segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

O Fado

"A Amor quis esquivar-me, e ao dom sagrado:
Mas vendo no meu génio o meu destino,
Que havia de fazer ? Cedi ao fado"
- Bocage

Há experiências que nos deixam a braços com o lado desconhecido, secreto e autêntico da vida. O Fado é uma delas. Só o compreende quem, mais do que o ouvir, já o escutou ou cantou, num dos poucos templos do seu culto autêntico. Do arrebatamento perfilado, contido e hierático do(a) fadista ao trinar da guitarra e às almas que, silenciosas de olhos cerrados na penumbra, partem num arrepio da medula ao encontro da Saudade, é um mesmo rasgo das trevas da banalidade. E fica a Voz, uma voz dorida que sai das entranhas como a flama de um lume que a tudo consome. Paixão pura, gratuita, sem outro fim senão o de arder, tanto maior quanto mais se oferta : "dom sagrado".
Dos becos e vielas do coração obscuro de Lisboa ou dos salões da aristocracia castiça uma mesma Voz se ergue, quando o crepúsculo reabsorve na treva as femininas formas da cidade branca e rosa. O vento, que outrora engravidava as éguas no Monte Santo, vem agora dedilhar as cordas de uma guitarra portuguesa. O Tejo empresta a frescura e o ritmo das suas vagas. E as ninfas, sereias e tritões tomam forma humana, vestem-se de negro, à luz da Lua, para ficarem mais nús, mais íntimos à Noite absoluta. Então as Musas, as camonianas Musas, sopram : a celebração começa.
Embalada pelas velas pandas da Viagem e pela ressaca das marés da história, pelo espírito trovadoresco luso-árabe e pela mornidão coleante do lundum afro-brasileiro, essa Voz que a prumo se ergue, redimindo Céu e Terra da cisão originária, é Portugal. Portugal e sua remota matriz, atlante e estrímnica, serpentina e lusitana, no fim de um ciclo, no entardecer do mundo. Com a embriaguez, de ideal ou - quando em desespero - de vinho, a gastronomia chamânica, a poesia devocional, épica ou lírico-panteísta, o sebastianismo, a pega de caras, o barroco, a bizarria, o sonho realizador do impossível, a loucura e a Saudade, o Fado é um dos Arrebatamentos pelos quais vamos resistindo à coca-cola, à "fast food", ao aburguesamento da cultura, à intelectualização do sentimento religioso, à epidemia mediático-publicitária, ao imperialismo do imaginário anglo-saxónico e à destruição das almas e do planeta pelo consumismo e pela barbárie tecno-buro-plutocrática.
No Fado o trágico perdura. A irracional cisão entre o indivíduo e o Absoluto, que faz com que relativamente haja Destino, Fatum - a impessoal Moira que os gregos sabiam superior aos próprios deuses - , desafia todo o dogma religioso e as derivadas metafísicas. Por isso os portugueses a cantam, na saturnina ironia de quem contempla como vãos todos os artifícios da razão. Sabem, sem jamais terem pensado nisso, que só a dor, a extrema dor da identificação com o mal do mundo, dele nos liberta. Assumido e celebrado até à exaustão, em corpo e alma e espírito, em corpo-alma-espírito, o sofrimento transmuta-se em Alegria, a única não fictícia. Cátharsis, uma cátharsis praticada na vida quotidiana duma população, rito dum mito esquecido ou desnecessário. E tantos intelectuais que, em sua ignorância de cátedra, a julgam sepulta no teatro grego ou na Poética aristotélica...
Entre o esconjuro ou expiação do mal de existir - essa primordial injustiça da separação entre o indivíduo e a Plenitude que faz de cada nascimento uma morte e vice-versa - , a revolta contra os deuses e o destino e a aceitação resignada duma "sorte" dada por Deus, o Fado é afinal um paradoxal misto de sabedoria e ignorância ou esquecimento. Esquecimento de que a Vida - sob pena de absurdo radical ou infernal delírio divino - é metamorfose onde tudo o que a cada um acontece só pode ser por si gerado e merecido, fruto de acções livres na sua origem mas com efeitos necessários, em função da sua intencionalidade, da sua intensidade e das suas circunstâncias. O que torna possível a conversão do destino em destinação, ou a Libertação plena de todas as inevitáveis limitações existenciais, nada compatível com a anestesia, o suicídio lento e o langor do deleite num sofrimento não emancipador. Assim, aos versos do conhecido "Fado é Sorte", de Jaime Mendes - "Bem pensado/ Todos temos nosso fado/ E quem nasce mal fadado/ Melhor fado não terá // Fado é sorte/ E do berço até à morte/ Ninguém foge por mais forte/ Ao destino que Deus dá" -, bem responderia Bocage : "Não forçam corações as divindades: / Fado amigo não há, nem fado escuro;/ Fados são as paixões, são as vontades".
Decerto que Portugal é muito dessa melancolia que Aristóteles, no célebre Problema XXX, considera inerente a todo o génio ou homem de excepção, relacionando-a com a loucura, a propensão para a poesia, o vinho e o erotismo. Se a isto juntarmos o gosto pelos cavalos e pelos touros, e a indispensável guitarra, teremos, substituindo melancolia por Saudade - de âmbito semântico mais rico, e com uma abertura para a "salvação" que aquele termo grego não contempla - , um quadro perfeito da boémia fadista. E talvez o "fado vadio", cantado por quem passa, nas tascas - por exemplo na extinta Mascote da Atalaia, a cujas obscuras divindades tanto se deve do que aqui nos inspira - e nas ruas, nas peregrinações dentro ou fora de portas, outrora em seges e tipóias, seja ainda uma das últimas expressões de uma vida aventureira, nómada e itinerante, naturalmente marginal à existência domesticada, que o excesso de civilização, reprimindo, em vez de suprimir agudiza, polarizando-a em formas hoje cada vez mais violentas e perversas. Longínquos herdeiros dos grupos medievais de foliões, mistos de clérigos, estudantes e cantadeiras, trovadores, jograis e histriões, numa era em que, apesar da incompreensão eclesiástica, ainda se cantava e bailava nas igrejas, procissões e cemitérios (Carolina Michäelis de Vasconcelos mostra a pujança destas práticas na cultura galaico-portuguesa), e um século antes da juventude anglo-saxónica produzir os seus "rebeldes sem causa", convergindo no apocalíptico "No Future" da era "punk" e em todos os pós-niilismos contemporâneos, Lisboa encontrou, na santa aliança do rufia, do fidalgo excêntrico e da prostituta, e ao som do Fado, a mesma denúncia, sem alternativa, dos valores e do progresso sem valor da cultura e da sociedade burguesas. Dançando, ou "batendo o fado", de modo tão licencioso que logo atraiu censura e repressão, a "fadistagem fixe" opôs, em plena era industrial e urbana, o sentido arcaico da festa, do potlatch e do excesso, ou seja, do sagrado lúdico (não institucional e meta-religioso), à ascendente moralidade produtiva, mercantil e puritana. Com a cumplicidade de uma aristocracia fiel aos valores da generosidade, do dom, da terra, do ócio e da desmesura aventureira, desdenhosa do novo-riquismo racionalista e laborioso, a tradição portuguesa polarizou uma fonte de subversão da nova ordem dos "parvenus" auto-designados como respeitáveis, embrião dos homens cinzentos que hoje gerem a agonia do mundo.
Provém porventura desse contraste, entre o Infinito que na alma há e o pouco que dele ela e o mundo humano suportam, sempre que mais empenhados no domínio mental, político ou técnico-económico do universo, o pronunciado sentido elegíaco e triste da alma portuguesa e a resignação ante a desgraça do "povo de suicidas" (Unamuno) que Pascoaes disse sê-lo "por amor a Deus". Entristecimento saudoso, sentido de que o que mais importa só se presentifica na sua ausência, visão de que o "agora" só o é por decadência dum intemporal "outrora", já o encontramos nas trovas dos Cancioneiros, nas meditações da dinastia de Avis e na denúncia de Gil Vicente - na primeira pessoa, ante D.João III, o introdutor da Inquisição - da permuta do espírito folgazão pelos lamentos veterotestamentários de Jeremias : "Em Portugal vi eu já / em cada casa pandeiro, / e gaita em cada palheiro ; / e de vinte anos acá / não há i gaita nem gaiteiro. / A cada porta um terreiro, / cada aldeia dez folias, / cada casa atabaqueiro; / e agora Jeremias / é nosso tamborileiro " (Tragicomédia do Inverno e Verão).
Mas o espírito dionisíaco persistiu na música, e particularmente na popular (como o viu Nietzsche), onde menos impera a separação entre actores e espectadores e o canto e dança, em comum, ou o silêncio ritual, preservam a comunhão num mesmo Corpo Místico. Procedente da arcaica religiosidade cósmica, matriarcal e pré-olímpica, no Ocidente, ou pré-védica, no Oriente - em ambos os casos pré-ariana - , por cuja recusa e dissimulada integração as grandes religiões planetárias se constituíram, o dionisismo dos cultos mistéricos e iniciáticos encontrou entre nós a adequada celebração das Grandes Mães, dispensadoras da Vida e da Morte e, sobretudo, do Canto que arrebata a alma para além da sua coincidência. A Severa e Amália são, com todas as diferenças, e decerto mais do que no seu perfil psicobiográfico, essa viva instância mítica do Eterno Feminino que, na genial visão de Pascoaes, é a "Virgem da Saudade", a qual, uma vez fecundada pelo herói da Demanda que todos somos, não pode senão parir-nos um novo Deus-Homem, Mestre-Rei num universo transfigurado.
Então a Saudade, íntima união e complementaridade de contrários, se remirá do seu divórcio, pelo qual em Portugal ficaram a memória, a tristeza, o Fado, emigrando para o Brasil o desejo, a esperança, a alegria, o Carnaval... Então Portugal se desencantará e, descoberto o Embuçado, haverá beija-mão Real, com o João Ferreira Rosa a cantar o Fado do Fado Vencido. Acompanhá-lo-ão as dez mil guitarras de Alcácer-Quibir, dedilhadas por todos os Nautas da Aventura, culminando em Ressurreição o "morrer devagar" de quatro séculos de interminável agonia. Afinal apenas um mau sonho, mágica ilusão dissipada pela esplendorosa Luz da barra do Tejo.
- Paulo Borges, in Do Finistérreo Pensar, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2001, pp.101-105.

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