Um espaço para expressar, conhecer e reflectir as mais altas, fundas e amplas experiências e possibilidades humanas, onde os limites se convertem em limiares. Sofrimento, mal e morte, iniciação, poesia e revolução, sexo, erotismo e amor, transe, êxtase e loucura, espiritualidade, mística e transcendência. Tudo o que altera, transmuta e liberta. Tudo o que desencobre um Esplendor nas cinzas opacas da vida falsa.
segunda-feira, 31 de agosto de 2009
arqueologia poética
Homem "pré-histórico" e homem "civilizado moderno" ou a raiz de todas as separações
O homem primordial está aí, sabe-se homem. Porém, mesmo sabendo-se homem, não cortou ainda assim o cordão umbilical que o une com a terra e com o céu, porque não se sabe homem enquanto separado, coisa que implica a sua segregação do resto do universo. Sabe-se humus, homem que não está desvinculado da terra nem do céu e sabe que não é monarca absoluto da criação. Se por espiritualidade se entende a forma concreta pela qual o homem realiza a sua obra de salvação, a sua plenitude, a espiritualidade pré-histórica identifica-se com a própria vida do homem, toda ela vivida e considerada como um rito, ou seja, como uma acção sagrada na qual o humano e o divino colaboram para fazer chegar o cosmos ao seu destino. A espiritualidade é rito e o rito é a própria vida. Tudo é uma acção ritual e, por este mesmo facto, por nem sequer vislumbrar a possibilidade da existência de uma esfera profana, o próprio rito não se distingue do conjunto de acções comuns da vida corrente. O homem vivendo "faz", trabalha, forja a sua salvação, porque a vida não é outra coisa senão isto: o caminho para a salvação, a oportunidade de chegar plenamente a ser. A questão não é que o homem deva fazer muitas coisas no caminho e entre elas pôr em prática os meios para salvar-se, não é que a religião seja uma de tantas coisas, ainda que porventura a mais importante das que o homem tem que realizar; a questão é que a própria vida é esta realização ou não é nada. A vida religiosa não tem férias nem pausas, como as não tem o coração. Não há períodos de descanso porque não é uma acção justaposta à vida, ao viver, que desgaste e necessite ser reposta, antes é a própria dinamicidade da existência. A adoração, ou seja, a consagração total e rendida à Divindade ou à Realidade, é considerada como evidente e como pressuposto implícito em qualquer acto. Tudo é latria. Lentamente, o céu separa-se da terra na consciência do homem e então começa a subir ao céu o espírito de Deus que flutuava sobre as águas. Aparece o que logo no Ocidente se chamará idolatria e as novas formas religiosas mais ou menos conhecidas. Aparecerão então os Deuses mais ou menos personificados e em conflito entre si e entre os homens.
Mesmo sem o epifenómeno do que chamamos civilização, o homem pré-histórico é plenamente homem e vive toda a profundidade abissal da sua existência"
- Raimon Panikkar, Espiritualidad hindú. Sanatana dharma, Barcelona, Kairos, 2005, pp.64-66.
Guerreiro
peito aberto ao vento
passo asa firme e lesto
Atrás um rasto de bandeiras incendiadas
pátrias reduzidas a escombros
nomes e palavras calcinados
Pisando os mundos
como um restolho de Outono
ergue-se acima de si
e das entranhas de tudo
fundo indómito canto
à boca lhe sobe
Ébrio da mais pura alegria
proclama o Invencível:
jamais haver combatido
31.08.2009
domingo, 30 de agosto de 2009
exaltação
O que há não é melhor nem pior
Não há uma razão suficiente para nada
Nem há um termo de comparação
Nada é suficiente
O melhor dos mundos seria uma contradição medonha
Qualquer mundo é suficiente em si
E em si basta para se ser o que se é
Tudo é excesso
Sem ser excessivo em si
O visível é uma limitação
Até a escuridão não anula a luz
olivromorreu
Para quem quiser ouvir, o link é www.kxlu.com
Para quem quiser ouvir mais de olivromorreu pode ir a www.soundclick.com/olivromorreu
Quem quiser ver a playlist do programa de hoje tem aqui:
http://www.alienairmusic.com/playlists/2009-08-30.html
Abraços amigos.
Areia-Vento
da pesca, sem linha
não sei por onde comece, se pelo tempo e clima em si, ventoso, como de costume por estas paragens, se por qualquer outra coisa que vier à rede, já que agora aqui me sentei... sei lá.
Toda a malta alinhada no pontão de pedra, que ladeia a foz, até muito próximo da sarronca, onde se encontra um pequeno farolito que sinaliza a entrada do estuário até ao porto de abrigo, onde guardam os pescadores cofres, redes e outras artes de pesca.
As motas de água rasgam episodicamente o inexistente silêncio com o brunhido engasgalhado dos jactos propulsores, ofuscando por momentos o ritmado balancear das águas, que entram com a subida da maré e visivelmente perturbam a necessária concentração que se anuncia solitária e íntima do mais silente em cada um. Pescadores, visionários, espectadores, passageiros, todos se voltam para a fonte ruidosa e, de diferentes maneiras, cada qual acaba por reagir à intempérie:
- Ó seu animal! Vai pastar para outro lado! – e eu, desato a rir.
- Não vê que eles vêm até aqui só porque têm plateia… olhó casalinho! – canta outro prestíssimo alegrete.
A serenidade é uma interrupção, oscilando aqui e ali por momentos ora reflectivos e contempladores, ora céleres e esporádicos… e a aparente tranquilidade do local queda-se, de súbito, num frenesim típico similar à reacção de uma picada do peixe. Uns baixam as canas à pressa tentando por vezes em vão evitar que a linha seja arrastada pelas embarcações e outros, esquecidos de orientar o material, já que pescam à bóia, continuam a entreter-se a vaiar as cada vez mais estranhas formas de lazer que vão surgindo, e que a época proporciona.
A fotografia tirada da plateia contempla todas as imagens sucessivas oriundas de multi-disparos sequenciais de ímpares instantes, que, sequenciados, se assemelham particularmente à ideia a que a minha percepção constata como sendo uma possível realidade, ou fragmento episódico - talvez o mais correcto - um estádio alegórico que o acto contemplativo designa e reafirma (absurdo, grande parêntesis). E… acabo por tirar mais uns contactos neste dia, como mais tarde irei ver.
Pescam com camarão, vivo ou cozido e, até ver, ninguém com teagem.
A foz do rio separa-se do oceano por um istmo de areias móveis na zona próxima ao refluxo das marés e, composta por dunas secundárias, ao longo da imensidão deste braço, cobertas pela vegetação típica dos ambientes mediterrânicos semidesérticos que evoluem a pinheirais, marcam-se na transição para as áreas de bosque ou outras áreas cobertas. Estuário adentro é este o panorama. Para oeste, a mesma extensão de areia compõe uma larga praia desabrigada, todos os dias como hoje, fustigada por ventos dominantes e banhada pela corrente marítima concordante.
Tiro da sacola que tresanda a peixe a máquina das fotografias e começo por rever… as últimas da… Batalha da Ponte Ferreira, levada à cena ontem à noite... em Campo..., e o sol, a pique! - portanto, escusado será dizer que foi uma rápida revisão, o suficiente para saber que podia tirar, exactamente mais noventa e três contactos para perfazer quinhentos megas em cartão. Mais que suficiente!
Umas imagens de lançamentos, um ou dois filmes de curta duração, uma sequência de contactos panorâmicos da vila à esquerda, até ao mar, e à minha mão direita, pouco ou mais nada.
Aproveito para cinzelar no caderno que já lá vai uma hora, desde que o vento me despenteia. Viagens por decisões pelo meio, obrigam a que nos desviemos de um terno quente nada, por raros e breves instantes, segundos ou breves minutos, em que o que somos por esse tempo passa sem que se dê realmente por isso… não sei.
Entretanto um dos pescadores resolve-se e decide rapidamente levantar chumbo. De fora que me digo, serenamente imbuído no estar-se em observação, depressa me apercebo, por palpite, que não será assim tão fácil resumir o acto… há um problema; estão todos coladinhos uns aos outros, e qualquer repente ou descuido pode ser mortal para a concentração de quem está ao lado com a sua caninha na mão. Um descuido, e adeus calma, se se engalharem os fios de quatro ou cinco canas a pescar para a mesma zona de corrente, que agora, facilmente arrasta consigo cinquenta gramitas de chumbo. A corrente encarrega-se de deslocar tudo, quer seja chumbo, fios, canas e olhares, bem como por vezes arsenais, em direcção do mar, enleando e misturando por vezes toda esta parafernália de matérias, é o que ocorre.
A ver, levantou-se muito lentamente… para não tropeçar em ninguém e muito menos tropeçar em si mesmo; nem nas pedras soltas, alteadas em pontão. Até agora, como se vê, nada rápido de ser vitoriosamente executado até a um próximo silêncio descrito. Identificou claramente a sua posição face aos demais libertando-se de si ao redor de tudo o que se não se assemelhava liberto. Posição da linha, posição da cana, correcta postura corporal e uma grande inspiração… profunda, sonora pelo olhar (sentiu-se, senti) – a idade deste amigo era evidente e nada nessa idade se faz à pressa, nem tão-pouco deverá nesta ser feito, mas adiante… – constituíram o momento poético passível de o ser ou por outrem descrito como início da recolha das artes.
Ergueu-se, tombando o tronco ligeiramente para trás, num movimento que faz com que o peso corporal, associado à resistência do fio na cana, eleve do fundo a chumbada e anzol de uma só vez, prevenindo a sua perca, bem como por vezes, largos metros de fio, acaso tenha de ser intencionalmente quebrado ou cortado.
Com o fio da cana já passado por debaixo dos restantes emoldurados, sem que alguém pedisse, descruzaram os aparatos, e ele, continuou a bobinar contínua a linha que agora se aproximava de si, trazendo muito provavelmente nada. Recolheu-a na totalidade e voltou a iscar camarão, na secreta esperança de ser brindado por uma captura.
Sorri, sorrimos aliás… enquanto puxava, dava ideia de balbuciar frases gastas de pescado, historietas de bailas e robalos, historietas essas que levaram a que se contagiassem todos os ânimos já resplandecentes. Iscou de seguida, e o que disse foi tão familiar e certeiro que o fotógrafo das suas fotografias, os pescadores de vara larga e os transeuntes passageiros se desengataram todos finalmente desse anzol a que chamamos expectativa da diversão afectuosa na amizade… Risota total!
Pergunto por sargos, responde-me com douradas; pergunto se ao corrico leva a bom porto e não tenho hipótese - aí a amostra da minha alegre ignorância - ou talvez seja uma tentativa de ser alimentado o esparso diálogo até então ali recriado, e por mais não me contive, risada em frente…:
- Ó amigo!? Com esta rapaziada toda à volta, a esta hora? Nãa… ao fim da tarde, ali à sarronca… aí sim, pelo menos não há perigo de ficar engalhado nas artes individuais! Está a ver, não está?... É mais calmo, é mais solitário, e sobretudo não ‘aparece’ espectadores… Está não está?
- Estou estou, então não estou! … - e sorri, porque tal já tinha para mais tarde te contar.
Ao Mário.
constância
Não tem agitação o verdadeiro desassossego
O estarmos em desacordo com o que se vê
Na vigília da continuidade
Nem é libertação nem uma iluminação súbita
Um ser humano não nasce para candeeiro
A verdadeira riqueza não está no dinheiro
Nem a pobreza autêntica precisa de prescindir
Seja do que for
Até os bons são maus por serem bons
Não há bondade que supere a liberdade do coração
Fluir e mesmo assim permanecer com tudo
Ancorar o barco no mar sem fundo
Com uma pedra solta a servir de âncora
E não saber do mar mais que a inconstante ondulação
E da terra que a firmeza inabalável está no Íntimo
sábado, 29 de agosto de 2009
Cansaço
Eu quis, depois, a imortalidade...
Um como o outro só deram ao meu ser
A sombra fria dos seus vultos negros
Na noite eterna longe dos meus braços...
Eu procurei depois o amor e a vida
P'ra ver se ali esqueceria a dor
Do pensamento e da ciência firme
Da certeza da morte. Mas o amor
É para quem guardou a alma inteira,
E não podia haver amor pr'a mim.
Depois na acção cega e violenta, onde eu
Afogasse de vez toda a consciência
Da vida, quis lançar meu frio ser...
Mas aquilo da alma condenada
Que me fizera em tudo um espectador,
De mim, do mundo, do que quer que fosse,
Proibiu-me outra cousa que assistir
Aos [...] dos outros e aos meus
Friamente de fora, sempre tendo
No fundo do meu ser o mesmo horror...
Ah, mas cansei a dor dentro de mim...
E hoje tenho sono do meu ser...
Dormir, dormir, de dentro d'alma, como
Um Deus que adormecesse e cujo sono
Fora um repouso de tamanho eterno
E feliz absorção em infinito
De inconsciência boa.
s.d.
Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.
- 176.
Declaração
As populações indígenas possuem relações culturais e espirituais únicas com o meio ambiente físico, que podem ser exemplos valiosos para o resto do mundo.
É essencial, por este motivo, que estas populações sejam envolvidas nas actividades para o desenvolvimento sustentável e nas negociações sobre o direito à propriedade e herança cultural."
Declaração de Sundsvall, 1991, OMS
ÓMar
as suas lágrimas inundaram o mundo
e o mundo tornou-se Mar,
nele caiu
e logo flutuou;
ventos fortes e o Mar não oscilou
chuva torrencial e a Rainha não molhou.
Somos o universo e não damos por isso
- Georg Feuerstein, Tantra. The Path of Ecstasy, Boston/London, Shambhala, 1998, p.143.
Isto explica a irreflectida crença dominante de haver uma separação entre seres, objectos e mundo, que é a matriz de todos os problemas e conflitos que dilaceram o universo. Nada pode solucionar isto, a não ser uma radical mutação da consciência. Sem ela, de nada servem reformas ou revoluções intelectuais, morais, artísticas, sociais, económicas ou políticas. Sem essa radical mutação da consciência, trans-dualista, o mundo continua e continuará a ser o que sempre foi: um lugar de contínua expectativa da felicidade e do bem e de contínua frustração disso. Sempre o mesmo, desde o Paleolítico até à era tecnológica e para além.
Reflicta-se bem nisto e não percamos tempo com futilidades, por mais sedutoras que sejam.
sexta-feira, 28 de agosto de 2009
Não à tourada, sim à cultura! - A caminho das 1000 assinaturas em poucos dias
Convido-vos a assinarem esta petição contra a transmissão de touradas pela televisão pública - que usa o dinheiro dos contribuintes para divulgar a tortura e não a cultura - , e a favor da sua criminalização.
http://www.petitiononline.com/touradas/petition.html
Em poucos dias está a chegar às 1000 assinaturas. Assinem e divulguem para que chegue às 4000 e à Assembleia da República.
Pelo bem de todos os seres sencientes, incluindo o de quem, por ignorância, os faz sofrer
www.partidopelosanimais.com
www.partidopelosanimais.com
Comunitarismo e Libertação
A luz é o divino incarnado. Somos partículas do Uno, e, o Estado, com a ferramenta da lei, comprada pelo capital financeiro e industrial, manipula-nos de tal forma, que é ele que nos tapa a luz e nos remete às suas trevas!
Só há uma forma de combater a flagelação contínua e continuada: a subversão pacifista, fazendo o jogo do Sistema. Se ele nos "lava" o cérebro, via ditadura democrática, há que nos infiltrar, qualquer que seja o poder eleito pelo voto alienado, pelo delírio esquizofrénico de quem se fragmenta partidariamente.
A personalidade social estilhaçou-se, somos apenas rodas dentadas, cujos dentes partidos são o elemento da grande engrenagem!"
O autor assina: The great fornicator of demo-cracy. ID: Alfa Omega, 28/08/09
Dissolver o Estado para que cada um saiba à nascença, geneticamente, o seu papel individual/comunitário. Viva o Comunitarismo!
"Pudesse eu"
Ó vida de mil faces transbordantes
Pra poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes
- Poesia I (1944).
Reflexões sobre os princípios e a necessidade de um Partido Pelos Animais - III
Para esse efeito, é necessário intervir a todos os níveis: cultural, jurídico, político, social e económico. Destaca-se todavia a necessidade de uma formação integral das gerações mais jovens numa consciência profunda da natureza dos actuais problemas ecológicos, bem como da vida animal e das questões éticas e bioéticas relativas ao homem e à sua relação com a natureza, o meio ambiente e os animais. O PPA defende a inclusão nos programas de ensino, desde o início e em todos os níveis, de uma disciplina obrigatória que contemple estas questões. As crianças e jovens devem ser educados tanto quanto possível no contacto com a natureza e a vida animal, conhecendo as profundas vantagens disso para o seu desenvolvimento mental e afectivo, extensivo ao dos adultos e idosos. As crianças e jovens devem reconhecer tudo o que os animais oferecem voluntária e involuntariamente ao ser humano – afecto incondicional, companhia, divertimento, alimento, vestuário - e todos os abandonos, maus-tratos, opressão e exploração com que este lhes retribui. É fundamental que a natureza e a vida animal se não reduzam, desde início, sobretudo nas crianças nascidas nas grandes cidades, a imagens estereotipadas nos meios áudio-visuais ou à alimentação asséptica disponível nos hipermercados, que oculta as condições dramáticas da sua origem, o modo como o animal foi maltratado, torturado, engordado à pressa e abatido, para satisfazer o prazer do consumidor e sobretudo a avidez de lucro de pessoas ignorantes e insensíveis. É necessário que a sociedade civil desperte para o imperativo ético de um boicote activo a esta situação.
Quando o único amigo é um cão (texto que me chegou, que ilustra como o amor transcende a falsa fronteira das espécies)
Foi o que me aconteceu, há tempos, em Lisboa, quando ao longo de vários dias fiz o mesmo percurso. Um cachorro saltava à minha volta e, de início, não percebi se pedia festas, comida ou alguém que tomasse conta dele. Ao terceiro dia convenci-me de que se tratava de um cão desprotegido.
Alimentei-o e decidi entregá-lo numa instituição que recolhe animais abandonados. Tinha conhecimento de que era um local onde seria bem cuidado e onde quase todos os dias apareciam pessoas dispostas a adoptar alguns dos que, diariamente, vão sendo recolhidos pela cidade. O cachorro que encontrara na rua facilmente arranjaria dono: era novo, meigo, e aparentava ser saudável.
À entrada da instituição cruzei-me com uma senhora que vira sair de um Mercedes, conduzido por um motorista fardado. Trazia uma cadela Cocker Spaniel presa a uma trela.
Enquanto aguardávamos atendimento os nossos cães cumprimentaram-se e nós trocámos algumas palavras de circunstância. A cara daquela mulher não me era estranha. Depois de algum esforço consegui identificá-la: era um membro do governo.
Quando a funcionária se aproximou justificou o abandono da sua Ritinha: o marido não gostava de cães e ela não tinha vida para a aturar. Os filhos teriam um grande desgosto, mas haviam de recuperar.
Percorri aquele espaço que ainda não conhecia. Cerca de mil cães e centenas de gatos. Muitos deles velhos, cegos, coxos e doentes. A minha aproximação suscitou alguma agitação. Todos pediam festas, todos queriam uma pequena atenção. Evitei fixar os seus olhos tristes.
Foi durante aquela visita que me cruzei com Maria do Rosário. Sentada num recanto, a senhora de oitenta e nove anos, tinha a seu lado um cão de porte médio, castanho, tão velho como ela. Partia bolachas ao meio e metia-lhas na boca. Entre cada bolacha acariciava-lhe a cabeça, passava-lhe a mão trémula pelo dorso e falava com ele.
Fiquei uns minutos a olhar, discretamente, aquela cena ternurenta. Não queria perturbar a intimidade daquele momento, mas aproximei-me.
- O Bobi é o meu único amigo e tive de me separar dele. Vivo num terceiro andar sem elevador e nem as minhas pernas nem as dele aguentavam andar para baixo e para cima sempre que ele precisava de fazer as necessidades. E também já não podia cuidar dele como devia ser. Somos os dois muito velhos e doentes. Não tenho família e quando se chega aos oitenta e nove anos perde-se tudo até os amigos. Venho visitar o meu Bobi todos os Domingos. A cidade está mais calma. É a altura em que todos ou quase todos os passageiros viajam sentados nos transportes públicos. Já não aguento a confusão dos outros dias. Ninguém imagina o que eu e este animal estamos a sofrer, mas não encontrei outra solução para as nossas vidas que estão a chegar ao fim.
Os seus olhos baços, marejados de lágrimas, olhavam-me em jeito de súplica.
Uma voluntária da instituição, minha conhecida, aproximou-se e ofereceu-se para levar Maria do Rosário a casa. Despedi-me à pressa. Não me sentia com coragem de presenciar a separação daqueles amigos.
O olhar de profunda dor de uma mulher velha, solitária e tão abandonada como aqueles animais, foi uma visão horrível da qual não me consigo libertar.
É porque há tantas Marias do Rosário, tantos Bobis e tantos olhos marejados de lágrimas que fui obrigada a partilhar esta vivência que já não cabia no meu coração.
Maria Leonarda Tavares
quinta-feira, 27 de agosto de 2009
Fernando Guilherme Azevedo ao poder!
Do sangue vinho sagrado
Adio constantemente a jornada
Partir é meu lema mas a palavra nunca chegada
O tema é sempre o mesmo:
A minha indecisão feita de catapultas dos sentidos
Tenho os ouvidos abertos mas nem um som limpo ouço
Só ruído só barafunda
Que a descoberta verdade não me contunda
Posso escrever amor e fel
Até, vejam bem!..., depositar nas mulheres o fel
Mas não me perdoo por abençoar prostitutas
E excomungar colunáveis
São adoráveis saliva e esperma de bocas fétidas
Incongruências dos anormais que habitam as cidades
Contudo não vou para o campo nem tenho animais
Há uma Virgem sobre a cabeceira
Não tive berço de ouro nem dormi em esteira
A minha religião é perversa
Cristo morreu porque Eu quis
E nada mais interessa.
Fernando Guilherme Azevedo
libertação
fugacidade
quarta-feira, 26 de agosto de 2009
Conheces tudo o que o teu corpo contém?
Nele também residem os videntes, os sábios, todas as estrelas e planetas, as passagens do rio sagrado, os centros de peregrinação e as divindades desses centros.
Nele rodopiam o sol e a lua, que são as causas da criação e da aniquilação. Do mesmo modo, ele contém éter, ar, fogo, água e terra.
Todos os seres encarnados nos três mundos, em conexão com o Monte Meru, existem no corpo junto com todas as suas actividades.
Aquele que conhece tudo isto é um yogi. Não há dúvida acerca disto"
- Shiva-Samhita, 2, 1-5 (manual de Hatha-Yoga do séc. XVII)
e se embrenha o nevoeiro
tudo pasma
e eu sou nevoeiro.
Quando o frio se entranha na pele
e o que ouço é longínquo
tudo vibra quieto
e eu sou lonjura.
Quando o respirar fica suspenso
e brilha o último olhar
amamo-nos e prometemo-nos
e eu sou saudade.
Quando a luz é futura
e somos de ambos presentes
pulsamos a eternidade
e eu sou eco.
alegria
E eu sei que só serei verdadeiramente produtivo quando abandonar o meu ego e me tornar totalmente permeável ao amor.
Um amor que brota em mim para correr através de mim na direcção dos outros e os alegrar”
Anselm Grün
terça-feira, 25 de agosto de 2009
o ser do ente
...
à última badalada, o silêncio torna-se ainda mais fundo. ele estende-se até àqueles que durante as duas guerras mundiais foram prematuramente sacrificados. o simples tornou-se ainda mais simples. o sempre idêntico supreende e desdobra-se. o apelo do caminho do campo é agora inteiramente claro. é a alma que fala? é o mundo? é deus?
tudo diz o abandono ao mesmo. o abandono não destitui, mas dá. ele dá a inesgotável força do simples. o apelo repatria para uma recôndita origem.
poema imperfeito
o sol nosso
absorve
a escuridão.
o rio corre
sem fim
alma nossa.
diónisos ergue-se
em amor
caleidoscópico.
no infinito
pertencemo-nos
ignorantes.
tudo o que é
nosso
vento eterno.
devir
por entre esgares
ecos.
aqui sem espaço
somos
um.
a tua voz
em mim-dádiva
sou eu.
sofreguidão
Sem começo o princípio
No contínuo alvorecer sem mácula
A quietude inflamada de luz perfumada
Nas flores a mente encontra-se imaculada
Repleta de seiva abundante
Completa na bravia espontaneidade do que é belo sem o ser
O recolhimento nessa expansão total
A abundância de não ter que ser
Não vive o que vive para viver
Só o que se desprende de si é real