não mais na datilógrafa que luta por aumentos
quando o chefe pelo Natal
o presenteia com um mágico envelope
A FÁBRICA
a Fábrica é cercada
com arame farpado
tem uma entrada que é um portão enorme
com a casa- dos- guardas frente ao barracão das bicicletas
e um pastor-alemão que é tão simbólico
tão apenas simbólico
como a vedação de arame-farpado
e a casa-dos-guardas frente ao barracão das bicicletas
sim
que a vedação de arame-farpado é fácil de transpor
nada custa franquear o portão enorme
o pastor-alemão nunca morde
nem ladra a ninguém
os guardas
estão invariavelmente bêbedos
mesmo no momento em que se rendem
parece então
que seria mais coerente plantar flores
retirar o ar de manicómio
de parada militar
de campo-de-concentração que toda aquela
simbologia podre lhe empresta
assim os operários
chegariam contentes para exercer o seu trabalho
teriam pássaros em volta
e não os tecnocráticos pardais
( há pardais nos Quartéis nos Hospitais
nos Pátios dos Tribunais
nas Paradas das Prisões
nas estátuas dos generais
nas frinchas dos saguões)
pássaros dizia em volta
ninhos nos ângulos das naves
os cartaxos brincariam nas peças
não é possível o prazer na Fábrica
onde as coisas engrenam porque são determinadas
comandadas por senhores de batas
- que produzem a ORDEM
reprime-se em nome dessa coisa
ameaça-se com despedimentos
quem não tome a pílula vendado
produzir é o lema - produzir conforme os cáculos das máquinas
compromissos exteriores
:
Ces ; EFTAs ; outras siglas
tão acrílicas tão ásperas
tão “made in”
- filhas dessa coisa
a que chamavamos ORDEM
A ORDEM
vem sempre de cima
tal qual a chuva as trovoadas os coriscos
mais de cima sempre mais de cima
a ordem vem de Deus
então não se discute
o chefe-de-fabrico é deus em relação ao capataz
frente à sua imagem
este se recolhe
genuflete
toma a Ordem como quem toma a hóstia
melancolicamente virados ao vazio
adivinha
para além daquilo que lhe é dado:
deus diz dez
- o capataz já sonha vinte ou trinta
DEUS
deus não dorme
algum néctar do Olimpo
rodeado de anjos e arcanjos
- que raramente são
manda pôr na conta
e ordena que enderecem
ao economato celestial
não toma bica
- não defeca
nem micta
- segrega
os operários veem deus
de baixo para cima - respeitam-no num código
- que se chama de há milénios
- mandamentos
- dos quais o primeiro é o seguinte
:
amar ao chefe sobre todas as coisas
e os restantes
de um teor mais ou menos semelhante
assim é de facto:
o chefe é o sustentáculo da Fábrica - enquanto unidade de produção
por inerência
sustentáculo das famílias todas
há pois
que amar ao chefe sobre todas as coisas
o POTLACH
tem menos para dar e quem dá mais
porque o faz diariamente a todos
um poucochinho mais – que cada um
isoladamente tem para lhe dar
a secretária pede-lhe do Bar um Trinaranjus
se as coisas correm bem a nível da chefia
se as coisa correm mal
- não serve
porque tem borbulhas – se a mulher-a-dias trouxe com borbulhas
porque não tem borbulhas
se a mulher-a-dias trouxe
um Trinaranjus sem borbulhas
é pretexto pra a reprimir de maneira violenta
decisiva
podem apontar-lhe a rua
o retorno à enxada
guardada na pequena dependência do quintal
a mulher-da-limpeza é meiga
solícita
servil
subserviente
vendível
desodorizada assética
- um produto
dá quanto pode dar
à Secretária da Administração
que por seu turno porfiará em dar
aos seus administradores
alguma coisa ainda
às suas companheiras de trabalho
todos nós – operários
técnicos administrativos
que lambem os beiços
e tudo nos devolvem
há festões
e árvores enfeitadas em todos os recantos
e mesas recheadas de leitões assados
-secos como múmias – em postura
de esfinge de Giseh
são nomeadas as pessoas
que recebem os prémios
galardoados os assíduos
os produtivos
quiçá os colaboradores mais íntimos
os tratadores
esta a grande Festa o supremo Ofício
- o Facto Social Total
em que os deuses se misturam com os homens
POTLACH
assim de há anos – desde que a Fábrica respira
até que outro processo nasça
na raíz do sistema cariado
penso por exemplo em produção
de como (algumas)
crianças brincam
nº. 94 - 9º semestre
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