O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 30 de abril de 2013


O Plantador de Palavras
Cultivar o deserto
como um pomar às avessas.
João Cabral de Melo Neto


Terra e Poesia – duas realidades feitas de uma materialidade que António Saias explora mergulhando incansável em suas potencialidades modeladoras. Isso significa serem esses dois vetores os responsáveis pela dinâmica que alimenta os poemas de (H)ortografias (2012), constituindo sua razão maior: escrever a terra, plantar o poema, cultivar as palavras como sementes e abrir a terra/página à consciência do fazer. São tendências entrecruzadas, não paralelas, mas tecidas conjuntamente no arado arejado a que se entrega o Poeta.
É a “Gen-Ética” (título de um dos poemas) a permitir, por exemplo, a fabricação de produtos inusitados ou a transformação insólita de elementos, como Nenúfar em Flamingo; é a aproximação num mesmo espaço da VÊNUS DE MILO e os parasitas da Hortelã; é igualar o papel à terra suada; é o suor servir-se de tinta e usar a enxada como caneta; é o movimento simultâneo de junção e disjunção no corpo da terra-escrita, “lavras com pa-lavras”; é o alimentar as palavras como as cabras, com grãos e pastos, ordenhando-as para dar bom rendimento.
Acontece que a ligação intrínseca com a terra ou o solo (o baixo, raízes, sementes, água) coexiste com outra: a aspiração ao alto (o céu, o voo, o ar). Alto e baixo, tal jogo dialético já vem anunciado no primeiro poema (ou epígrafe?) de (H)Ortografias:
feijão-de-trepar
:
raízes em terra
e ânsia de voar
Notemos como a verticalização se iconiza nos dois pontos – verdadeiras raízes no solo da página, em contraste com as rimas abertas das alturas /ar/. sugeridas pelos verbos “trepar” e “voar”. Enraizamento e liberdade, imanência e transcendência, apego e desapego – tais tensões perpassam toda a obra de Saias, desdobrando-se em ampla significação. Do corpo entranhado da escrita à materialidade do real, da consciência poética ao posicionamento sócio-político, a poesia de Saias amalgama distintas matérias em seu fazer, tendo como propósito maior a desacomodação de condicionamentos alienantes.

Nesse sentido, chama-nos a atenção a diversidade de formas de composição dos poemas, como se a poesia, terreno fértil à germinação múltipla, resultasse num campo propício a concepções distintas do fazer. Assim, não apenas a moldura/estrutura textual como também as fontes e motivos operacionalizados pelo poeta, bem como sua consciência crítica, revelam uma sensibilidade antenada à cultura literária de que faz parte.
Desse modo, a irreverência à La Alexandre O’ Neill, o espírito breve e sintético dos haicais, o engajamento crítico de cariz neo-realista, lampejos surrealistas à Cesariny, essas matrizes se complementam no percurso poético de António Saias. Sem dúvida, de todo esse caldo cultural o que mais engrossa a textura de suas poesias é a presença de O’ Neill. A série de poemas como “Ponto de Interrogação”, “Ponto Final”, “Acento Circunflexo”, “Cedilha”, instauram em nossa leitura um diálogo com as “Brincadeiras Ortográficas” de O’ Neill. Em ambos os poetas, o espírito lúdico conjuga-se à lucidez crítica no trato com a palavra e o real nela implícito. Por isso, não se trata de uma metalinguagem encerrada nos limites da funcionalidade linguística, e sim de um código estético atento às relações tensivas entre palavra e realidade, representação e traição.
Nos versos “cada um manifesta-se como pode / ou pôde?” (2012, p.86), o pretexto de falar sobre o acento circunflexo abre-se a uma indagação que ultrapassa a questão gráfica para transformar-se num dilema maior: a liberdade do sujeito para sua manifestação é presente ou um gesto do passado? Ou melhor, que convenções ainda pautam as atitudes humanas? A arbitrariedade do signo e leis que o regem tem algo a ver com o arbítrio do ser humano?
Percebemos que a leveza da brincadeira tem a sua contraface, pois torna visível outra via de leitura em que desponta o senso crítico, como no poema “Pragma (para poeta contra novo AO)” (2012, p.81):
SOL
quando está frio apareces
isso me apraz

e sabes
quão pouco me faz
saber

quando me aqueces
se aquecer
se escreve com um C
se com mil SS

No diálogo com o sol desvela-se uma lição que extrapola os muros do academicismo ou do purismo vernacular. Por isso, para além das discussões infrutíferas em torno de acordos ortográficos, o poeta se manifesta como alguém capaz de acolher o que a natureza oferece para ser usufruído sem questionamento. Sentir-se aquecido ou confortado pela realidade natural parece muito mais prazeroso do que aceder às obrigações ou arbitrariedades das injunções institucionais, portanto, pouco importa a ortografia correta de aquecer, o que conta é o SOL maiúsculo que figura no alto do poema.
Evidentemente tal atitude não está a negar a seriedade das convenções, mas sim coloca sob suspeita o radicalismo ou cegueira que cerceiam as ações quando estas se pautam exclusivamente por condicionamentos inoperantes.
A burla, gesto saudável para inverter as posições habituais e categorias preestabelecidas, justifica-se como procedimento poético porque nele está contido o conhecimento ou saber. Ao poeta cabe o papel de investir numa aprendizagem que se desfaz do que se cristalizou, para recuperar o frescor e a originalidade roubados pela institucionalização. Antes cultivar o exótico que o pragmático usual, eis o que nos comunica um poema como “O Grego → O Latim → O Inglês → O Mandarim” (2012, p.80):
não tarda
quem quiser
mandar
em mim

não mais em
inglês

inglês
chegou
ao fim
ordens só vou
passar
ou aceitar
em
mandarim

O próprio trocadilho entre “mandar em mim” e “mandarim” revela a habilidade de quem manipula a língua como objeto que se esquiva aos grilhões da seriedade gramatical, tronando-a maleável ao único “idioma” que interessa – o da aventura poética. O poeta dribla, assim, a visão pragmática geralmente associada à língua inglesa, sugerindo atender a outras possibilidades idiomáticas ou alternativas linguísticas, como o mandarim.
É também o jogo verbal, próprio de quem gosta de tomar as palavras como brinquedo, que leva o poeta a criar um diálogo com o poeta brasileiro Manuel Bandeira: “o menino que gostava / de brincar com as palavras / viu uma lagarta às listras // e lembrou-se de chamar-lhe / LAGA_ARTISTA” (2012, p.74). Um outro poeta-criança, também manipulador das palavras, Manoel de Barros, certamente assinaria o jogo inventivo de Saias.
Por outro lado, o gracejo que brota do uso crítico da língua com o propósito de subversão das normas gramaticais pode também descortinar outra face pela leitura: o encanto lírico. No poema “GArçA” (2012, p.77), por exemplo, não somente o destaque gráfico do signo como também o discurso sobre a ave acabam por revelar a outra dimensão da linguagem e da própria ave. É que o mirar-se na água-linguagem, em que despontam qualificações – branca, leve, imponderável, esguia – permite que o reflexo da imagem da ave faça transparecer outro sentido para a garça – a graça. Beleza, recorte singular e poético da ave, num simples anagrama e sugerido pelos breves versos. O “inegável erro / de ortografia” é o que nos permite ler e ver o seu outro lado, o reflexo invertido das letras em que surge, aí sim, a graça no duplo sentido (encanto e humor).
Ao tomar como tema no poema “Bucólico” (2012, p.31) o canto do grilo (outro motivo que nos remete a Alexandre O’Neill), António Saias explora as potencialidades da rima, provocando curiosos efeitos semânticos. Opondo-se à usual sensação de incômodo que advém do canto do grilo, a visão do poeta constroi sensações prazerosas na sua relação com o inseto, pois o encanto e a pulsação vital materializam-se nos encontros sonoros e nas repetições: o que mais me encanta / quando o grilo canta / é saber que é pelas asas / que ele canta / -não pela garganta // ainda mais me encanta / no cantar do grilo / é eu sentir-me vivo//. O encadeamento dos sons guturais e as nasais /anta/ fazem com que o canto vá tomando conta do espaço poético, enlaçado ao eu que o incorpora. Num segundo momento do poema, o canto do grilo permanece, porém, agora, associado ao tempo, como se cantar tivesse o poder de amenizar a passagem do tempo e os contratempos da vida; as rimas e recorrências fônicas dão corpo a essa sensação: atento / contra o vento / ouvi-lo / grilo / canta / contra o tempo.
Entretanto, o bucolismo se reveste de outra dimensão, na medida em que o poeta apresenta-o sob um viés crítico, atendendo a uma vertente mais satírica, como no poema “Manhã Agrícola” (2012, p.28). Em matéria de ecologia, diz o poeta, não servem cantigas enganadoras, pois a realidade concreta e terrena exige outros cuidados. Formigas e toupeiras podem alimentar as fábulas clássicas ou inspirar Cesário Verde em seus poemas, mas na prática agrícola são daninhas, o que revela o lado bem humorado do poeta para quem é preciso entender a diferença entre as esferas literária e a práxis, até para se respeitar a natureza específica de cada uma. Na poesia, espaço em que o trabalho consciente com a linguagem faz coexistirem as duas realidades, tudo é possível porque o senso crítico está lá para denunciar as diferenças: “se precisar de bucolismo no trabalho / arranjo um pintassilgo / ou um canário”, conclui o poeta.
A consciência aguda de Saias não se conforma à imobilidade e passividade, preferindo o caminho da inquietação necessária à derrocada dos valores estabelecidos. É preciso construir outro mundo por meio de um lirismo inconformado, porém, insistente em seu poder de renovação – é o que nos propõe o poema “É Preciso”:
é preciso arrombar uma porta
é preciso inventar um caminho
é preciso uma leira cavada na horta
é preciso uma acha de fogo azinho

é preciso um canhão de certeza de tudo
é preciso uma seara de raiva nos dedos
é preciso outro mundo outro mundo outro mundo
sem brechas nem bruxas nem monstros nem medos (2012, p.12)

Autodeterminada (alimentada pelo anafórico “é preciso”), essa poesia reafirma seu papel junto à realidade histórica, acreditando nas possibilidades de transformação materializadas na linguagem. Transformação legítima porque preparada e armada no seio mesmo da escrita, espaço livre, aberto à emancipação do sujeito criador. A fome, a exploração, as diferenças sociais, as falsidades, a opressão e outros temas são revirados pela pena da escrita: “Fome não apaga / este pão trigueiro // sou ladrão de palavras” (2012, p.63). É graças ao investimento nas potencialidades do signo poético que a realidade se ilumina, fazendo do trabalho árduo com a palavra um análogo do trabalho braçal do homem ligado à terra.


COM ISTO ME DESPEÇO da SERPENTE
para mim de boa memória

abraço a todos

4 comentários:

João de Castro Nunes disse...


A serpente ao expirar
teve um lampejo de luz
como o sol que ao declinar
um raio verde produz!

JCN

platero disse...

caro JCN

Jornal de Notícias promove concurso de Quadras Populares - tema S.João

entrega de trabalhos até 31 desMAIO
Conto vê-lo, a meu lado, entre os concorrentes

grande abraço

João de Castro Nunes disse...


Vamos a isso, pá! JCN

platero disse...

onde é que está a dúvida

é ver regulamento e avançarmos

abraço