Minha
cara não é feia
Minha
mão não tem peçonha
Se eu
não me casar
Não é
uma pouca vergonha?
Sempre achei que esta era a estrofe seguinte
ao poema da batatinha. Depois do jantar, meus pais sentavam-se no sofá da sala
de estar e esperavam que eu recitasse. De frente para eles, enquanto declamava
passava minhas mãos pela cara, abria os braços e perguntava convicta:
-
Se eu não me casar não é uma pouca vergonha?
Então, meus pais batiam palmas e eu tinha a
certeza que eles gostavam de mim.
Podia dormir descansada, porque em todos meus
sonhos, os príncipes existiam como nos contos de fadas.
O Visconde de Sabugosa, a Emília, o Pedrinho e
a Narizinho eram meus fieis companheiros. De dia ou de noite, bastava cheirar o
pó de pirlimpimpim, que ganhávamos asas para outras viagens. As madrastas feias
eram derrotadas e o mundo podia voltar a sorrir.
Quando aprendi a ler, a minha professora
deu-me um livro francês, que contava a história de uma baleia azul. Escreveu
uma dedicatória dizendo que um dia eu também poderia contar histórias. Durante
muitos anos, folheei o livro, adivinhando a história através das imagens.
Ficou a vontade secreta de que um dia eu
escreveria numa língua em que todas as crianças do mundo reconheceriam. Uma
língua que não precisaria de tradução, porque os sons seriam amigos. Abraçariam
o coração, fariam cócegas no corpo , ririam e chorariam na cadência das
histórias bonitas.
O livro da baleia azul ainda mora comigo. Sei de cor a sua história. Corre pelo meu
corpo, agora, a caminho de outra
infância.
Batatinha
quando nasce
Espalha
a rama pelo chão
A menina
quando dorme
Põe a
mão no coração
...
Se eu
não me casar
Não é
uma pouca vergonha?
No final da primária, senti uma dor aguda
chamada despedida. Eu iria morar longe e nenhum dos meus amigos, nem daqueles
por quem eu estava apaixonada seguiriam comigo.
O pó de faz de conta, não acalmou a dor.
Na varanda, deitada na rede, ouvindo o mar eu
cantava baixinho:
Quem parte leva saudades de alguém que fica
chorando de dor
Por isso eu não quero lembrar quando partiu meu grande amor
Ai, ai, ai ai, ai ai ai,está chegando a hora
O dia já vem raiando, meu bem, eu tenho que ir embora
O meu amor eram tantos que juntos eram só um, e
era tão intenso o que eu sentia que meu pai ensinou-me que esse vazio tão cheio
se chamava saudade.
Disse ainda que umas vezes dói, outras acalma
por dentro e nos faz sorrir.
Foi assim acolhendo o dia que aprendi a gostar
do tempo que nasce e morre em cada manhã, como se fosse o poema que um dia
prometi escrever numa língua em que todas as crianças entendem. Não tem
gramática, nem acordos. Conjuga todos os verbos no presente sempre na primeira
pessoa do plural, porque nela nos reconhecemos todos.
Enquanto minha mãe toca piano, meu pai
ensina-me outro poema.
Este, que mora no intervalo de cada palavra
esquecida.