domingo, 16 de dezembro de 2007

Fado dos Filhos da Democracia de Sucesso

(a ser cantado por uma fadista rasca da Povoa de Santa Iria em ritmo de tango e ao som do bandonéon)

Juntem-se Carlos do Carmo e Cortazar,
Adriana Varela, Ana Bola,
Herman José e Piazzola
e façam um favor á vossa escola,
cantem a história que vos vou contar.

Fado

Já não habitas os becos,
já não desferes em golpes secos
a raiva que a miséria humana em tí fez habitar.

Fado

Ou melhor, Tango descamisado,
és queixume globalizado
que bem longe nos convém projectar.

Quizeram reprimir o Fado,
retirá-lo das vielas,
enclausurá-lo atrás das janelas
por onde espreita o renegado,
contemplando a turbe elegante,
movida por um programa galante
que exibe pela cidade
o conformismo á nossa idade.

Fado

Fado asséptico das vielas,
como o detergente das janelas
dos suburbios novos que, qual carapaça,
escondem a terra
(ó vergonha nossa)
que em tempos nos alimentou.

Fado

Ou melhor, Tango descamisado,
és queixume globalizado
que bem longe nos convém projectar.

Ser mal-educado
já não é só cuspir para o chão,
mijar nas calças,
dizer palavrão,
não comer a sopa
e ainda morder a mão
que se calejou para nos alimentar.

Ser mal-educado
já não é só bater nos manos,
pois o Fado em seus subtis enganos
fez das nossas tripas coração.

Ser mal-educado
agora é despertar bem cedo,
não da cama mas do enredo
com que querem a nossa infância prolongar.

Fado

Fado triste e sorrateiro,
que se infiltrou qual gato matreiro
nas alcovas dos filhos da Revolução.

Fado

Ou melhor, Tango descamisado,
és queixume globalizado
que bem longe nos convém projectar.

Nesta Democracia de Sucesso,
onde a Liberdade tem um preço,
nada merece melhor apreço
do que um discurso deslavado
com um sorriso mortiço
de um agradante profissionalizado
e agarradiço, com um gosto personalizado
pelas cadeias de pronto-a-vestir.

Pois a Revolução,
quer queiram saber quer não,
(não há nada de mais duro
do que acordar de uma ilusão)
foi abortada na palma da mão
como quem limpa o traseiro ao jornal.

Pois de um feto
quizeram fazer uma mãe,
fazer um rebento
ser também
árvore frondosa onde se encostar.

O resultado
foi este filho-da-puta de Fado,
apadrinhado pela falta de paciência
para desviar os olhos do umbigo para a conciência
e desatar os mais fortes nós que nos restringem.

Fado

Ou melhor, Tango descamisado,
és queixume globalizado
que bem longe nos convém projectar.

Fado

Ou melhor cruel « Tanguédia »
que atinge os espíritos animados
pelo maior impulso de expansão.

São lâminas
que rasgam os lábios que, tal portas,
abrem o caminho para palavras
ouvidas como tortas,
mas que tentam mostrar o que é viver.

São sopapos
que tranformam em boneca de trapos
os mais autênticos seres,
desejados como retratos
de um modelo acabado
de encarnação de uma ilusão.

Meus senhores,
não julguem que o Fado se encarcera
só porque agora está na berra
mascarar-se de felizardo de papelão.

Pois o Fado
é um virus resistente e irado,
que escapa a todas as vacinas que inventem
e vos ataca á traição.

Escrito em Bruxelas a 16/12/2003 ás 16 :54 para enganar o aborrecimento e a falta de estímulo .

1 comentário:

  1. Bom poema, com raiva e ganas fadistas ! Gosto muito da última quadra: que ele sempre nos ataque, sobretudo à traição !

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