terça-feira, 16 de agosto de 2011
Friedrich & Winter
À nossa frente: O grande ecrã! Ou que resta dele… A sala de projecção, que também é apenas memória, recordação. As imagens já não são o que era costume serem. Já não se pode confiar nelas. Todos o sabemos, e tu também sabes. Quando nós crescemos as imagens estavam a contar-nos histórias e a mostrarem-nos coisas, que agora só pretendem vender… histórias e coisas, mudaram à frente dos nossos olhos. Já nem sequer se sabe como mostrar as coisas… Esqueceram-se, simplesmente. As imagens estão a vender o mundo ao desbarato, em pacotes e com descontos. Quando me decidi a mergulhar fundo julguei que conseguia fugir a tudo isso. Falámos, lembras-te? Eu queria voltar a ver o mundo a preto e branco, através desta máquina manual, velha, e toda partida… the man with a movie camera… percorrendo as ruas sozinho, um homem com a sua câmara… e viva Dziga Vertov! Fingir que a própria história do cinema não existiu para ser contada, e que eu podia recomeçar tudo outra vez do zero, cem anos depois… Mas não funcionou, meu amigo. Por algum tempo, pareceu-me funcionar, mas depois veio a ruína… tudo havia sido desmoronado. Adoro esta cidade! Lisboa! esta cidade… e a maior parte do tempo eu vi-a realmente… mesmo em frente aos meus olhos… Mas apontar uma câmara e filmar é como apontar uma arma, e disparar. E de cada vez que eu apontei, senti-me como se a vida se estivesse a escoar das coisas… e filmava, e filmava… mas a cada rodar da manivela, a cidade recuava mais e mais, afastando-se cada vez mais e mais… como o gato sorridente da Alice. Nada. Estava a tornar-se insustentável. Desmoralizou-me imenso. Foi aí que eu pedi para que aparecesses, foi aí que te pedi ajuda. E por algum tempo vivi a ilusão de que o som, que é a tua voz, podia resolver tudo, que os teus microfones poderiam arrancar as minhas imagens à escuridão. Mas é escusado. É tudo escusado, meu amigo. Escusado. Mas… encontrei uma maneira de salvar isto, e estou a trabalhar neste momento nisso. Ouve-me… ora escuta. Uma imagem que não foi vista não pode vender nada, ora não? É pura, e por conseguinte, verdadeira, e bela. Numa palavra, é inocente. Enquanto nenhum olhar a contaminar permanece em perfeito uníssono com o mundo. Se não for vista, a imagem e o objecto que ela representa permanecem para sempre juntos… Sim, tu sorris… é apenas quando olhamos para a imagem, que… o que está contida nela, essa coisa, que ela contém, morre, desaparece… Apresento-te… a minha biblioteca de imagens nunca vistas… Todas estas imagens foram filmadas sem intervenção do olhar humano. Nunca ninguém as viu enquanto foram gravadas, ninguém as verificou depois. Filmei-as todas com a câmara pendurada atrás nas minhas costas! Estas imagens mostram a cidade como ela é... e não como eu desejaria que fosse. Seja como for, cá estão elas, no seu primeiro e doce sono da inocência, prontas a ser visionadas por alguma geração futura, com um olhar diferente do nosso… Tu sorris… eu também… que não te preocupe meu amigo, já não estaremos cá...
in Viagem a Lisboa, Wim Wenders
tradução livre
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário