Primeiro momento
Manhã de Agosto, dia claro, ao som do Hino Nupcial de Mahler surge a noiva no interior da catedral gótica de imponentes ogivas em que o som e as formas se exaltam, se elevam, como quem põe o pé na outra margem da vida. Já tudo mudou na superfície do mundo, mas a noiva continua a ir de branco, fina e trémula, espantosamente feminina. Perseguirá talvez o mesmo sonho secular das mulheres. Irá colocar-se ao lado do noivo menos voluptuoso cujo alinhamento recto lhe servirá de fundo para lhe aumentar ainda mais a sinuosidade e a graça e a olhará com um sorriso e um brilho nos olhos, como se voltasse a sentir aquele momento único de ímpar qualidade em que o mundo fragmentado e dual se desfez num beijo fundo. Foi aquele momento o impulso para esta cena. Talvez agora o selvagem se tivesse tornado mais domesticável, capaz de se adaptar à ordem do mundo e porque assim deve ser, só deste modo será aprovado por Deus e pelos homens. Aproxima-se pé ante pé com os sapatos mais altos do que é habitual, apertados porque eram novos, desconfortáveis porque assim são todas as coisas das mulheres que por vezes parece que nasceram para andar encarceradas em formas, com vocação para o sacrifício, porque se não for assim serão mais pessoa e menos mulher, menos flor, menos brisa, menos “ornamento do mundo”, menos objecto de desejo ou sei lá o quê. Cada passo aproximava-a do “sim” - “sim, estou certa”, “sim, é ele que amo”, “ sim, até que a morte nos separe”,” na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até aos últimos dias da nossa vida...” - , da jura de lealdade e exclusividade. Mesmo que o fogo se extinga terá que permanecer a armadura da lealdade, a dignidade da palavra, porque o casamento é a expressão da consistência do amor, a objectividade visível do mesmo. Mas nos seus olhos pulsava uma secreta vocação para o excesso, a atracção para o erro que desconcerta a tradição e perturba a ordem dos conceitos pré-estabelecidos da sociedade, sempre ameaçados por uma corrente de intensa vida, livre e imprevista, que se evade dos mesmos e anseia pelos limites, os deliciosos venenos que quase sempre envenenam e raras vezes curam.
Foi no momento do voto, quando tinha que dizer o “sim”, que a sua mão se desprende da dele, deixando cair a aliança de ouro que ressoou no chão de granito da catedral e, parecendo ter asas, virou costas a toda uma assembleia que ficara atónita, por momentos muda e gelada num colapso provocado por um corte súbito de uma corrente feita de matéria emocional, de princípios morais e ideais sólidos. Numa corrida voltou a sair por onde entrara na direcção daquela luz solar que contornava a enorme porta entreaberta da catedral. Viu-se deslizar por estradas num carro, depois com cabelos ao vento num barco, até se encontrar com o homem cuja imagem interior que dele transportava lhe dera a coragem de tamanha ousadia. Estava sentado no chão contemplando o horizonte aberto de um fim de tarde cuja luminosidade, prestes a esvair-se, reflectida no olhar, lhe acentuava a força da alma, a vida concentrada que os olhos deixavam transparecer. Um estilo meio informal, em equilíbrio consigo mesmo, mas em desequilíbrio com o mundo, mais as suas ideias de compostura - cabelos longos desalinhados. Ela aproximou-se, ambos se olharam no fundo dos olhos e sentiram o turbilhão de vida, um alvoroço, uma espécie de felicidade intensa como se estivessem a tocar trémulos o âmago de todas as coisas. Sentiam-se invadidos por uma força e uma fragilidade, uma solidez e um desabamento, uma timidez e uma ousadia interceptada por uma ameaça de morte misturada com uma incomensurável plenitude. As suas bocas tocaram-se num ímpeto louco como o primeiro momento de um envolvimento crescente e toda aquela manifestação física de lábios unidos, línguas que se envolviam e misturavam, imprimia uma crescente força ao corpo e uma capacidade heróica à alma. Ele trazia uma camisa de aspecto meio gasto que ela suavemente, a disfarçar a intensidade selvagem e pouco suave que lhe corria no sangue, foi abrindo de forma a sentir o seu tronco masculino e quente. As suas mãos, como água que penetra em todos os recantos e frestas, como labaredas de fogo crepitante, deslizavam no sentido descendente até perceberem a sua enorme pujança, a sua dureza essencial, o que lhe acentuava o fervor e a deixava possuída por um clima desconcertante. Força primeira de toda a existência que lhe dava uma ânsia de aprofundar mais a experiência. Deixava-se ir naquele fervor com uma tremenda concentração que a fazia esquecer o passado ou a ideia de futuro. O seu corpo emitia fluidos quentes que as mãos dele também percebiam. Naquele momento ambos coincidiam. Desejavam o mesmo, estavam plenamente ali, naquele momento único que decerto gostariam que não tivesse fim, embora para ele se precipitassem. Mas, antes de se deixar ir na direcção para onde todos os ventos ferozmente a arrastavam, numa ambição pelo cume da vida, olha-o mais uma vez nos olhos como a comunicar sem palavras toda aquela plenitude que transbordava e lhe desejaria expressar e que estava inscrita no jeito como mordia o lábio inferior direito e mostrava aqueles olhos reluzentes de raça felina como a dizer sem necessidade de palavras as diferentes formas com que gostaria de se expressar. Porém, neste olhar que se pretendia audaz e penetrante, percebe que é o mesmo homem que abandonara no altar, a mesma fisionomia. Ficando por momentos nesta confusão, abre os olhos. A manhã impunha-se pelas frestas da janela semi-fechada em que o chilrear dos pássaros era a introdução do dia claro de Agosto. Acordara no seu quarto de sempre. Sentiu a sua humidade íntima como um vestígio do que não era, ao mesmo tempo que consciencializava que tinha sido um sonho. Era mesmo o dia do seu casamento. O último dia que dormia naquela cama daquela forma tão habitual.
Segundo momento
Levantou-se, estendeu o corpo esbelto, flexível e, dirigindo-se à janela, permite que a luz da manhã invada aquele aposento de traços femininos em tons claros. Dirige-se para um espelho oval, grande, que parecia condizer com a sua cama larga e alta e, assim ainda como que a despertar progressivamente, contempla a sua figura e consciencializa-se daquele dia, o dia do casamento. E ali, num frente a frente com a sua imagem, não pode deixar de perceber a sua postura insegura e quase cobarde num esforço de invocar uma convicção que não possuía. Não havia razão para achar que poderia não dar certo. No fim de contas conhecia-o tão bem, tiveram um namoro de quatro anos, compartilharam imensos momentos felizes. Conhecendo-se nos bancos da Faculdade tinham a mesma idade, juventude, alguns gostos semelhantes. Ele para ela era como um braço ou uma perna. Daquelas coisas que nem pensamos em valorizar em demasia porque nunca nos faltou mas, se as perdêssemos, sentiríamos por certo a falta. A sua presença na sua vida era uma constante. Saia com ele quase todas as noites e quase todas as noites dormia ali naquele quarto da casa da família. Quando não estavam juntos estavam mesmo assim comunicáveis, trocavam mensagens por telemóvel e muitas vezes bastava dar um toque para anunciar que estavam no pensamento. Admirava-lhe a inteligência, o sentido prático e empreendedor e o apoio que lhe brindava nas alturas mais críticas. Apesar disto, não podia escapar à sua própria sombra como uma dualidade que sentia dentro de si, uma posse que ameaçava toda a intenção de ordem e compostura, ameaça devastadora da harmonia e de um conceito de felicidade ideal. Vivia muita vezes a abafar esse grito, esse rasgo terrífico. O melhor seria não pensar demais e entreter-se com as coisas belas e simples da vida. Já Susana, uma das suas melhores amigas, que casara o mês passado, estava tão feliz, nervosa, cintilante! Interrogava-se sobre o motivo que a impedia de estar assim também: certa, convicta, expectante. Algum dia se viu uma noiva, assim jovem, que não estivesse feliz? Algum dia se viu uma jovem nesta situação que não tivesse imensos projectos de construir uma vida a dois, um lar, um refúgio? Fugir do altar?! Abandoná-lo, ele que sempre sonhara com uma família que lhe fora subitamente negada na infância e idealizava o riso e o choro das crianças a correrem pela casa! Borratar de lágrimas os rostos carregados de maquilhagem das senhoras que decerto não perderiam aquela ocasião para exibir o melhor dos seus trajes, os decotes, as lantejoulas, as transparências, os laços. Ofuscar o brilho nos olhos daquela gente toda que continuava a acreditar numa felicidade que nunca vivera, embora tentassem. Traumatizar o seu noivo, ser uma filha non grata. Arrepiava-se só de pensar naquele sonho, na fuga e nas consequências nefastas da mesma. Olhou-se melhor, mudando a posição da cabeça, e ensaiou uma sorriso de noiva. Queria que os seus olhos reluzissem assim como os de Susana. Convencia-se que se assim não era se atribuía ao facto de ter acabado de acordar mas que, com o passar do dia, ficaria mais resplandecente. Tudo melhoraria com a ajuda do rimel, o eyeliner. Ficaria perfeita, expressiva. O seu vestido branco assentava como uma luva e os sapatos, os mesmos do sonho, mais pareciam uma daquelas fantasias ancestrais e inolvidáveis da história da Cinderela. Todos os argumentos positivos estavam porém entrecortados por outras cenas. O que efectivamente estava diante de si era o reflexo da sua imagem espelhada, de onde realçavam os olhos trespassados por lágrimas como uma nuvem que ofusca o sol, ao que não podia ser indiferente. Pensava nos seus pais. Relação duradoira, resistente ao tempo e às tendências da sociedade actual, mas no jeito de se olharem passava aquela subtil indiferença e no trato uma inimizade íntima . Talvez não conseguissem viver mais um sem o outro, mas nada daquilo tinha a ver com fascínio, encantamento. O mesmo parecia passar-se com muitas outras pessoas que conhecera. Por tudo isto teria coragem de dizer “não”, de argumentar perante todos a sua decisão tardia, porém sincera. Subiria ao púlpito e falaria para todos com a força da sua alma que amava vivenciar a elevada inspiração do mundo, a comunhão do júbilo e da tristeza, do frio e do calor, como o crepúsculo dos mais exaltados sentimentos humanos. Que amava toda aquela torrente de vida que advém da existência do outro e do sonho que ele suscita, da sua realidade e irrealidade, e que assim, com aquele projecto, tudo aquilo perderia a graça. Diria mesmo que tudo o que é fascinante e belo jamais poderia ser agarrado tal como os pássaros cuja beleza só é perfeita ao voar livres no céu infinito. Mas agarrar o voo e minimizar o céu... Aproveitaria a ocasião para uma catarse que traria à luz tudo o que pensara e sentira ao longo de todo este tempo, ao ponto de comover até às lágrimas os convidados e fazer de tudo aquilo uma experiência íntima comum. Dir-lhes-ia que não podia ser indiferente ao imenso tédio que transparecia nos seu olhos como um arrefecimento da vida e que, se algum dia cresceram em posses e construções visíveis e sólidas, esse crescimento não estava a ser acompanhado pela força de uma liberdade maior e de uma vida mais autêntica. Sim, preferia viver toda aquela tensão entre a realidade e o sonho, o conhecido e o desconhecido. Teria a coragem para dizer que não se deixaria transformar em esposa como alguém que se possuiu e mete no bolso, dando aquela sensação de segurança que não é segurança mas morte, em que o beijo já não é fundura mas futilidade e o corpo já não é tentação mas lugar-comum. Deixaria cair aquele vestidinho branco, símbolo de pureza e de uma virgindade que já não tinha e abrir-se- ia ao mundo com o coração ardente sem cadeia nem entraves nem hábitos formatados, sem porém se deixar corromper pela vida. Em vez de esposa transformar-se- ia numa cortesã nas artes do amor. Seria a mulher inesquecível de uma noite com o dom de transformar o desejo no mais puro sentimento religioso, em ânsias de infinito. Faria que até os homens mais inseguros elevassem os seus falos ardentes com toda a imponência e a dignidade a que têm direito e sentissem a sua natureza singular ardente bem viva. Desapareceria depois, mas dela ficaria sempre uma memória viva que não era ela mas uma vida maior que a sua passagem desvelou, uma possibilidade outra. Caminharia nas chamas, na noite, viveria com s feras sem porém se deixar esmagar. Sem porém deixar que o seu brilho se ofuscasse nem as suas asas ganhassem bolor . Cavalgaria os animais mais ferozes. Apaixonar-se-ia por todos e por ninguém. Nenhuma paixão a poderia verdadeiramente abalar. Nenhuma a levaria ao altar, no entanto todas teriam aquele sumo da vida como aquela luz arrancada do caos. Neste momento os seus olhos mostravam-se mais intensos e ferozes. Um brilho rebelde e lágrimas revoltas desprendiam-se deles. Nisto volta a compor-se e afasta as lágrimas do rosto de forma meio desajeitada com as mãos. Acalma-se mais uma vez e percebe a irrealidade de tudo o que lhe passa na cabeça. Que não havia qualquer necessidade de drama, que este é o destino normal da maior parte das pessoas, a normalidade da vida, e que não existe nenhum homem a não ser ele a quem se sinta ligada e que tudo nela era sonho, excesso de imaginação inadequada à vida tal como ela era. Ninguém sabia ao certo deste imaginário pois aparentemente era inexpressiva, de uma simplicidade que tocava a timidez. Rosto fino, delicado, olhos esverdeados cujo fulgor momentâneo pareceria em determinados momentos romper a tendência geral e destapar o rasgo rebelde que trazia dentro de si, que tão bem sabia compor com a sua habitual inexpressão que mais parecia um levantar voo do concreto ocultando uma vida que libertava a sós consigo própria...
"Diria mesmo que tudo o que é fascinante e belo jamais poderia ser agarrado tal como os pássaros cuja beleza só é perfeita ao voar livres no céu infinito. Mas agarrar o voo e minimizar o céu... "
ResponderEliminarNunca estive noiva, mas conheço muito bem a angústia que é estar dividida entre esse impulso que me leva "a caminhar de noite com as feras" e o medo de ser irrealista, medo de desafiar convenções e acabar vencida, isolada, de acabar sem nada por desejar um Tudo que tenho por vezes medo que seja inacessível ou até mesmo inexistente ... Não obstante o que a minha própria experiência me diz ...