O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 5 de abril de 2011

crónica do enfarte

Farta-me não chegar a conclusões. Farta-me os estudiosos, os pirosos, locutores da filosofia greco-romana a andarem por aí dizer que existem caminhos mais verdadeiros do que outros. Farta-me esta política politicótica feita por gente que não é gente nem tão pouco sente o valor de uma rima. Farta-me ser sempre o mesmo à espera que no mar nasça trigo. Estar naquele ponto de decidir se vou pela prosa ou pela poesia. 
Dá-se dois saltos mortais, quatro voltas ao corpo e fica tudo na mesma, a desejar que um feitiço resolva a solidão. Farta-me a apendicite aguda dos dias, a osteoporose das noites, o fígado das horas e mais o raio que as parta. Também já agora as parteiras sem licença, os cães sempre a ladrar em horas que estou a dormir, o zunzum do silêncio, as aves a aprenderem a serem felizes, a telefonista que me diz: tente mais tarde.
Farta tudo isto, que em toda a parte dói e faz doer, ser aquele pobre coitado em vez de um rico coitado, ser rei das bifanas com cães esfomeados ao lado.

Estou nas águas da desilusão a ver se o peixe sai frito. Construo versos como castelos de cartas. E ai de nós se perdermos um dia a voz fonética. Ai deles se fogo nos subir pela garganta. Ai de vós se dais o desejo como enforcado.
Farta-me as verdades verdadinhas, a matança lenta do suíno, a corda na pata do peru embriagado, as comissões de festas de tigela na mão, a beleza do anarquismo, deus sem canseira nenhuma. Farta-me a coragem que não tenho em mandar tudo para aquele lugar. Farta-me o socialismo com as tripas nas mãos. Farta-me ser o F.C. do Porto sempre a ganhar o campeonato. Farta-me a demora para chegar a lado nenhum, ter horas para dormir e para acordar, sonhar friamente com pão e água. Farta-me rir das piadas dos outros, da solidariedade, ter amigos, cunhados obesos, olhar as coisas pelo lado do coração, sonhar com a pátria, sacrificar a pele do horizonte, cair redondo num quadrado de sossego. Farta-me o amor, pensar que ele é grande comó caralho. Farta-me a literatura, os que escrevem, os que lêem mais os que estão a aprender a ler.
Havemos de ser campeões de coisa nenhuma, entrar de focinhos na terra, ter sangue maltratado, ter bocas-de-incêndio no coração, ser livro sem margens para dúvidas, cagadinho de medo.
Farta-me ouvir dizer que somos os melhores, que as nossas mulheres já não usam bigodes tanto em baixo como em cima, que os nossos filhos são disciplinados como caniches, que D. Sebastião virá por aí a galope e de espada na mão para enxotar mosquitos. 
Que se lixe os partidos à esquerda, à direita, ao centro, e os extremistas que comem sonhos pela lata e mais os musicólogos a tirar cera dos ouvidos de um trompete. Farta-me a europa e as américas todas, os críticos em estado de gestação, a pocilga em que me sento a olhar o céu, o meu sexo furioso, a minha alma rente ao chão, os meus braços a segurar um edifício morto.
Nascemos para ruir e sermos pedaços de um nada por decifrar. Daqui ali faz-se um morto.
Farta-me a bolsa de valores, o Mercedes à porta de uns e a carroça à porta de outros. Farta-me as sombras, os rios e as montanhas, a contemporaneidade das raparigas, o ciclista perdido na rota e o peregrino a crescer pelas ruas e os mosteiros com cara de pau e os meus irmãos a chorar por não saberem que poesia é vida e eu que sou embalsamador de cadáveres poemas, esvazio a lua cheia com uma palhinha. Farta-me as regras e o artesanato e os órgãos vitais e os planeamentos familiares e a hipocrisia do silêncio das igrejas e a minha tia que está louca por ter amado demais. Farta-me a vida, os tomates da vida, as árvores inclinadas para o pavor, o fado castiço, a saudade e a dona mariquinhas à janela a perguntar se eu já morri. Sem sequer falar do vento que, quando não sopra, manda soprar. 

Depois os abismos da carne, a pintura com óleos de ternura, a gioconda com ar de quem leva nele, a pornografia dos sentidos, dos sentinelas, dos operários, dos monges, dos moralisticamente falando. Farta-me dar a cara ao destino, não ter uma parede para lhe causar pisaduras, existir só porque sim, cair para o céu mais fundo, ser erro ortográfico, esperar que a galinha aterre no prato, ser vítima de assalto, fósforo sem cabeça, fruto em queda livre, manhã sem manhã, criatura bela, gene sem génio. Farta-me ser chamada não atendida, ser o rei da primavera sem fralda mudada, aquele mar à espera do navio, tão cego como uma mão decepada. Enfim, farto-me de me fartar de tanto nada nas mãos nada nas mangas.

2 comentários:

platero disse...

bom exercício de reflexão

abraço

rmf disse...

uma crónica deste mundo, tão sobre o de hoje, tão sobre o nosso, fluido e transparente, livre, catártico. belíssima.

abraços