, de todos neste mundo - humanas
Não outras de delírios panteístas
Mas sim perpétuos choques de prazer,
Mudando sempre
Guardando forte a personalidade
Para sintetizá-las num sentir.

Quero afogar em bulício, em Luz, em vozes,
- Tumultuárias coisas usuais -
O sentimento da desolação
Que me enche e avassala.

Folgaria
De encher um dia, numa hora, num trago,
A medida dos vícios ainda mesmo
que fosse condenado eternamente -
Loucura - ao tal inferno.
A um inferno real.

Desafios

“Esta atenção ao momento presente é de algum modo o segredo dos exercícios espirituais. Ela liberta da paixão que é sempre provocada pelo passado ou pelo futuro que não dependem de nós; ela facilita a vigilância concentrando-a no minúsculo momento presente, sempre domável, sempre suportável, na sua exiguidade, ela abre enfim a nossa consciência à consciência cósmica tornando-nos atentos ao valor infinito de cada instante, fazendo-nos aceitar cada momento da existência na perspectiva da lei universal do cosmos” – Pierre Hadot, Exercices Spirituels et Philosophie Antique, pp.27-28.

“Não é na alma de outro que está o teu mal; não está também numa modificação ou alteração do meio exterior. Onde está ele então ? No lugar onde reside em ti o que julga acerca do que é mal. Então, que este juízo não tenha mais lugar e tudo está bem” – Marco Aurélio, Pensamentos para mim mesmo, I, IV, 39.

“[falando da experiência do Uno pela alma] […] então ela vê-o aparecer subitamente em si; nada entre ela e ele; já não são dois, mas os dois não fazem senão um; não há mais distinção possível enquanto ele está lá (vejam a imagem disso no amante que quer confundir-se com o amado); ela não sente mais o seu corpo, porque está nele; ela não diz mais que é um homem, um ser animado, um ser ou o quer que seja; contemplar tais objectos seria romper a uniformidade do seu estado; e ela não tem ocasião nem vontade para tal” – Plotino, Enéadas, VI, 7, 34.

“As cinco aflições que perturbam o equilíbrio da consciência são: ignorância ou falta de sabedoria, ego, orgulho do ego ou o sentimento do “eu”, apego ao prazer, aversão à dor, medo da morte e aferrar-se à vida” – Patañjali, Yoga Sutras, II, 3.

“[…] as formas são vacuidade e a vacuidade, ela mesma, são as formas: a vacuidade não é diferente das formas e as formas não são diferentes da vacuidade. A vacuidade é o que as formas são e as formas são o que é a vacuidade. O mesmo para as sensações, as representações, as formações e as consciências” – Sutra do Coração do Conhecimento Transcendente.

“O reino dos céus é a impassibilidade da alma, acompanhada da ciência verdadeira dos seres” – Evagro, o Pôntico, Practiké, 2.

"No meu nascimento (eterno) nasceram todas as coisas e eu fui a causa primeira de mim mesmo e de todas as coisas; e, houvesse eu querido, nem eu seria nem todas as coisas seriam; mas, se eu não fosse, então também “Deus” não seria; que Deus seja “Deus”, disso sou eu a causa primeira; se eu não fosse, então Deus não seria “Deus”” – Mestre Eckhart, Beati pauperes spiritu…, Sermões Alemães.

O Fado

"A Amor quis esquivar-me, e ao dom sagrado:
Mas vendo no meu génio o meu destino,
Que havia de fazer ? Cedi ao fado"
- Bocage

Há experiências que nos deixam a braços com o lado desconhecido, secreto e autêntico da vida. O Fado é uma delas. Só o compreende quem, mais do que o ouvir, já o escutou ou cantou, num dos poucos templos do seu culto autêntico. Do arrebatamento perfilado, contido e hierático do(a) fadista ao trinar da guitarra e às almas que, silenciosas de olhos cerrados na penumbra, partem num arrepio da medula ao encontro da Saudade, é um mesmo rasgo das trevas da banalidade. E fica a Voz, uma voz dorida que sai das entranhas como a flama de um lume que a tudo consome. Paixão pura, gratuita, sem outro fim senão o de arder, tanto maior quanto mais se oferta : "dom sagrado".
Dos becos e vielas do coração obscuro de Lisboa ou dos salões da aristocracia castiça uma mesma Voz se ergue, quando o crepúsculo reabsorve na treva as femininas formas da cidade branca e rosa. O vento, que outrora engravidava as éguas no Monte Santo, vem agora dedilhar as cordas de uma guitarra portuguesa. O Tejo empresta a frescura e o ritmo das suas vagas. E as ninfas, sereias e tritões tomam forma humana, vestem-se de negro, à luz da Lua, para ficarem mais nús, mais íntimos à Noite absoluta. Então as Musas, as camonianas Musas, sopram : a celebração começa.
Embalada pelas velas pandas da Viagem e pela ressaca das marés da história, pelo espírito trovadoresco luso-árabe e pela mornidão coleante do lundum afro-brasileiro, essa Voz que a prumo se ergue, redimindo Céu e Terra da cisão originária, é Portugal. Portugal e sua remota matriz, atlante e estrímnica, serpentina e lusitana, no fim de um ciclo, no entardecer do mundo. Com a embriaguez, de ideal ou - quando em desespero - de vinho, a gastronomia chamânica, a poesia devocional, épica ou lírico-panteísta, o sebastianismo, a pega de caras, o barroco, a bizarria, o sonho realizador do impossível, a loucura e a Saudade, o Fado é um dos Arrebatamentos pelos quais vamos resistindo à coca-cola, à "fast food", ao aburguesamento da cultura, à intelectualização do sentimento religioso, à epidemia mediático-publicitária, ao imperialismo do imaginário anglo-saxónico e à destruição das almas e do planeta pelo consumismo e pela barbárie tecno-buro-plutocrática.
No Fado o trágico perdura. A irracional cisão entre o indivíduo e o Absoluto, que faz com que relativamente haja Destino, Fatum - a impessoal Moira que os gregos sabiam superior aos próprios deuses - , desafia todo o dogma religioso e as derivadas metafísicas. Por isso os portugueses a cantam, na saturnina ironia de quem contempla como vãos todos os artifícios da razão. Sabem, sem jamais terem pensado nisso, que só a dor, a extrema dor da identificação com o mal do mundo, dele nos liberta. Assumido e celebrado até à exaustão, em corpo e alma e espírito, em corpo-alma-espírito, o sofrimento transmuta-se em Alegria, a única não fictícia. Cátharsis, uma cátharsis praticada na vida quotidiana duma população, rito dum mito esquecido ou desnecessário. E tantos intelectuais que, em sua ignorância de cátedra, a julgam sepulta no teatro grego ou na Poética aristotélica...
Entre o esconjuro ou expiação do mal de existir - essa primordial injustiça da separação entre o indivíduo e a Plenitude que faz de cada nascimento uma morte e vice-versa - , a revolta contra os deuses e o destino e a aceitação resignada duma "sorte" dada por Deus, o Fado é afinal um paradoxal misto de sabedoria e ignorância ou esquecimento. Esquecimento de que a Vida - sob pena de absurdo radical ou infernal delírio divino - é metamorfose onde tudo o que a cada um acontece só pode ser por si gerado e merecido, fruto de acções livres na sua origem mas com efeitos necessários, em função da sua intencionalidade, da sua intensidade e das suas circunstâncias. O que torna possível a conversão do destino em destinação, ou a Libertação plena de todas as inevitáveis limitações existenciais, nada compatível com a anestesia, o suicídio lento e o langor do deleite num sofrimento não emancipador. Assim, aos versos do conhecido "Fado é Sorte", de Jaime Mendes - "Bem pensado/ Todos temos nosso fado/ E quem nasce mal fadado/ Melhor fado não terá // Fado é sorte/ E do berço até à morte/ Ninguém foge por mais forte/ Ao destino que Deus dá" -, bem responderia Bocage : "Não forçam corações as divindades: / Fado amigo não há, nem fado escuro;/ Fados são as paixões, são as vontades".
Decerto que Portugal é muito dessa melancolia que Aristóteles, no célebre Problema XXX, considera inerente a todo o génio ou homem de excepção, relacionando-a com a loucura, a propensão para a poesia, o vinho e o erotismo. Se a isto juntarmos o gosto pelos cavalos e pelos touros, e a indispensável guitarra, teremos, substituindo melancolia por Saudade - de âmbito semântico mais rico, e com uma abertura para a "salvação" que aquele termo grego não contempla - , um quadro perfeito da boémia fadista. E talvez o "fado vadio", cantado por quem passa, nas tascas - por exemplo na extinta Mascote da Atalaia, a cujas obscuras divindades tanto se deve do que aqui nos inspira - e nas ruas, nas peregrinações dentro ou fora de portas, outrora em seges e tipóias, seja ainda uma das últimas expressões de uma vida aventureira, nómada e itinerante, naturalmente marginal à existência domesticada, que o excesso de civilização, reprimindo, em vez de suprimir agudiza, polarizando-a em formas hoje cada vez mais violentas e perversas. Longínquos herdeiros dos grupos medievais de foliões, mistos de clérigos, estudantes e cantadeiras, trovadores, jograis e histriões, numa era em que, apesar da incompreensão eclesiástica, ainda se cantava e bailava nas igrejas, procissões e cemitérios (Carolina Michäelis de Vasconcelos mostra a pujança destas práticas na cultura galaico-portuguesa), e um século antes da juventude anglo-saxónica produzir os seus "rebeldes sem causa", convergindo no apocalíptico "No Future" da era "punk" e em todos os pós-niilismos contemporâneos, Lisboa encontrou, na santa aliança do rufia, do fidalgo excêntrico e da prostituta, e ao som do Fado, a mesma denúncia, sem alternativa, dos valores e do progresso sem valor da cultura e da sociedade burguesas. Dançando, ou "batendo o fado", de modo tão licencioso que logo atraiu censura e repressão, a "fadistagem fixe" opôs, em plena era industrial e urbana, o sentido arcaico da festa, do potlatch e do excesso, ou seja, do sagrado lúdico (não institucional e meta-religioso), à ascendente moralidade produtiva, mercantil e puritana. Com a cumplicidade de uma aristocracia fiel aos valores da generosidade, do dom, da terra, do ócio e da desmesura aventureira, desdenhosa do novo-riquismo racionalista e laborioso, a tradição portuguesa polarizou uma fonte de subversão da nova ordem dos "parvenus" auto-designados como respeitáveis, embrião dos homens cinzentos que hoje gerem a agonia do mundo.
Provém porventura desse contraste, entre o Infinito que na alma há e o pouco que dele ela e o mundo humano suportam, sempre que mais empenhados no domínio mental, político ou técnico-económico do universo, o pronunciado sentido elegíaco e triste da alma portuguesa e a resignação ante a desgraça do "povo de suicidas" (Unamuno) que Pascoaes disse sê-lo "por amor a Deus". Entristecimento saudoso, sentido de que o que mais importa só se presentifica na sua ausência, visão de que o "agora" só o é por decadência dum intemporal "outrora", já o encontramos nas trovas dos Cancioneiros, nas meditações da dinastia de Avis e na denúncia de Gil Vicente - na primeira pessoa, ante D.João III, o introdutor da Inquisição - da permuta do espírito folgazão pelos lamentos veterotestamentários de Jeremias : "Em Portugal vi eu já / em cada casa pandeiro, / e gaita em cada palheiro ; / e de vinte anos acá / não há i gaita nem gaiteiro. / A cada porta um terreiro, / cada aldeia dez folias, / cada casa atabaqueiro; / e agora Jeremias / é nosso tamborileiro " (Tragicomédia do Inverno e Verão).
Mas o espírito dionisíaco persistiu na música, e particularmente na popular (como o viu Nietzsche), onde menos impera a separação entre actores e espectadores e o canto e dança, em comum, ou o silêncio ritual, preservam a comunhão num mesmo Corpo Místico. Procedente da arcaica religiosidade cósmica, matriarcal e pré-olímpica, no Ocidente, ou pré-védica, no Oriente - em ambos os casos pré-ariana - , por cuja recusa e dissimulada integração as grandes religiões planetárias se constituíram, o dionisismo dos cultos mistéricos e iniciáticos encontrou entre nós a adequada celebração das Grandes Mães, dispensadoras da Vida e da Morte e, sobretudo, do Canto que arrebata a alma para além da sua coincidência. A Severa e Amália são, com todas as diferenças, e decerto mais do que no seu perfil psicobiográfico, essa viva instância mítica do Eterno Feminino que, na genial visão de Pascoaes, é a "Virgem da Saudade", a qual, uma vez fecundada pelo herói da Demanda que todos somos, não pode senão parir-nos um novo Deus-Homem, Mestre-Rei num universo transfigurado.
Então a Saudade, íntima união e complementaridade de contrários, se remirá do seu divórcio, pelo qual em Portugal ficaram a memória, a tristeza, o Fado, emigrando para o Brasil o desejo, a esperança, a alegria, o Carnaval... Então Portugal se desencantará e, descoberto o Embuçado, haverá beija-mão Real, com o João Ferreira Rosa a cantar o Fado do Fado Vencido. Acompanhá-lo-ão as dez mil guitarras de Alcácer-Quibir, dedilhadas por todos os Nautas da Aventura, culminando em Ressurreição o "morrer devagar" de quatro séculos de interminável agonia. Afinal apenas um mau sonho, mágica ilusão dissipada pela esplendorosa Luz da barra do Tejo.
- Paulo Borges, in Do Finistérreo Pensar, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2001, pp.101-105.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Fado dos Filhos da Democracia de Sucesso

(a ser cantado por uma fadista rasca da Povoa de Santa Iria em ritmo de tango e ao som do bandonéon)

Juntem-se Carlos do Carmo e Cortazar,
Adriana Varela, Ana Bola,
Herman José e Piazzola
e façam um favor á vossa escola,
cantem a história que vos vou contar.

Fado

Já não habitas os becos,
já não desferes em golpes secos
a raiva que a miséria humana em tí fez habitar.

Fado

Ou melhor, Tango descamisado,
és queixume globalizado
que bem longe nos convém projectar.

Quizeram reprimir o Fado,
retirá-lo das vielas,
enclausurá-lo atrás das janelas
por onde espreita o renegado,
contemplando a turbe elegante,
movida por um programa galante
que exibe pela cidade
o conformismo á nossa idade.

Fado

Fado asséptico das vielas,
como o detergente das janelas
dos suburbios novos que, qual carapaça,
escondem a terra
(ó vergonha nossa)
que em tempos nos alimentou.

Fado

Ou melhor, Tango descamisado,
és queixume globalizado
que bem longe nos convém projectar.

Ser mal-educado
já não é só cuspir para o chão,
mijar nas calças,
dizer palavrão,
não comer a sopa
e ainda morder a mão
que se calejou para nos alimentar.

Ser mal-educado
já não é só bater nos manos,
pois o Fado em seus subtis enganos
fez das nossas tripas coração.

Ser mal-educado
agora é despertar bem cedo,
não da cama mas do enredo
com que querem a nossa infância prolongar.

Fado

Fado triste e sorrateiro,
que se infiltrou qual gato matreiro
nas alcovas dos filhos da Revolução.

Fado

Ou melhor, Tango descamisado,
és queixume globalizado
que bem longe nos convém projectar.

Nesta Democracia de Sucesso,
onde a Liberdade tem um preço,
nada merece melhor apreço
do que um discurso deslavado
com um sorriso mortiço
de um agradante profissionalizado
e agarradiço, com um gosto personalizado
pelas cadeias de pronto-a-vestir.

Pois a Revolução,
quer queiram saber quer não,
(não há nada de mais duro
do que acordar de uma ilusão)
foi abortada na palma da mão
como quem limpa o traseiro ao jornal.

Pois de um feto
quizeram fazer uma mãe,
fazer um rebento
ser também
árvore frondosa onde se encostar.

O resultado
foi este filho-da-puta de Fado,
apadrinhado pela falta de paciência
para desviar os olhos do umbigo para a conciência
e desatar os mais fortes nós que nos restringem.

Fado

Ou melhor, Tango descamisado,
és queixume globalizado
que bem longe nos convém projectar.

Fado

Ou melhor cruel « Tanguédia »
que atinge os espíritos animados
pelo maior impulso de expansão.

São lâminas
que rasgam os lábios que, tal portas,
abrem o caminho para palavras
ouvidas como tortas,
mas que tentam mostrar o que é viver.

São sopapos
que tranformam em boneca de trapos
os mais autênticos seres,
desejados como retratos
de um modelo acabado
de encarnação de uma ilusão.

Meus senhores,
não julguem que o Fado se encarcera
só porque agora está na berra
mascarar-se de felizardo de papelão.

Pois o Fado
é um virus resistente e irado,
que escapa a todas as vacinas que inventem
e vos ataca á traição.

Escrito em Bruxelas a 16/12/2003 ás 16 :54 para enganar o aborrecimento e a falta de estímulo .

Desaforismos

É o medo que te faz existir. És feito de demissão. E todavia aí mesmo ainda trais o esplendor que a cada instante desertas.

Inquietações

"Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar" - Bernardo Soares, Livro do Desassossego

"Para além me volto, para a sacra, a indizível, a misteriosa noite. Longínquo, o mundo jaz - decaído para uma funda cripta - e ermo e solitário é o seu lugar. Nas cordas do peito sopra uma profunda nostalgia. Em gotas de orvalho me quero deixar afundar e misturar-me com a cinza" - Novalis, Os Hinos à Noite

Deve-se ir ainda além de Deus

Onde é a minha morada ? Onde eu e tu não estamos.
Onde é o meu fim último, para o qual devo ir ?
Aí onde nenhum se encontra. Para onde irei então ?
Devo ir ainda além de Deus, para um deserto.

- Angelus Silesius, Peregrino Querubínico, I, 7.

Provocações

"O "eu" constitui o privilégio apenas daqueles que não vão até ao fim de si mesmos" - Emil Cioran, A Tentação de Existir