quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Elogio ao que é incomensurável no amigo e no mestre

Abro a página do blog. Atordoo-me com a veemência das palavras, com a sua declaração sobre o tempo, sobre os tempos do seu autor: o seu passado e o seu futuro, o seu sem tempo porque caminhante no horizonte do eterno e viajante expectante do mundo órfico por onde passou, pois que sabe escrever poemas cheios daquela beleza que dói e põe as lágrimas a bailar nas palavras e as torna líquidas como se elas regressassem ao rio da memória e à voz daqueles que as proferiram na origem. Apetece abrir os braços e gritar, gritar “que lindo é o poema!” “Que liiiiindo….!”E, depois fechar a sua beleza na alma e suportar com ele, o poema, o desamor pela vida que em certos instantes tolhe a alma, nos fecha as mãos e a permanência afectiva com os outros e com as coisas! Se dizê-lo, gritando, que “é lindo!” bastasse para o elogiar…e o guardar, ou o ter escrito na interioridade das pálpebras fechadas para o lermos no silêncio e no murmúrio do que chega no zénite das coisas múltiplas do acontecer e da vida! Mas não basta! O poema é tão intenso e flamejante que alberga a voz de um profeta e do deserto, o fulgor da luz incendiada do Sol nessas planícies de ninguém, ou consegue a música especial que devem conseguir vales e vales de canas de bambu quando o vento as toca para se escutar com mais instrumentalidade e arte. Este poema é um canto que mal sei ler, muito menos cantar. Porque eu gosto de cantar mas não sei cantar. Aprendo a ler quando o poema vem de uma voz que nunca escutei mas esperei. Mas este poema canta, canta e faz chorar. Este poeta, que tenho o prazer de escutar na voz dos poemas, e na voz em torno dos poemas, quando ensina os versos da dor, do amor, da sombra e do Sol, canta depois de Eurídice, e depois das experiências mágicas de tudo querer ser e poder ser, por se despir das ilusões e dos véus, dos sentidos estratificados nas coisas e nas palavras e, porque gosta das pontes e das passagens, dos versos e dos hinos que drapejam nos movimentos inauditos das bandeiras que se agitam na sua alma. Às vezes, quando o olho e o vejo sereno, o escuto, sim, sobretudo se o escuto, penso que ele deve ser da mesma matéria, da mesma pedra das Cariátides na Acrópole e deve fazer com as mãos aquilo que elas fazem com as pernas: segurar o mundo, a torrente imperante da vida, receber com a mesma aparente serenidade o que é avassalador, o Diónisos que o visita na tremura dos instantes, os estrangeiros, sejam eles humanos, deuses ou astros que recebe e acolhe nas janelas Rilkeanas da sua alma. E o desassossegam com uma flauta, com a sonoridade panteísta que o agita até aos confins do corpo. Por isso canta e dança se o visitante interior, e não o convite externo, o desafia à experiência. E empresta a alma e o corpo ao que é inacessível ao habitual e ao momento. Canta, dança e conspira. É um filho predilecto de Diónisos e recebe-o porque sente compaixão pelo seu sofrimento, porque se compadece pelas diferentes configurações da dor em todos os seres. O deus retribui e abraça-o no anel da vida. Paulo Borges toca mais do que os outros a alma do mundo, está em anelo com ela, e não apenas com a sua, e chama-a com chama quando pensa ou medita, versifica e se diversifica. E brilha, irrompe como essas mulheres na escuridão da nossa alma para relembrar o essencial: só o que estremece deixa ver o que de incomensurável passa por nós. Faz de nós a ponte. O daimon, que nos visita e traz o sem nome agarrado à experiência fecunda do mistério de haver ser e mais do que ser, faz nele morada. O daimon, que o faz ir do material ao inefável, da sombra ao Sol, como Ícaro, chama-o pelos seus dons e ele responde sem medo. E, como elas, permanece em pé, trespassado de memórias como um “pelourinho petrificado” e sorri expandindo-se sobre nós como as cores. Tingindo o sagrado, o inolvidável o silencioso, o imaterial da nossa vida interior e falante. Ele que é de todas as cores e com muitas cores, se calhar porque o índio pele vermelha ainda brinca nele, e ele, nas planícies selvagens aguarda a verdade com a mesma solenidade com que as crianças experimentam a poderosa aquiescência ao que mimam. Ele que é de todos os dons, porque brinca nas línguas de fogo do espírito santo e escreve com as suas mãos, aneladas pela beleza e pelo invisível, na sarça-ardente que faz e desfaz os rostos dos que em torno desse fogo divino contam e recontam as passagens sobre o grande rio da memória e da morte. E, porque se entretém a pensar como se atravessasse com um grito selvagem a grande passagem pela vida e pelos vivos e nos convidasse, a todos, a jogar ao indeterminado e ao sublime que ele persegue nas cores e nos dons. No veludo macio com que cobre o nosso frio do mundo, escrevendo e convidando todos para a sua inspirada conspiração a favor do que está por vir e é porvir. Hoje, vestida pelo pano nobre do que li e ele escreveu, aceitei o papel de escrever tudo como senti sem medo e sem limitação. Hoje não fui Cassandra nem Ofélia, fui Penélope e aventurei-me na leitura dos sinais, dos signos e dos jardins que recebo. Ora, não será também verdade que as rosas dizem sem porquê aos jardineiros eleitos que semeiam ideias pelos montes e montanhas de Zaratrusta e do Peloponeso? As palavras mais belas devem ter cheiro como as rosas, devem guiar os passos daqueles que não temem a neblina e são cavaleiros do quinto império…assistiram espiritualmente ao milagre isabelino do manto das rosas e devem saber o truque e o passe mágico de alimentar a nossa fome com pão e rosas, porque as rosas, como sabia Silesius, são o pão do espírito que promete a passagem para o Paraíso.

Isabel Santiago

1 comentário:

  1. Quando estava a ler este maravilhoso texto, veio-me de imediato á memória as palavras de Álvaro de Campos _ “ Quando quiseres dizer o teu o teu grande amor, deixa o teu amor de ser grande.”- mas quando se escreve com tanta alma e tão bem, dizê-lo é o mesmo que não o dizer. De qualquer maneira acho que devias ocultar o nome e manter tudo o mais para que assim, tudo seja ainda maior. Está de facto lindo, pujante!

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