O Plantador de
Palavras
Cultivar
o deserto
como
um pomar às avessas.
João Cabral de Melo
Neto
Terra
e Poesia – duas realidades feitas de uma materialidade que António
Saias explora mergulhando incansável em suas potencialidades
modeladoras. Isso significa serem esses dois vetores os responsáveis
pela dinâmica que alimenta os poemas de (H)ortografias
(2012),
constituindo sua razão maior: escrever a terra, plantar o poema,
cultivar as palavras como sementes e abrir a terra/página à
consciência do fazer.
São
tendências entrecruzadas, não paralelas, mas tecidas conjuntamente
no arado arejado a que se entrega o Poeta.
É
a “Gen-Ética” (título de um dos poemas) a permitir, por
exemplo,
a fabricação de produtos inusitados ou a transformação insólita
de elementos, como Nenúfar em Flamingo; é a aproximação num mesmo
espaço da VÊNUS DE MILO e os parasitas da Hortelã; é igualar o
papel à terra suada; é o suor servir-se de tinta e usar a enxada
como caneta; é o movimento simultâneo de junção e disjunção no
corpo da terra-escrita, “lavras com pa-lavras”; é o alimentar as
palavras como as cabras, com grãos e pastos, ordenhando-as para dar
bom rendimento.
Acontece
que a ligação intrínseca com a terra ou o solo (o baixo, raízes,
sementes, água) coexiste com outra: a aspiração ao alto (o céu, o
voo, o ar). Alto e baixo, tal jogo dialético já vem anunciado no
primeiro poema (ou epígrafe?) de (H)Ortografias:
feijão-de-trepar
:
raízes em terra
e
ânsia de voar
Notemos
como a verticalização se iconiza nos dois pontos – verdadeiras
raízes no solo da página, em contraste com as rimas abertas das
alturas /ar/. sugeridas pelos verbos “trepar” e “voar”.
Enraizamento e liberdade, imanência e transcendência, apego e
desapego – tais tensões perpassam toda a obra de Saias,
desdobrando-se em ampla significação. Do corpo entranhado da
escrita à materialidade do real, da consciência poética ao
posicionamento sócio-político, a poesia de Saias amalgama distintas
matérias em seu fazer, tendo como propósito maior a desacomodação
de condicionamentos alienantes.
Nesse
sentido, chama-nos a atenção a diversidade de formas de composição
dos poemas, como se a poesia, terreno fértil à germinação
múltipla, resultasse num campo propício a concepções distintas do
fazer. Assim, não apenas a moldura/estrutura textual como também as
fontes e motivos operacionalizados pelo poeta, bem como sua
consciência crítica, revelam uma sensibilidade antenada à cultura
literária de que faz parte.
Desse
modo, a irreverência à La Alexandre O’ Neill, o espírito breve e
sintético dos haicais, o engajamento crítico de cariz neo-realista,
lampejos surrealistas à Cesariny, essas matrizes se complementam no
percurso poético de António Saias. Sem dúvida, de todo esse caldo
cultural o que mais engrossa a textura de suas poesias é a presença
de O’ Neill. A série de poemas como “Ponto de Interrogação”,
“Ponto Final”, “Acento Circunflexo”, “Cedilha”, instauram
em nossa leitura um diálogo com as “Brincadeiras Ortográficas”
de O’ Neill. Em ambos os poetas, o espírito lúdico conjuga-se à
lucidez crítica no trato com a palavra e o real nela implícito. Por
isso, não se trata de uma metalinguagem encerrada nos limites da
funcionalidade linguística, e sim de um código estético atento às
relações tensivas entre palavra e realidade, representação e
traição.
Nos
versos “cada um manifesta-se como pode / ou pôde?” (2012, p.86),
o pretexto de falar sobre o acento circunflexo abre-se a uma
indagação que ultrapassa a questão gráfica para transformar-se
num dilema maior: a liberdade do sujeito para sua manifestação é
presente ou um gesto do passado? Ou melhor, que convenções ainda
pautam as atitudes humanas? A arbitrariedade do signo e leis que o
regem tem algo a ver com o arbítrio do ser humano?
Percebemos que a
leveza da brincadeira tem a sua contraface, pois torna visível outra
via de leitura em que desponta o senso crítico, como no poema
“Pragma (para poeta contra novo AO)” (2012, p.81):
SOL
quando está frio
apareces
isso me apraz
e sabes
quão pouco me faz
saber
quando me aqueces
se aquecer
se escreve com um
C
se com mil SS
No
diálogo com o sol desvela-se uma lição que extrapola os muros do
academicismo ou do purismo vernacular. Por isso, para além das
discussões infrutíferas em torno de acordos ortográficos, o poeta
se manifesta como alguém capaz de acolher o que a natureza oferece
para ser usufruído sem questionamento. Sentir-se aquecido ou
confortado pela realidade natural parece muito mais prazeroso do que
aceder às obrigações ou arbitrariedades das injunções
institucionais, portanto, pouco importa a ortografia correta de
aquecer, o que conta é o SOL maiúsculo que figura no alto do poema.
Evidentemente tal
atitude não está a negar a seriedade das convenções, mas sim
coloca sob suspeita o radicalismo ou cegueira que cerceiam as ações
quando estas se pautam exclusivamente por condicionamentos
inoperantes.
A
burla, gesto saudável para inverter as posições habituais e
categorias preestabelecidas, justifica-se como procedimento poético
porque nele está contido o conhecimento ou saber. Ao poeta cabe o
papel de investir numa aprendizagem que se desfaz do que se
cristalizou, para recuperar o frescor e a originalidade roubados pela
institucionalização. Antes cultivar o exótico que o pragmático
usual, eis o que nos comunica um poema como “O Grego → O Latim →
O Inglês → O Mandarim” (2012, p.80):
não tarda
quem quiser
mandar
em mim
não mais em
inglês
inglês
chegou
ao fim
ordens só vou
passar
ou aceitar
em
mandarim
O
próprio trocadilho entre “mandar em mim” e “mandarim” revela
a habilidade de quem manipula a língua como objeto que se esquiva
aos grilhões da seriedade gramatical, tronando-a maleável ao único
“idioma” que interessa – o da aventura poética. O poeta
dribla, assim, a visão pragmática geralmente associada à língua
inglesa, sugerindo atender a outras possibilidades idiomáticas ou
alternativas linguísticas, como o mandarim.
É
também o jogo verbal, próprio de quem gosta de tomar
as palavras como brinquedo, que leva o poeta a criar um diálogo com
o poeta brasileiro Manuel Bandeira: “o menino que gostava / de
brincar com as palavras / viu uma lagarta às listras // e lembrou-se
de chamar-lhe / LAGA_ARTISTA” (2012, p.74). Um outro poeta-criança,
também manipulador das palavras, Manoel de Barros, certamente
assinaria o jogo inventivo de Saias.
Por
outro lado, o gracejo que brota do uso crítico da língua com o
propósito de subversão das normas gramaticais pode também
descortinar outra face pela leitura: o encanto lírico. No poema
“GArçA” (2012, p.77), por exemplo, não somente o destaque
gráfico do signo como também o discurso sobre a ave acabam por
revelar a outra dimensão da linguagem e da própria ave. É que o
mirar-se na água-linguagem, em que despontam qualificações –
branca, leve, imponderável, esguia – permite que o reflexo da
imagem da ave faça transparecer outro sentido para a garça – a
graça. Beleza, recorte singular e poético da ave, num simples
anagrama e sugerido pelos breves versos. O “inegável erro / de
ortografia” é o que nos permite ler e ver o seu outro lado, o
reflexo invertido das letras em que surge, aí sim, a graça no duplo
sentido (encanto e humor).
Ao
tomar como tema no poema “Bucólico” (2012, p.31) o canto do
grilo (outro motivo
que nos remete a Alexandre O’Neill), António Saias explora as
potencialidades da rima, provocando curiosos efeitos semânticos.
Opondo-se à usual sensação de incômodo que advém do canto do
grilo, a visão do poeta constroi sensações prazerosas na sua
relação com o inseto, pois o encanto e a pulsação vital
materializam-se nos encontros sonoros e nas repetições: o
que mais me encanta / quando o grilo canta / é saber que é pelas
asas / que ele canta / -não pela garganta // ainda mais me encanta /
no cantar do grilo / é eu sentir-me vivo//. O
encadeamento dos sons guturais e as nasais /anta/ fazem com que o
canto vá tomando conta do espaço poético, enlaçado ao eu que o
incorpora. Num segundo momento do poema, o canto do grilo permanece,
porém, agora, associado ao tempo, como se cantar tivesse o poder de
amenizar a passagem do tempo e os contratempos da vida; as rimas e
recorrências fônicas dão corpo a essa sensação: atento
/ contra
o vento
/ ouvi-lo
/
grilo
/ canta
/ contra
o tempo.
Entretanto,
o bucolismo se reveste de outra dimensão, na medida em que o poeta
apresenta-o sob um viés crítico, atendendo a uma vertente mais
satírica, como no poema “Manhã Agrícola” (2012, p.28). Em
matéria de ecologia, diz o poeta, não servem cantigas enganadoras,
pois a realidade concreta e terrena exige outros cuidados. Formigas e
toupeiras podem alimentar as fábulas clássicas
ou inspirar Cesário Verde em seus poemas, mas na prática agrícola
são daninhas, o que revela o lado bem humorado do poeta para quem é
preciso entender a diferença entre as esferas literária e a práxis,
até para se respeitar a natureza específica de cada uma. Na poesia,
espaço em que o trabalho consciente com a linguagem faz coexistirem
as duas realidades, tudo é possível porque o senso crítico está
lá para denunciar as diferenças: “se precisar de bucolismo no
trabalho / arranjo um pintassilgo / ou um canário”, conclui o
poeta.
A
consciência aguda de Saias não se conforma à imobilidade e
passividade, preferindo o caminho da inquietação necessária à
derrocada dos valores estabelecidos. É preciso construir outro mundo
por meio de um lirismo inconformado, porém, insistente em seu poder
de renovação – é o que nos propõe o poema “É Preciso”:
é preciso
arrombar uma porta
é preciso
inventar um caminho
é preciso uma
leira cavada na horta
é preciso uma
acha de fogo azinho
é preciso um
canhão de certeza de tudo
é preciso uma
seara de raiva nos dedos
é preciso outro
mundo outro mundo outro mundo
sem
brechas nem bruxas nem monstros nem medos (2012, p.12)
Autodeterminada
(alimentada pelo anafórico “é preciso”), essa poesia reafirma
seu papel junto à realidade histórica, acreditando nas
possibilidades de transformação materializadas na linguagem.
Transformação legítima porque preparada e armada no seio mesmo da
escrita, espaço livre, aberto à emancipação do sujeito criador. A
fome, a exploração, as diferenças sociais, as falsidades, a
opressão e outros temas são revirados pela pena da escrita: “Fome
não apaga / este pão trigueiro // sou ladrão de palavras” (2012,
p.63). É graças ao investimento nas potencialidades do signo
poético que a realidade se ilumina, fazendo do trabalho árduo com a
palavra um análogo do trabalho braçal do homem ligado à terra.
COM ISTO ME DESPEÇO da SERPENTE
para mim de boa memória
abraço a todos